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Cultura do martírio

Quem eram os meninos-soldados iranianos da guerra contra o Iraque

A mãe de um mártir iraniano reza diante do túmulo do filho: desde as origens, no século 7, os xiitas consideram o martírio uma forma concreta de demonstrar fé (Foto: EFE/Marina Villén)

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Existe no Irã um atalho para receber homenagens especiais do Estado, ganhar popularidade entre a população, e até mesmo conseguir vagas melhores de emprego e descontos em lojas. Basta ter mártires na família. Sempre que um iraniano se sacrifica em nome da religião ou de seu país, seus restos mortais (ainda que desfigurados) são enterrados com honras, em túmulos cercados por bandeiras islâmicas e decorados com plantas e esculturas representando versos do Alcorão. Certificados oficiais são emitidos pelo governo para as famílias emoldurarem e exporem nas paredes com orgulho.

Em datas especiais, quando, em algum ponto do passado, vários mártires se sacrificaram em batalha na mesma ocasião, os cemitérios são ocupados pelas famílias, que assistem à reencenação dos atos de bravura. Em especial o de Behesht-e Zahra, o maior cemitério do país, instalado na capital Teerã. Ele abriga um anfiteatro que proporciona a melhor infraestrutura para as encenações e apresentações musicais em louvor aos mártires.

Ou seja, a decisão de entregar a própria vida para a morte precoce, geralmente violenta, não se apoia apenas na promessa de conquistar um lugar no Paraíso. Mas também garante um futuro melhor para pais, mães, esposas e filhos que ficam.

A cultura da valorização do martírio permanece atuante no país e é alvo de denúncias de organizações de proteção aos direitos humanos. Durante um episódio específico e relativamente recente, ela alcançou escala ainda maior. E envolvia crianças. Aconteceu durante a guerra Irã-Iraque, que durou de 1980 a 1988 – foi um dos mais longos conflitos contínuos do século 20.

Ainda hoje, familiares dos jovens, que caminhavam por campos minados à frente dos soldados, são homenageadas e louvadas. Dão nomes a ruas e escolas do país. Murais de mesquitas exibem, com orgulho, dezenas de quadros emoldurados com fotos de crianças mortas ao longo daqueles anos.

Lição escolar 

Dos cerca de 87 milhões cidadãos iranianos, 99% se declaram muçulmanos – e, destes, 93% são xiitas. Os xiitas defendiam que os líderes da religião deveriam obrigatoriamente ser descendentes de Ali Bin-Abu Talib, primo e genro de Maomé (ele se casou com a filha Fátima). Já os sunitas argumentavam que os sucessores poderiam ser qualquer muçulmano considerado virtuoso. Desde as origens, no século 7, os xiitas consideram o martírio uma forma concreta de demonstrar fé.

Uma data em especial continua repercutindo entre os iranianos: em 10 de outubro de 680, o exército do segundo califa Yazid I massacrou as forças de Husayn ibn Ali, neto de Maomé, em Karbala, no sul do Iraque. Ainda hoje, no mês de Muharram, que abre o ano muçulmano, é realizada no Irã a centenária festa de Ta'ziyeh, que consiste em uma apresentação teatral que relembra os acontecimentos da batalha. Teatral, mas com toques crueldade: há quem siga as marchas de luto que culminam com o espetáculo flagelando as próprias mãos, utilizando correntes sou até mesmo lâminas.

Para além de todo o louvor público aos mártires reais, com a reencenação de suas mortes, em diferentes momentos históricos, o sistema de ensino do Irã replica estas lições: nos livros escolares, relatos de martírios são recorrentes. Os alunos aprendem os nomes e as histórias dos principais exemplos de morte pela fé, em especial Husayn ibn Ali.

Durante a guerra da década de 80, o exército iraquiano era controlado por sunitas e o iraniano, por xiitas, o que levou o governo local a reforçar o paralelos com a batalha de Karbala. Era como se a disputa reproduzisse as disputas centenárias entre os dois grupos.

Cinturão de granadas 

Na propaganda governamental iraniana, todo morto em combate que demonstrasse algum grau de heroísmo era elevado ao posto de mártir, mesmo que não fosse muçulmano xiita – caso de Mehrdad Nahravand, um piloto, praticante do zoroastrismo, que estava abatido e lançou seu avião contra uma coluna de tanques iraquianos. Perdeu a vida, assim como o piloto de helicóptero Ardeshir Esfandpour, também não muçulmano, que foi capturado e então denunciou sua posição, pedindo por um ataque aéreo que levou à destruição de uma base inimiga.

Antes das batalhas, atores eram contratados para simular aos soldados o papel de ibn Ali, uma forma e realçar a importância dos mártires. O conceito se aplicava a crianças. Caso do garoto de 13 anos Mohammed Hossein Fahmideh, que se alistou sem o conhecimento de sua família.

Durante a Primeira Batalha de Khorramshahr, no início da guerra, em 30 de outubro e 1980, Fahmideh interrompeu o avanço de uma coluna de tanques iraquianos depois de pular sob um tanque inimigo e detonar um cinturão de granadas. Morreu no processo. Seu nome é louvado desde então.

Hassan Jangju participou de uma série de batalhas. Ficou eternizado, em uma foto de Alfred Yaghobzadeh registrada em 1980, em que caminhava armado com lama até o peito. Morreu aos 16 anos, em 1984. Sua mãe dizia acreditar que havia entregado seu filho a serviço de Alá, ainda que colocasse uma jaqueta do jovem sobre uma das cadeiras da mesa de jantar, que era mantida vazia na esperança que ele voltasse – seu corpo foi identificado apenas muito tempo depois, e devolvido para os familiares em 2017.

O conflito não teve vencedores, e foi marcado pelas disputas duras para alcançar pequenos avanços territoriais. Os dois lados avançavam devagar, com base na construção de linhas de defesa fortificadas, com campos minados entre os espaços. E utilizar crianças na linha de frente era considerado uma forma útil de evitar mortes de soldados adultos, mais produtivos. Eles também ajudavam a cavar trincheiras. E as famílias eram devidamente recompensadas.

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