Sem alternativas comparáveis no mercado, boicotar redes sociais como o Twitter seria o mesmo que boicotar a ponte e atravessar o rio a nado, na opinião do juiz da Suprema Corte Clarence Thomas| Foto: EFE/ Sascha Steinbach
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No mesmo dia em que a Suprema Corte dos EUA julgou não haver proteção constitucional ao aborto e devolveu a decisão para cada estado legislar por conta própria, permitindo que os conservadores criassem leis para proteger os nascituros, bancos, empresas de tecnologia e entretenimento, como Disney, Netflix, WarnerBros, Airbnb e Meta (antigo Facebook), anunciaram que vão custear viagens para funcionárias que desejem acessar serviços de aborto em outros estados. É comum que a reação inicial a notícias assim, quando empresas deixam de lado seu fim (oferecer bons produtos e dar lucro) para assumir posições políticas, seja de sugerir o cancelamento de assinaturas, a busca por alternativas conservadoras e a necessidade de evitar o consumo de produtos das companhias woke. Mas até que ponto é possível boicotar todas as empresas que apoiam e disseminam ideologias progressistas para vencer a militância corporativa, sendo que muitas delas dominam seus setores de atuação de maneira quase monopolista?

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É evidente que há situações em que o boicote funciona muito bem. A aposta nada velada da Disney em uma forte agenda de gênero, por exemplo, tem mostrado reflexos negativos na audiência e, inclusive, nas ações da companhia. O fracasso mundial de bilheteria da animação “Lightyear”, proibida em vários países por trazer uma cena de beijo gay, é uma evidência concreta de como a entrada da produtora na guerra cultural tem afastado famílias que buscam entretenimento livre de ideologias.

O poder de escolha do consumidor também se fez sentir pela Netflix que, depois de perder assinantes, recuou em projetos de justiça racial e se recusou a cancelar o especial de Dave Chappelle, mesmo enfrentando protestos de funcionários que consideraram o conteúdo “nocivo”. Outra plataforma de streaming que percebeu que não seria vantajoso se render às exigências do politicamente correto foi a Paramount, que optou por não retirar do catálogo produções antigas tidas atualmente como "inapropriadas".

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No Brasil, na última semana, a rede varejista de brinquedos Ri Happy enfrentou a reação de pais indignados com um vídeo publicado em suas redes sociais, em que incentivava a brincadeira sem gênero. “A brincadeira não tem que ter gênero, a brincadeira precisa agregar na vida da criança”, comentava o influencer Luke Vidal, no vídeo. Usando a hashtag #BoicoteRihappy, os consumidores protestaram nas redes contra a agenda de gênero promovida pela marca e prometeram não comprar mais na loja, o que levou a empresa a apagar o conteúdo.

Boicote, desinvestimento e sanções 

Um dos defensores do boicote ao que chama de “Marxismo Americano” - título, aliás, de seu mais recente livro - é o apresentador conservador de rádio e TV Mark Levin. Para ele, não basta votar em candidatos conservadores, é preciso haver uma campanha nacional de boicote a empresas, equipes esportivas e mídias sociais que buscam cancelar vozes dissidentes e instituir políticas controversas, como a teoria crítica de raça (que defende que os EUA são uma nação racista). Para isso, Levin defende que os “patriotas americanos” adotem elementos operacionais semelhantes aos usados pelo movimento BDS (sigla que quer dizer “boicote, desinvestimento e sanções”) contra Israel.

"Nós usamos as táticas deles. Não as violentas. Aprendemos com o movimento BDS. (...) Precisamos ter um movimento BDS contra as Big Tech e se não forem as Big Tech, então seus anunciantes. Eles não podem sobreviver sem seus anunciantes. Eles pegam nossos dados, roubam de nós, vendem uns aos outros [e] vendem para entidades comerciais. Precisamos descobrir quem são essas entidades comerciais. Precisamos de BDS nas principais redes de televisão, assim como a esquerda faz", disse Levin, em entrevista ao jornal israelense Israel Hayom.

"Abandonei o Twitter e o Facebook por conta própria. Dei a eles cerca de um mês. Trouxe o máximo de pessoas que pude para Parler. (...) Eu disse a todos: 'Vamos para o Parler.' Não vou ser censurado. Chega de letras escarlates. Não preciso de bilionários malucos de esquerda como Mark Zuckerberg ou o bobão de barba Jack Dorsey [ex-diretor executivo do Twitter] me dizendo o que fazer e colocando todas essas condições e censura", contou, fazendo referência à plataforma alternativa usada por seguidores de Donald Trump e por conservadores de todo o mundo, que acabou suspensa por Google, Apple e Amazon no ano passado.

Admitindo que “uma das válvulas de alívio é a fala”, Levin acredita que esse movimento de silenciamento promovido pelas redes sociais deve provocar uma reação nos cidadãos. "Você não pode continuar tratando 100 milhões de pessoas dessa maneira e esperar que não haja resposta. É por isso que digo à esquerda: 'Você fala sobre incitação? Você está empurrando as pessoas a um ponto que me assusta muito’.”

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Para a maioria das pessoas comuns, sair do Facebook ou do Twitter pode representar não ter mais um local para expressar suas opiniões e se comunicar com amigos. “Meu conselho é apenas dar um ano. E então outras empresas vão aparecer”, afirma Levin. "A água sempre encontra as rachaduras. A liberdade sempre encontra as rachaduras. Nós vamos encontrar as rachaduras e vamos usá-las e explorá-las. Vamos competir contra essas pessoas de uma vez por todas. O que rejeitamos é a tentativa deles de nos esmagar, e sua tentativa de usar o governo para beneficiá-los. É nisso que precisamos lutar. Então ou você está nessa luta ou não. Dê o fora daqui. Tente outros sites. Ainda temos mais maneiras de nos comunicar do que há 20 anos", assegura.

Boicotar a ponte atravessando o rio a nado 

Para o juiz conservador da Suprema Corte dos Estados Unidos Clarence Thomas, há potenciais abusos na proteção legal a empresas de tecnologia, o que permite às plataformas um amplo patrulhamento das falas em seus domínios e até o cancelamento de contas. “Aplicar doutrinas antigas a novas plataformas digitais raramente é simples”, ponderou Thomas, em uma decisão do Supremo sobre o bloqueio do ex-presidente Donald Trump por parte do Twitter.

Boicotar essas redes sociais, nesse caso, teria um limite, já que não há alternativas comparáveis no mercado, o que ocorre com muitos outros serviços atualmente. "Não muda nada que essas plataformas não sejam os únicos meios de distribuição de discurso ou informações. Uma pessoa sempre pode optar por evitar a ponte ou o trem com pedágio e, em vez disso, nadar no rio Charles ou caminhar pela trilha do Oregon", escreveu Thomas, fazendo referência ao fato de que não é tão simples boicotar tais serviços como muitos alegam. "Mas ao avaliar se uma empresa exerce poder de mercado substancial, o que importa é se as alternativas são comparáveis. Para muitas das plataformas digitais de hoje, nada é", completou.

Mais do que deixar de usar os serviços, portanto, a saída estaria na regulamentação governamental. Ou seja, para o juiz, as empresas de mídia social deveriam ser regulamentadas como uma operadora de telefonia comum (que não pode impedir uma pessoa de fazer uma ligação, independentemente do conteúdo), uma vez que são "suficientemente semelhantes".

Pesquisar para boicotar 

Uma pesquisa promovida recentemente pelo mercado de empréstimos online LendingTree apontou que um quarto dos americanos está boicotando um produto ou empresa em que consumiram no passado. As motivações vão de divergências políticas a posicionamentos em questões sociais, ambientais e tratamento dispensado a funcionários. Entre os segmentos mais propensos a boicotar empresas e produtos estão os ganhadores de seis dígitos (37%), geração Z (32%), Millennials (28%), democratas (31%) e republicanos (24%). Também os destinos turísticos são alvos de boicote: 24% disseram excluir locais de seus itinerários por divergências políticas ou legislativas.

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O problema é que um consumidor que decida boicotar todas as empresas e produtos que promovam ou apoiem questões políticas e sociais de sua discordância talvez não consiga comprar nada no supermercado ou no shopping. O nível de informação necessário sobre as empresas com as quais se faz negócios diariamente também é um fator limitante à estratégia do boicote, uma vez que se manter atualizado sobre isso requer tempo e esforço nem sempre disponíveis.

“Estamos todos tão exaustos e sobrecarregados com todos os problemas que surgem todos os dias, então eu diria que se escolha um ou dois problemas que estão próximos e queridos ao seu coração. Você não pode fazer tudo de uma vez. Então, quais são os problemas que te sensibilizam? Então, olhe para os produtos e serviços em sua vida, aqueles com os quais você entra em contato diariamente, e observe o alinhamento entre esses produtos e essas questões", aconselhou Adrianne Wright, fundadora e executiva-chefe da Rosie (uma agência de storytelling para organizações sem fins lucrativos), em entrevista à agência de notícias Reuters.

Estudos científicos mostram uma tendência de queda no número de pessoas que participam de um boicote com o passar do tempo. Pouco ainda se sabe sobre que tipo de consumidor tem mais probabilidade de abandonar os boicotes primeiro e por que a participação individual diminui, mas as pesquisas sugerem uma fase de aquecimento e uma de resfriamento, com diferentes hipóteses sobre promotores e inibidores de participação (como distância temporal, potencial de mudança no comportamento da empresa, custos subjetivos, qualidade do serviço e comportamento amigável dos funcionários de linha de frente).

Perda de privilégios 

“Boicotes podem ou não funcionar, mas o que funcionará é identificar todos os benefícios exclusivos que essas empresas woke obtêm sob a lei e removê-los e exigir que operem como todas as outras empresas nesses estados”, afirma Russ Vought, que foi diretor do Escritório de Administração e Orçamento dos EUA entre julho de 2020 e janeiro de 2021, presidente do Center for Renewing America.

De fato, nos estados americanos liderados por republicanos têm crescido legislações “anti-woke”, na tentativa de pressionar Wall Street contra a militância corporativa. De acordo com um levantamento da agência de notícias Reuters, somente neste ano, há pelo menos 44 projetos de lei ou novas leis, em 17 estados norte-americanos liderados por conservadores, penalizando negócios que apostaram em identitarismo. No ano passado, essas medidas eram cerca de uma dúzia.

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Os estados de West Virginia e Arkansas, por exemplo, pararam de usar a BlackRock para certos serviços, devido à sua postura climática, segundo informou o tesoureiro republicano de West Virginia, Riley Moore, e reportagens de veículos do Arkansas. “Eles estão usando o poder de seu capital para empurrar suas ideias e ideologias para o resto de nós”, afirmou Moore.

Maior gestora de fundos do mundo e responsável pela popularização do ESG, a BlackRock aproveita seu poder financeiro para obrigar as empresas nas quais investe a cumprir uma agenda agressiva de mudança climática e diversidade em suas operações.

O legislador republicano do Texas, Briscoe Cain, também planeja uma legislação para proibir a cobertura de custos de viagem para aborto e para impedir que as empresas que a fornecem fechem qualquer negócio ou contrato com o estado do Texas. "Nenhuma corporação que faça negócios no Texas terá permissão para subsidiar abortos ou viagens de aborto de qualquer maneira", disse à Reuters.

As novas restrições devem tornar mais difíceis uma série de negócios entre as financeiras e os estados, como subscrição de títulos e gerenciamento de fundos estatais. O que está em jogo são vários milhões de dólares em cada contrato. No ano passado, por exemplo, o JPMorgan subscreveu US$ 3,2 bilhões em títulos municipais do Texas, contra apenas US$ 210 milhões até agora, em 2022. Já o Bank of America, que no ano passado subscreveu US$ 3,7 bilhões em títulos municipais naquele estado, neste ano ainda não saiu do zero.

Infográficos Gazeta do Povo[Clique para ampliar]
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