Associar um adversário político ao demônio em pessoa normalmente não passa de um atalho retórico rasteiro. Não é o caso de Saul Alinsky. Seu nome se tornou sensação perante o grande público 40 anos depois de sua morte, quando foi acusado de ser o verdadeiro mentor de lideranças do Partido Democrata, como Barack Obama e Hillary Clinton, e de, literalmente, ter saudado Lúcifer como emblema de suas teses em sua obra mais famosa.
Apesar disso, já nos anos 70, a revista Time dizia que “não seria exagero argumentar que a democracia americana vem sendo alterada pelas ideias de Alinsky”. Quem seria o misterioso ativista capaz de abalar as estruturas de um dos regimes políticos mais prestigiados do mundo?
O radical e suas teses
Nascido em Chicago, em 1909, filho de imigrantes judeus da Rússia, Alinsky se formou em Filosofia na universidade local em 1930 e se especializou em Arqueologia. Já não era, na fase em que se imortaliza como o personagem que hoje apimenta as discussões nos Estados Unidos, adepto de qualquer fé religiosa. Suas disposições íntimas se voltaram inteiramente para a causa de sua vida: a “organização comunitária” pelo poder.
A biografia de Alinsky contém uma página peculiar: sua relação, ainda como universitário, com o segundo em comando no grupo do mafioso Al Capone, Frank Nitti. “Eu o chamava de professor e me tornei seu aluno”, definiu para a revista Playboy. Depois de observar toda a dinâmica de trabalho da Máfia, o jovem ativista concebeu as teses que o fariam famoso. Não há dúvidas de que era um radical de esquerda, posição assumida sem qualquer constrangimento por ele próprio. Lúcifer (sim, o próprio Satanás), escreveu, era o “primeiro radical conhecido que se rebelou contra o establishment” com sucesso, afinal “ganhou seu próprio reino”. Tudo que Alinsky queria era repetir o feito, derrubando os “poderosos” na sociedade americana.
Suas ideias estão condensadas em seus principais livros, Reveille for Radicals (1946) e Rules for Radicals (1971), nenhum deles com traduções atualmente à venda nas livrarias do Brasil. Já no primeiro, ele dizia que os “radicais” como ele acreditam que os “direitos humanos” estão “muito acima dos direitos de propriedade” e defendem “educação pública livre e universal”, “pleno emprego” e “seguridade econômica”. Vai além: diz que deve ser garantida a todo ser humano a “satisfação dos desejos criativos” e que sonha com um futuro “onde os meios de produção econômica sejam possuídos por todos”.
Ainda assim, Alinsky não se notabilizou como ideólogo socialista ou comunista, expressões que não usava para se referir a si mesmo.
Seu segundo livro, mais conhecido no Brasil, não é uma exposição doutrinária, mas uma tentativa de sistematizar a resistência ao poder estabelecido, identificado por ele como a “classe média branca”.
Procurando fazer uma versão às avessas do clássico O Príncipe, de Maquiavel, Alinsky prescreveu 13 grandes regras para vencer o conflito político, ressaltando sempre a estratégia e desprezando qualquer preocupação com “pureza” ou “virtude”. “Poder não é só o que você tem, mas o que o inimigo pensa que você tem”, diz uma de suas normas. “Ridicularizar é a arma mais poderosa do homem”, diz outra.
Pressionar, retirar o oponente de sua zona de conforto, polarizar sempre, entre outras metodologias de enfrentamento “alinskyanas”, são consideradas, pelos críticos Republicanos, a base do ativismo das alas mais radicais do Partido Democrata e suas políticas baseadas em demandas identitárias e de minorias.
Só que Alinsky foi além da teoria. Com a premissa de organizar as comunidades e núcleos de “desprivilegiados” e assumir o controle social, ele fundou uma grande comunidade organizada, chamada Industrial Areas Foundation (IAF), estimulando a criação de várias outras organizações baseadas no mesmo modelo. Uma dessas organizações projetou ninguém menos que Barack Obama – e é nesse ponto que sua importância se revela tão atual.
Impacto na política americana
A influência de Saul Alinsky na política do moderno Partido Democrata não é algo inteiramente novo no discurso Republicano. Um jornalista conservador, David Brock, apontou, já em 1996, que Hillary Clinton, então esposa do presidente Bill Clinton, era uma “filhote de Alinsky” – acusação repetida em 2016 pelo médico Ben Carson, que disputou as prévias do Partido Republicano com Donald Trump.
Em 2008, jornalistas da Fox News, como Bill O’Reilly, Monica Crowley, Rush Limbaugh e Glenn Beck associaram a candidatura de Obama às teses e práticas ensinadas por Saul Alinsky. Mais do que isso: o próprio filho do intelectual, David Alinsky, escreveu no Boston Globe no mesmo ano que “a Convenção Nacional Democrata tinha todos os elementos de um evento perfeitamente organizado no estilo” de seu pai e que “o treinamento de Barack Obama em Chicago pelos maiores organizadores comunitários mostrou a eficiência do método”.
Já na eleição de 2012, um dos postulantes à nomeação Republicana, Newt Gringrich, repetiu enfaticamente que a batalha em curso nos Estados Unidos era uma batalha entre os valores americanos clássicos e uma elite inspirada nas regras de Alinsky. Qual o fundo de verdade nisso tudo?
A afirmação de que a monografia de Hillary foi sobre o autor de Rules for Radicals é indiscutível. No texto, francamente simpático às teses do organizador comunitário, ela comparou sua importância às de figuras como Walt Whitman e Martin Luther King. A Democrata também confirma seus laços pessoais de amizade com o controverso líder. Apesar disso, Hillary estabeleceu uma discordância com Alinsky que qualificou de “fundamental”: enquanto ele acreditaria apenas em uma mudança social produzida pelas suas organizações, ela acreditava que poderia mudar os Estados Unidos “de dentro do sistema”, o que o teria decepcionado.
O caso de Obama é diferente. O ex-presidente não teve nenhuma relação pessoal com Alinsky, tendo apenas uma década de vida quando o ídolo de Hillary foi vítima de um ataque cardíaco fatal. No entanto, o homem do slogan “Yes, we can” trabalhou como um organizador comunitário em Chicago entre 1985 e 1988 em uma associação chamada DCP, largamente influenciada pelas ideias de Alinsky. Embora sem mencionar o guru dos radicais pelo nome, Obama escreveu um capítulo do livro After Alinsky: Community Organizing in Illinois e treinou, em 1986, com a própria IAF.
Saul Alinsky para a “direita”
Mesmo que as relações de líderes da esquerda americana (chamada por lá de liberal) com o pensamento de Alinsky sejam comprovadas, ninguém fala mais abertamente no seu nome que os conservadores. Obama, durante as eleições de 2016, chegou a debochar da exploração de suas ligações com o ativista por parte dos adversários.
Mais do que denunciado, Alinsky conseguiu o feito de ser admirado – e, é claro, temido - por aqueles que teoricamente seriam seus maiores inimigos. O famoso jornalista conservador americano William Buckley Jr., que o entrevistou no programa “Firing Line”, disse que Alinsky estava “muito próximo de ser um gênio”.
Isso não é exclusividade dos Estados Unidos. Pouco comentado pelas esquerdas no Brasil, Alinsky é conhecido entre personalidades e analistas assumidamente liberais ou conservadores no país. O filósofo Olavo de Carvalho, por exemplo, chamou Alinsky de “revolucionário profissional” e páginas de sucesso na Internet, como o blog Ceticismo Político, com mais de 100 mil seguidores no Facebook, dizem se inspirar nas regras prescritas pelo polêmico ativista para devolvê-las contra a esquerda.
O mais recente capítulo da apreciação das teses de Alinsky no Brasil é o que promete ser o primeiro livro nacional dedicado a examinar suas orientações para a “guerra política”. Termina nos próximos dias a campanha de financiamento coletivo de Saul Alinsky e a Anatomia do Mal, de autoria do professor André Assi Barreto e do publicitário Márcio Scansani, em lançamento pela editora Armada.
Quem é o bilionário que financia a esquerda pelo mundo?
Publicado por Ideias em Quarta-feira, 18 de outubro de 2017