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Para os aproximadamente 220 mil filiados do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), Josef Stalin (1878-1953), Vladimir Lenin (1870-1924) e Leon Trotsky (1879-1940) não morreram. Os desentendimentos públicos entre os três principais líderes da revolução comunista na Rússia, que alcançaram o auge há exatos 100 anos, ainda reverberam nos encontros do partido brasileiro. Foi o que se viu em 1º de outubro, quando uma fala de um militante a respeito de Trotsky desencadeou uma pancadaria no palco do PSOL. A reunião levou a historiadora Paula Coradi à presidência da legenda até 2026.
Em linhas gerais, Trotsky era defensor da internacionalização da Revolução e da redução da burocracia em nome do poder do proletariado, organizado seguindo moldes militares. No detalhe, ele passou duas décadas em desentendimento com outros líderes bolcheviques, especialmente Lenin, acerca de questões teóricas a respeito de como o comunismo deveria ser implantado e gerido.
Sobre a questão de como deveria ser organizada a força de trabalho, por exemplo, ele defendia “um regime em que cada trabalhador se sente um soldado do trabalho, que não pode dispor de si mesmo livremente; se for dada ordem de transferência, ele deverá cumpri-la; se não o fizer, será um desertor que será punido. Quem cuida disso? Os sindicatos. Eles criam o novo regime. Esta é a militarização da classe trabalhadora”.
Como definiu o historiador Vladimir Cherniaev, em artigo publicado no livro ‘Critical Companion to the Russian Revolution’ [Compêndio Crítico da Revolução Russa, em tradução livre], “Trotsky tem uma grande responsabilidade tanto pela vitória do Exército Vermelho na guerra civil como pelo estabelecimento de um Estado autoritário de partido único com o seu aparato para suprimir impiedosamente a dissidência”.
Ele foi um ideólogo e praticante do Terror Vermelho, prossegue Cherniaev. “Desprezava a ‘democracia burguesa’; acreditava que a covardia e a brandura destruiriam a revolução e que a supressão das classes proprietárias e dos oponentes políticos limparia a arena histórica para o socialismo. Ele foi o iniciador dos campos de concentração, dos ‘campos de trabalho’ obrigatórios, da militarização do trabalho e da tomada do poder pelos sindicatos pelo Estado. Trotsky esteve implicado em muitas práticas que se tornariam padrão na era Stalin, incluindo execuções sumárias”.
Família de posses
O pensamento de Trotsky foi formalizado em uma série de livros e artigos que ele publicou ao longo da vida – o líder foi um dos expoentes, por exemplo, da primeira versão do jornal Pravda (nome que significa “A Verdade”), do qual participou em 1908. Sua produção continua sendo debatida intensamente no meio acadêmico brasileiro, em artigos, livros e seminários. Análises publicadas no exterior são traduzidas e obras do autor, relançadas. Lideranças e parlamentares dos partidos brasileiros de esquerda fazem excursões a locais importantes da biografia do ideólogo.
Em muitos destes conteúdos, a aura mítica é reforçada pelo fato de ele ter sido preso e exilado por diversas vezes antes da tomada de poder, e posteriormente afastado por Stalin, em 1927, e assassinado a golpe de picareta no México, em 1940. “Com o assassinato de Leon Trotsky – este inimigo implacável da burocracia que havia usurpado o poder das mãos do proletariado revolucionário – completou-se o extermínio contrarrevolucionário por Stalin de uma longa lista de líderes e participantes da Revolução de Outubro. Assim, Stalin foi confirmado como o coveiro da revolução bolchevique – um título concedido a ele por sua vítima muito antes”, escreveu o neto de Trostky, Esteban Volkov, falecido em junho de 2023.
Trotsky iniciou a trajetória revolucionária muito cedo, em 1897, no início de uma graduação em matemática na Universidade Nacional de Odessa – curso que abandonou para participar da organização de movimentos grevistas. Ele chegou à instituição de ensino com apoio de seu pai, David Leontyevich Bronstein, um fazendeiro rico instalado onde hoje fica a cidade de Bereslavka, na Ucrânia.
“Meu pai era agricultor, de condição modesta a princípio e que depois se tornou abastado. Era ainda muito moço quando deixou com a família uma pequena localidade judaica do governo de Poltava, indo tentar fortuna nas livres estepes do sul”, ele registraria em sua autobiografia, escrita na fase de exílio na Turquia, a partir de 1929.
David deu ao filho o nome de Lev Davidovich Bronstein. Lev assumiria o codinome Trotsky ao deixar o exílio na Sibéria em 1902. Seria o nome de um dos guardas que conheceu durante os períodos de detenção. O primeiro deles o marcou em especial, segundo sua própria descrição. “Não tinha roupa para mudar”, relataria. “Durante três meses, vesti a mesma roupa de baixo. Não tinha sabão. Os parasitas que se encontravam, em geral, nas prisões, me devoravam. Impunha-me a mim mesmo andar em diagonal mil cento e onze passos. Ia fazer então 19 anos.”
Vida na Europa
Como acontecia com frequência entre os líderes revolucionários que tentaram derrubar o regime czarista em 1905 e depois seriam bem-sucedidos em 1917, Trotsky alternou períodos em prisões com fases em que viveu com certo conforto em diferentes cidades europeias – no seu caso, a lista inclui Londres, Munique, Genebra, Paris, Viena e até mesmo Nova York. Ainda em 1903, já se desentendia com Lenin a respeito dos caminhos que a Revolução deveria tomar.
Os dois seguiriam discutindo até o fim da vida. Trotsky conduziu as negociações que levaram ao Tratado de Brest-Litovsk, o acordo de paz firmado entre o império alemão e a Rússia bolchevique em 3 de março de 1918. Mas foi voto vencido: considerava os termos desiguais e queria que o texto não fosse assinado. Posteriormente, em 1920, seria a favor da busca por um acordo que encerrasse a guerra contra a Polônia – demoraria a ser ouvido, e o conflito só seria encerrado no ano seguinte, com grandes perdas para as forças russas.
Além de zelar pelas relações exteriores no período que marcou o fim da Primeira Guerra, o revolucionário criou as bases do Exército Vermelho. Foram suas as principais contribuições práticas para o novo regime. No mais, especialmente a partir da morte de Lenin, em 1924, viu sua influência diminuir e o poder de Stalin crescer. Quando de sua morte em 1940, boa parte de seus aliados, além da primeira de suas duas esposas, já haviam sido presos e assassinados a mando do regime de seu adversário político.
“O instrumento principal dessa transformação é Stalin, homem prático, tenaz e perseverante. O seu horizonte político é muito limitado, o seu nível teórico absolutamente primitivo”, Trotsky criticaria na autobiografia, seguindo um tom que manteria até o fim da vida.
Na Rússia, até hoje, Trotsky nunca teve seu papel revisto. Ao contrário, em 2017, chegou à Netflix uma produção bancada por Moscou, inicialmente criada para a TV pública russa PevryKanal, em que o líder é retratado como um vilão de sua própria história. Quanto ao assassino, que agiu a mando de Stalin, o espião espanhol Ramón Mercader cumpriu pena de 20 anos no México, depois se mudou para a União Soviética, onde ganhou um posto de general. Morreria em Havana, Cuba, em 1978.