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O poeta Bruno Tolentino, o filósofo Olavo de Carvalho e o maestro João Carlos Martins
Da esquerda para a direita: O poeta Bruno Tolentino, o filósofo Olavo de Carvalho e o maestro João Carlos Martins| Foto: Reprodução/Rede Social

O silêncio a respeito do poeta Bruno Tolentino (1940 — 2007) é uma dessas questões difíceis de se explicar. Autor dos mais premiados, teria tudo para ser chamado de “artista consagrado”. No entanto, ignorado não só pelo grande público, mas também entre o diminuto público leitor de poesia, o autor detém apenas um seletíssimo grupo de leitores, muitos dos quais conviveram com ele pessoalmente.

O problema estaria em seus poemas difíceis, cheios de alusões eruditas? Ou seriam suas opiniões polêmicas, as várias entrevistas sem papas na língua, criticando o establishment universitário e midiático, e sua amizade com o polêmico Olavo de Carvalho? A verdade é que, muito antes das redes sociais, o poeta sofreu o que hoje chamamos de cancelamento.

A vida e a lenda

Cancelado ou não, não contribui para a divulgação do autor a sua vida estar envolta em boatos, fomentados por ele mesmo. É difícil separar a vida da lenda.

Bruno Lúcio de Carvalho Tolentino nasceu em 12 de novembro de 1940 no Rio de Janeiro. Já sua infância tem algo de lenda, pois dizia que sua casa era frequentada por Cecília Meireles e Manuel Bandeira. Mas era primo do grande crítico literário Antonio Candido, dando a ele “berço esplêndido” na república das letras.

Desde cedo quis ser poeta, e começou bem sua carreira: seu livro de estreia, 'Seteclaves', foi premiado com o prêmio de Revelação do autor em 1963. E ali já se anunciava uma vida literária envolvida em polêmicas: A obra em questão seria acusado de plágio. Após ser inocentado da acusação, Tolentino usou o dinheiro do prêmio para comprar um sítio. Em um livro de memórias, a escritora Nélida Piñon recordou que ia a este mesmo sítio com Clarice Lispector colher legumes em sua horta.

Posteriormente 'Seteclaves' seria reunido, acrescido de outros poemas e lançado como 'Anulação & outros reparos'.

Os anos europeus

Com o advento do governo militar em 1964, Tolentino parte para a Europa, onde passaria quase três décadas. Muito da “lenda tolentina” nasce dessa época, afinal, foram anos intensos: publica livros em inglês e francês (respectivamente 'About the Hunt' e 'Le Vrai Le Vein'); edita a revisa Oxford Poetry Now; convive com nomes como o poeta inglês W.H. Auden, o italiano Ungaretti e o filósofo francês Yves Bonnefoy; trafica drogas (sim, você leu direito!) e é preso por isso em Dartmoor, sul da Inglaterra.

A respeito de anos tão movimentados, é de se espantar que ele exagerasse algumas coisas aqui e ali? Que alegasse ter desenvolvido um trabalho educativo com os presos em Dartmoor? Que afirmasse ter lecionado em Essex e Oxford (onde de fato morou)? Que exagerasse um pouquinho o nível de amizade que teve com os grandes poetas de lá? “Amizade, amizade, eu só apostaria no Ungaretti, que vivia pelo Brasil no começo da década de 1960”, conta Pedro Sette-Câmara, amigo pessoal de Bruno que atualmente trabalha em sua biografia, “mas veja: se você circulava por Paris e Londres naquela época, no meio literário, era normal conhecer as pessoas. Não havia outras!”

Também não ajuda muito o fato de uma das fontes que temos hoje a respeito desses anos europeus seja um livro onde a fronteira entre ficção e realidade é muito difícil de delimitar. 'Das Booty', de Simon Pringle, publicado no Brasil em 2016 pela É Realizações traz como subtítulo “Bruno Tolentino, candomblé, tráfico e poesia. Uma história real”. O autor é uma testemunha privilegiada dos anos europeus de Tolentino — mantiveram um relacionamento amoroso ao longo de quase toda a década de 70, e nesta obra conta o episódio em que Bruno quis trazer um barco cheio de haxixe traficado de Marrocos para Londres. O que é a estrita verdade nesta aventura em alto mar com direito a consulta a videntes é difícil dizer, mas é fato que o tráfico de drogas levou à prisão de Tolentino em 1987. Desta experiência nasceria o livro 'A balada do cárcere'.

Condenado a 11 anos de prisão, foi extraditado para o Brasil em 1993 após metade da pena.

Retorno ao Brasil

Após quase trinta anos na Europa, Tolentino reencontrou um Brasil muito diferente. Era o período de redemocratização, mas também de uma crítica literária especializada e acadêmica, e uma poética pós-João Cabral onde as palavras “antilirismo”, “concretude” e “objetividade” reinavam. Além disso, os livros de poesia apostavam em poemas curtos. Em carta de 93, seu primo Antonio Candido responde-o a respeito de um pedido de ajuda para a publicação de um livro: “Ele [o livro] é sem dúvida aberrante em relação ao que se faz atualmente no Brasil, onde (pelo menos na medida em que estou informado) a poesia se tem reduzido a poemas relâmpagos, aninhados em meia dúzia de linhas no meio da folha branca”.

Seu retorno ao Brasil seria, nas palavras de Arnaldo Jabor, o retorno da “peste clássica”. Na contramão das tendências da época, Tolentino lança seu 'As horas de Katharina' em 1994. Nele, aposta em longas sequências de sonetos, formas fixas e lirismo filosófico e espiritualizado. “Bruno mostrou que era possível atualizar formas do passado para fertilizar o presente, e que ‘pensamento’, ‘ser’, ‘luz’ eram tão poéticos quanto ‘pedra’ (para quem não sabe, ‘pedra’ era a palavra poética oficial, no final do século passado)” conta Érico Nogueira, poeta e professor da Universidade Federal de São Paulo.

Se sua poesia ia na direção contrária ao que era feito na época, no campo da crítica cultural Tolentino revelou-se o grande iconoclasta. Em setembro de 94, o poeta lançava uma crítica demolidora a uma tradução de Augusto de Campos. Pai do concretismo, junto a seu irmão Haroldo, já era então um dos mais consagrados tradutores do país, e também porta-voz da vanguarda poética que já há décadas havia se tornado o próprio establishment das letras brasileiras. Tolentino atacava um medalhão das letras nacionais, chamando Campos de “vaidoso prepotente”, “delirante autoritário” e sequer deixava escapar seu irmão: “Já está na hora de acabar com a admiração dos irmãos Campos no mundo da tradução brasileira: é tempo de que varram de cena as baleias encalhadas nas praias da história”. Estava deflagrada a “guerra das traduções”.

Campos não deixou barato. Responde Tolentino em tom arrogante, contrapondo os números de sua obra aos poucos livros do então desconhecido Tolentino e, claro, trocam insultos: “tolo, doente e cretino — Tolentino”, escreve como bom poeta concretista. Então faz um abaixo assinado pedindo a demissão de João Moura, editor que havia publicado a crítica de Tolentino, assinado por mais de 70 personalidades como Gilberto Gil, Caetano Veloso e Marilena Chauí. Tolentino retornava ao Brasil antecipando em décadas a onda do cancelamento.

Mais polêmicas

No ano seguinte Bruno publicaria seu livro 'Os deuses de hoje' e o resultado de sua “guerra das traduções”: o livro 'Os sapos de ontem', onde satiriza, sem trégua, cada um dos nomes que constavam no abaixo-assinado de Campos. A polêmica ainda se arrastaria e se desdobraria em outras, com muitas entrevistas reverberando o poeta sem papas na língua.

Mas ao mesmo tempo, suas polêmicas isolavam-no do mainstream. Se em 1996 lançaria seu 'A balada do cárcere', livro agraciado com os prêmios Cruz e Souza e Abgar Renault, os jornais apenas tinham espaço para seus ataques contra o estado das coisas da cultura brasileira. Naquele ano daria uma emblemática entrevista paras as páginas amarelas de Veja. Seu alvo? A academia — “Jamais educaria um filho meu numa escola ou universidade brasileira” — e show business — “É preciso botar os pingos nos is. Cada macaco no seu galho, e o galho de Caetano é o show biz. Por mais poético que seja, é entretenimento e entretenimento não é cultura”. Tudo isso teve seu preço. “Bruno voltou ao Brasil em 93 publicado pela Companhia das Letras, discutido pelo Jabor e já logo vencendo o Jabuti. Se tivesse ficado na dele, talvez entrasse para o rol de autores estudados na universidade”, diz Nogueira. E Sette-Câmara também acredita que isso pode ter-lhe custado seu lugar em nosso cânone literário: “São os universitários que vão garantir a sua presença e a sua respeitabilidade. Bruno Tolentino queria ser parte do mainstream, e só não foi porque não ganhou coluna em grande jornal e morreu sem entrar para a academia”.

“A ideia de que o país havia regredido culturalmente era forte para o Bruno” explica Renato Moraes, autor do romance 'Claridade' e amigo pessoal de Tolentino. “Ele era muito duro com os compadrios políticos que muitas vezes dão as cartas na carreira acadêmica, e percebia como isso fazia mal ao Brasil, por isso se indignava”, conclui.

Seus dois últimos livros, 'O mundo como ideia' e 'A imitação do amanhecer', lhe renderiam ainda dois prêmios Jabuti, mas sua obra segue pouco comentada e estudada.

Isolado, mas não só

Se com o passar dos anos o establishment lhe rejeitava qualquer mão amiga, um outro outsider compraria suas brigas. O filósofo Olavo de Carvalho, que também causaria alvoroço nas letras daquela movimentada década de 90 com a publicação do seu 'Imbecil coletivo', dedicaria muito de sua pena à defesa do poeta. “Busquei a amizade de Tolentino justamente após ter lido alguns de seus poemas, por julgar que valeria a pena ser amigo de um homem da envergadura espiritual requerida para escrevê-los”, escreveu em carta ao jornal Folha de S. Paulo, em 1996, uma das várias escritas em defesa do poeta.

A ele Olavo atribuiria a publicação de seu livro 'O jardim das aflições', que então existia apenas em apostilas para alunos e que o poeta havia lido ainda em rascunho: “Até 1994 prossegui meu trabalho de maneira discreta, retirado da agitação da mídia e sem procurar obter o menor reconhecimento público; foi ele [Tolentino] quem me convenceu a sair da toca e publicar 'O jardim das aflições'”, escreveu em outra carta publicada posteriormente no 'Imbecil coletivo'. Tolentino escreveria o prefácio de 'O jardim das aflições' onde se gabaria de ter “tirado da toca um urso cujo rosnado hoje amedronta muitas galinhas”.

Fim da vida

Tolentino faleceu em 27 de junho de 2007, no hospital Emílio Ribas em São Paulo, após uma falência generalizada dos órgãos. Era portador de HIV e havia lutado contra um câncer.

Com o passar dos anos, menos entregue à polêmica, reviu algumas de suas críticas. “Ele demorou anos para perceber, após sua volta ao Brasil em 1993, que o país tinha mudado muito. As universidades começaram a dominar a vida literária no Brasil. Se percebesse isso antes, Bruno teria tomado uma decisão tática de não atacar as universidades” explica Sette-Câmara, que acrescenta a recordação pessoal: “Ele mesmo me falou: ‘Pedro, os anos que você passou fora da universidade foram um harakiri. Não se faz nada no Brasil fora da universidade’”. Também Moraes ouviu coisa parecida: “No final, ele me dizia que a universidade era importante, que não havia como adquirir reconhecimento no Brasil fora dela”. E Nogueira, de forma ainda mais direta em um momento dramático: “No leito de morte ele me fez uma confissão em forma de conselho: ‘Não seja idiota como eu fui; evite polêmicas desnecessárias’”.

A obra de Bruno Tolentino voltou a ser editada recentemente pela É Realizações. Agora que muitos dos envolvidos nas polêmicas faleceram, podemos sonhar com uma redescoberta de sua poesia? É a esperança de Moraes: “Conhecer a poesia do Bruno me parece essencial ao país. Tenho esperança de que ele será lido e admirado. Uma poesia rica, com muitas referências culturais, tratando dos temas fundamentais da existência… Não é fácil achar tudo isso em um autor só, e a obra de Bruno tem tudo isso em doses enormes”.

Sette-Câmara, porém, alerta para o fato de que nada disso acontecerá sem esforço: “Alguém tem de assumir o Bruno, falar dele, explicar por que ele é bom. É assim com todo autor. Eu tenho de escrever a biografia, mas outras pessoas têm de escrever mais sobre ele também. O futuro é criado, ele não acontece sozinho”.

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