Uma conversa séria sobre os limites do mercado não é assunto “de direita” ou “de esquerda”. Ou, pelo menos, não deveria ser. Faz sentido, por exemplo, aplicar a lógica contratual do mercado ao casamento ou à família? Qualquer casal que tenha atravessado desafios para criar filhos saudáveis certamente responderá que não. Em seu “O que o dinheiro não compra”, o professor de Harvard Michael Sandel, longe de ser considerado “conservador”, avalia que, diante de um mundo onde é possível “alugar” uma barriga para gestar uma criança ou comprar o direito de abater um animal em extinção, é tempo de nos perguntarmos “se não existem certas coisas que o dinheiro não pode comprar".
"A mudança mais decisiva (...) não foi o aumento da ganância, mas a extensão dos mercados, e de valores de mercado, a esferas da vida com as quais eles nada têm a ver", escreve Sandel. Partindo deste princípio, é possível questionar: qual é, afinal, o preço da intimidade e da sexualidade humana?
Um passeio pelo Instagram de Timothy Stokely mostra que o britânico de 37 anos é um homem que pode comprar de tudo. O empresário, que encarna o estereótipo-alvo da militância identitária — homem, branco de olhos azuis, malhado e riquíssimo — não se farta de exibir sua mansão de seis quartos, salão de jogos, cinema e academia, bem como sua coleção de carros de luxo em viagens internacionais de quem, presumivelmente, nem sentiu a pandemia do coronavírus passar.
A verdade é que Stokely sentiu, sim, os efeitos da pandemia, mas de uma maneira diferente que o restante da humanidade: viu sua empresa render 1,7 bilhão de libras esterlinas (mais de 12 bilhões de reais) em receita e contabilizar mais 120 milhões de clientes, dando força ao apelido pelo qual já era conhecido desde 2019 (ainda que insista em renegar). Tim Stokely é o rosto por trás do OnlyFans, rede social que permite a troca de conteúdos adultos por assinatura — em outras palavras, possibilita a venda de fotos e vídeos íntimos e de pornografia caseira “on demand”. Por sua criação bilionária, já foi chamado de “cafetão virtual” e é conhecido como o “rei da pornografia doméstica”.
De sua mansão de 2,4 milhões de libras (cerca de 17,2 milhões de reais) na pequena cidade histórica Bishop's Stortford, uma cidade comercial histórica no Condado de Essex, perto de Londres, Tim Stokely, não vem de família milionária: o pai, o investidor Guy Stokely, e o irmão, Thomas, são sócios do negócio atual. Ao contrário da maioria dos grandes empresários do mercado da pornografia, não faz questão de viver escondido: entre carrões e iates, passa férias na Espanha e nos Estados Unidos e não economiza nos registros, um perfil que o diferencia da maioria dos grandes empresários associados ao mercado da pornografia digital.
Ex-Disney
O OnlyFans, contudo, não foi sua estreia no ramo: em há seis anos, Stokely contou em um fórum do portal Reddit que “esbarrou” no universo dos “fetiches sexuais” enquanto estudava gestão imobiliária na Anglia Ruskin University, em Cambridge. Em 2011, fundou um site sobre práticas BDSM, onde conheceu a atriz pornô Danni Harwood — a primeira a faturar um milhão de libras com o OnlyFans e que se gaba de ter tido parte na ideia original.
Por sua influência, Stokely teria notado a demanda por conteúdo personalizado e, então, criado o primeiro portal no qual fãs poderiam encomendar o conteúdo diretamente com as atrizes. O site foi vendido em 2019, dois anos depois de evoluir para o aplicativo conhecido. A receita do lucro é simples: a empresa retém 20% do lucro dos produtores de conteúdo.
No mesmo fórum, Stokely já confessou que, por conta do negócio, já assistiu “um milhão e um” vídeos pornográficos. “Você meio que se torna imune à esquisitice. É um risco do trabalho".
Com o isolamento social que levou a um aumento recorde na procura por pornografia online, o OnlyFans disparou em audiência e faturamento. Em abril do ano passado, ganhou uma menção em uma letra sensual da rapper Megan Thee Stallion, com participação da cantora Beyoncé (que, aliás, é quem cita o aplicativo).
Em agosto, a ex-estrela da Disney Bella Thorne quebrou os recordes do portal ao angariar um milhão de dólares prometendo um “nude” aos assinantes, que receberam uma foto da atriz de lingerie e pediram o reembolso ao OnlyFans. Em novembro, foi a vez da cantora Anitta anunciar sua conta no aplicativo onde anunciou e mostrou vídeos de sua tatuagem íntima. Março deste ano viu surgir a conta da ex-chacrete Rita Cadillac.
Por tudo isso, é difícil levar a sério quando Tim Stokely insiste que o portal não foi feito só para pornografia. Há negociações em andamento com estrelas do esporte e há quem pague para receber conteúdo exclusivo “classificação livre” de seus artistas favoritos, mas o próprio dono admite que é impossível estimar quanto o negócio perderia se fosse retirado o conteúdo adulto, de modo que a preocupação com a onda de denúncias de pedofilia, abuso sexual e tráfico humano contra os sites de pornografia em todo o mundo preocupam os criadores.
Menores de idade
Para ingressar no OnlyFans, é preciso comprovar que se tem mais de 18 anos através de uma foto própria e um documento de identidade. O acesso a conteúdo exclusivo e interação com o criador custa entre 4,99 e 49,99 dólares, a depender do criador. Sobre isso, os diretores da empresa afirmam estar aumentando os esforços para manter material ilegal fora de seus sistemas. Nada disso impediu que uma investigação da BBC revelasse a presença de menores de idade vendendo vídeos explícitos no site, inscritos com identidades falsas - incluindo uma menina de 14 anos que usou o passaporte da avó.
A reportagem levou o órgão Children's Commissioner for England cobrar um posicionamento do OnlyFans. "Nenhuma criança deve precisar ou querer vender imagens de si mesma", diz a comissária Dame Rachel que, em carta a Stokely, pediu informações sobre o sistema de segurança "excepcionalmente eficaz" da empresa, tão facilmente burlado.
Em um comunicado, a OnlyFans afirmou que iria agendar um encontro a comissária para explicar "os processos de segurança e corrigir qualquer desinformação". A empresa acrescentou que leva suas obrigações "muito a sério" e informou à reportagem que as contas sinalizadas foram fechadas.
Um novo capítulo foi acrescentado à celeuma do OnlyFans em agosto deste ano, quando a empresa anunciou que baniria todo conteúdo de sexo explícito. À imprensa, Stokely bancou a vítima, sem esconder o interesse financeiro: "Não tínhamos escolha — a resposta curta são os bancos. Esta decisão foi tomada para proteger os fundos e assinaturas [dos nossos usuários] de ações cada vez mais injustas de bancos e empresas de mídia". Uma semana depois, via Twitter, o grupo voltou atrás e anunciou estar em dia com as "medidas de segurança".
“Pornografia dos privilegiados”
Some-se isto os relatos de modelos e atrizes que entram no site para sobreviver à crise, proliferam relatos de meninas que se sentiram prostituídas no site, dado que o sistema funciona como se elas estivessem “vendendo seus corpos enquanto a empresa toma sua parte”, relatou uma usuária. Sem contar com os casos — um deles, descrito pela imprensa — nos quais usuários reclamam dos “serviços” das modelos, elogiam as que se parecem com crianças e reproduzem o material em outros sites pornográficos. À acusação de ser um “cafetão virtual”, Stokely já respondeu, placidamente, que “os criadores estão no site porque querem” — um argumento reproduzido por ativistas feministas que defendem a exposição sexual voluntária como sinônimo de “empoderamento”.
O problema é que este discurso supostamente liberal não apenas é desprovido de uma discussão genuína sobre deve ou não estar à venda, como serve para mascarar os efeitos colaterais que atingem passam ao largo de influenciadoras e celebridades “acostumadas” à exposição virtual — e com dinheiro suficiente para escapar das consequências. Um fenômeno batizado pela ensaísta Melinda Selmys de “pornografia dos privilegiados”.
“A experiência de um pequeno grupo de poucos privilegiados é apresentada como a norma, enquanto as realidades violentas, coercitivas e traumatizantes da indústria do sexo desaparecem com o uso da varinha mágica da ‘escolha’”, escreve a articulista, .
“O pleno reconhecimento da dimensão moral da escolha feminina exige um reconhecimento de que as decisões das mulheres não são meramente individuais — que, como as decisões dos homens, elas têm significado social e político (...) Quando uma mulher opta por se vender como objeto sexual e afirma que é fortalecedor para ela agir dessa forma, ela não pode se livrar da responsabilidade moral pela maneira como os homens interpretarão suas ações.(...) Os homens não vão assistir a shows para que possam refletir de forma autocrítica sobre a sexualidade das mulheres e a política do desejo. Ignorar isso não é um ato de autonomia feminina radical, é um ato de irresponsabilidade perigosa e narcisista”. É, em outros termos, normalizar a negociação da dignidade humana — vide os relatos de meninas que deixaram o OnlyFans porque seus "clientes" passaram a se sentir no direito de criticar seus corpos, transformados em produtos.
Mercado sexual
Não à toa, especialistas de diversos espectros ideológicos estão cada vez mais convictos de que os problemas no mercado da pornografia não são apenas pontuais — mas dizem respeito à natureza do negócio, que lucra com vídeos de abuso, pedofilia e tráfico humano e, ainda que faça esforços para conter a ilegalidade (como adotar políticas mais rígidas de identificação), não impede o fomento ao vício e às práticas cada vez mais absurdas, mesmo que supostamente “consensuais”.
“Ao formalizar a imagem competitiva de um ‘mercado sexual’, OnlyFans contribui para essa exclusão da intimidade humana cooperativa, sintetizando (...) uma versão aspartame de intimidade, doce o suficiente para atingir o prazer centro, mas de benefício para a saúde a longo prazo questionável”, descreve a escritora feminista Marry Harrinton em um artigo intitulado “O desespero por trás do OnlyFans”.
“Assim, OnlyFans virtualiza e monetiza o campo complexo e mutante do desejo e do anseio por conexão humana de uma forma perfeita para a paisagem social da era do bloqueio de atomização, solidão e desemprego. É um ‘mercado de namoro’ perfeito (...) sem qualquer necessidade de reciprocidade, generosidade ou — crucialmente — de toque humano. É uma verdadeira visão de amor do século XXI”.
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