Persistente entre as vítimas de estupro, o silêncio é o comportamento responsável por esconder a identidade de quem sofre a violência de um dos crimes mais subnotificados que existem. Caladas, elas são mulheres que saem cedo para trabalhar, pertencem a diferentes etnias e classes sociais, são universitárias, militares, já passaram dos 18 anos ou ainda não se tornaram maiores de idade. O agressor, apesar de não escolher um perfil específico, refina a busca ao procurar as melhores condições e circunstâncias para cometer o delito.
Traçar um perfil das vítimas de estupro no Brasil depende da quebra deste silêncio. Hoje, a estimativa é que apenas 10% de 527 mil tentativas ou estupros consumados por ano cheguem a ser registrados na papelada formal da polícia, aponta um levantamento do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Mas isso não é um problema apenas no país. Nos Estados Unidos, segundo um estudo do departamento de Justiça americana, 64% das mulheres vítimas de estupros, entre 2005 e 2010, não reportaram o crime à polícia.
Esse cenário ocorre, segundo a advogada de um dos primeiros escritórios feministas do Brasil, Júlia Borges, porque essas vítimas, na maioria das vezes, “não se reconhecem como sujeito de direitos”. Além disso, há também uma espécie de naturalização da violência contra a mulher. “Muitas vítimas não têm condições psicológicas de assumir suas condições de vítimas, são impedidas de denunciar por algum motivo ou ainda desacreditam políticas públicas e as próprias leis”, pontua Júlia.
A coordenadora-geral de Políticas para Mulheres da Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania, de São Paulo, Gislaine Caresia, assinala que uma série de fatores afeta a decisão de silenciar o registro do crime. “As vítimas sentem inseguras porque têm medo do agressor em razão da impunidade, pelo julgamento social, por falta de informação e também por serem responsabilizadas pela violência sofrida”, analisa ela, ao salientar que o importante é detalhar o perfil do agressor, não o da vítima. “Qualquer mulher pode ser uma possível vítima”, acrescenta.
No Brasil, as mulheres correspondem a 89% das vítimas de estupro. Em 2015, foram levantados 45,4 mil casos de estupro de mulheres e homens – uma marca de 125 vítimas por dia, conforme o Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2016, o último disponível. Os números continuam elevados, apesar da redução de 10% em relação a 2014, quando foram registradas 50,4 mil ocorrências.
Vulnerabilidade
Um pesquisa do Ipea mostra quem é o público mais vulnerável ao crime de estupro. Entre 2011 e 2014, as crianças e adolescentes corresponderam a 69,9% das vítimas. Cerca de 40% dos estupradores pertenciam ao círculo familiar, incluindo pai, padrasto, tio, irmão e avô. Também foi verificado que mais de 10% das pessoas agredidas sofriam de alguma deficiência física e/ou mental.
Ao refinar a busca pelas vítimas, o agressor também procura melhores condições para a prática do delito, como local, movimentação, iluminação. Nessas circunstâncias, trabalhadoras que saem cedo para pegar o ônibus acabam sendo alvo. Segundo dados do Núcleo de Apoio à Vítima de Estupro (Naves) do Ministério Público do Paraná, 10% das vítimas são atacadas entre 5h e 8h, muitas vezes abordadas em locais com pouca movimentação e quando ainda está escuro.
Outra situação bastante comum, observa a advogada Júlia Borges, é que meninas não sabem dar nome à violência que viveram. A Organização Mundial de Saúde (OMS) estima que 16% das mulheres brasileiras já foram estupradas por seus companheiros. Na maioria dos casos, elas eram forçadas a manter relações sexuais com seus parceiros, mas não sabiam que estavam sendo vítimas do crime.
Naturalização da violência
Segundo pesquisa Instituto Patrícia Galvão e Instituto Locomotiva 2016, apenas 11% das entrevistadas afirmaram já ter sofrido alguma forma de violência sexual, número que sobe a 39% quando são apresentadas a uma lista de situações que se configuram como agressões sexuais. Por esses cálculos, é possível estimar que 30 milhões de brasileiras já foram vítimas de violência sexual.
Já em relação aos homens, espontaneamente, apenas 2% admitem ter cometido violência sexual. Diante da lista de situações, 18% reconhecem ter praticado a violência.
De acordo com o Código Penal Brasileiro, estupro é o ato de “constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso”. Com penetração genital ou não, o contato sexual que não tem consentimento de ambas as partes é considerado estupro.
Agressões em locais públicos
A socióloga e diretora-presidente da ONG Nova Mulher, de São Paulo, Marcia Victoriano, que acompanha de perto o caso do homem que ejaculou no pescoço de uma mulher em um ônibus, avalia que possíveis vítimas estão em todo lugar porque o agressor não escolhe um perfil. “O agressor acha que não vai acontecer nada contra ele. Ainda conta com a vergonha e o medo da vítima, e pega a pessoa absolutamente despreparada”, argumenta. Ela chama atenção para os estupros que ocorrem fora de casa.
Dos 1378 boletins de ocorrências registrados na capital paulista, 32% (457) aconteceram em locais públicos. Ela refere-se ao levantamento da Globo News, feito por meio da Lei de Acesso à Informação, que mostrou que uma mulher é estuprada em locais públicos a cada 11 horas na cidade de São Paulo. Entre janeiro e julho deste ano, os pontos onde mais aconteceram as agressões foram instituições de ensino (51), transporte público (25), bares, baladas e cafés (21) e em consultórios médicos (19).
Júlia, que também é professora universitária, comenta que os números de agressões nas instituições de ensino são preocupantes. Embora mulheres com acesso à educação possam ser mais bem informadas, muitas silenciam por constrangimento, enfatiza. Na USP, por exemplo, um comissão de investigação, criada por pressão depois de casos que ganharam repercussão em 2011, apontou 112 estupros dentro da universidade. Mas, os números fogem da realidade.
A pesquisa "Violência contra a mulher no ambiente universitário", realizada pelo Instituto Avon e pelo Data Popular, em 2015, revelou que 14% dos homens e mulheres estudantes conhecem casos de mulheres estupradas. Entre os homens, 13% disseram já terem cometido pelo menos um tipo de violência sexual, e 28% das mulheres já sofreram algum tipo de violência dessa natureza.
Por que elas não denunciam?
“Não quero impunidade de criminoso sexual, mas também não quero me submeter à violência do Estado”. A frase é de Clara Averbuck, vítima de estupro durante uma corrida de Uber, em São Paulo. “O crime de estupro é o único que tem que ser provado pela vítima. Existem diversas perguntas feitas na apuração dos fatos que culpam a vítima ou até mesmo tentam explicar e justificar o delito”, critica a representantes de Políticas para Mulheres da Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania, de São Paulo, Gislaine Caresia.
A impunidade é o principal motivo para que um homem cometa uma violência sexual contra uma mulher. É o que consideram 76% das mulheres e 67% dos homens entrevistados, segundo pesquisa do Instituto Patrícia Galvão e Instituto Locomotiva. Quando questionados sobre o que acham que acontece com um homem que comete violência sexual, 52% consideram que não acontece nada, enquanto 29% acreditam que o agressor é preso.
Ainda, para 59% dos entrevistados, as vítimas de violência sexual que denunciam não recebem o apoio de que precisam e que 54% acreditam que as vítimas não contam com o apoio do Estado para denunciar o agressor. Para 74% dos entrevistados, nenhum delegado deveria perguntar para uma mulher vítima de estupro como ela estava vestida e 54% acreditam que procurar uma justificativa para o estupro no comportamento da vítima significa culpar a mulher. Nove de dez entrevistados (90%) consideram que quem presencia ou fica sabendo de um estupro e fica calado também é culpado.
Quando a vítima é do sexo masculino
Um estudo feito nos Estados Unidos revelou que um em cada seis homens sofreu algum tipo de abuso antes dos 16 anos no país. No Brasil, o Disque Denúncia (o Disque 100, serviço nacional de denúncia de abuso e exploração sexual contra crianças e adolescentes), registrou em 2014 uma média diária de 13 denúncias de abusos de meninos.
Fatores culturais, como o machismo e a herança da masculinidade exacerbada, contribuem para o ocultamento e vitimização sexual dos meninos. “Há relatos de que ser violentado poderia significar indício de homossexualidade, deixando a vítima com vergonha”, comenta Gislaine.
Qual é o caminho?
Ainda que a maioria das vítimas seja silenciada, os dados oficiais chamam a atenção para a gravidade do problema de violência de gênero no país e para a necessidade de elaboração de políticas públicas. Segundo Gislaine, as informações do crime de estupro devem ser esclarecidas para toda a sociedade. “Fazer um acolhimento respeitoso, sem questionamentos morais e de conduta ou descrédito e que respeite a autonomia da mulher são meios para incentivar as vítimas a procurarem ajuda e, consequentemente, diminuir a incidência das violências.”
A palavra da vítima
A denúncia é a principal arma da vítima para tentar frear e punir os agressores. Como a maioria dos casos não tem testemunhas e em muitas situações não há vestígios físicos, a palavra da vítima tem força nas decisões judiciais. Segundo especial da Gazeta do Povo, publicado em 2016, o depoimento da vítima é, sim, valorizado. Ao todo, 156 decisões no STJ (Supremo Tribunal Federal) foram tomadas com base no testemunho da vítima para a condenação do acusado.
Onde buscar ajuda
Quem precisar de ajuda ou esclarecer dúvidas deve recorre aos contatos da Polícia Militar (190), Polícia Civil (197) e o Disque 100, da Secretaria Especial de Direitos Humanos. A Central de Atendimento à Mulher, mais conhecida como Ligue 180, também é um canal de comunicação importante para as mulheres de todo o país. Desde sua criação em 2005, a Central de Atendimento à Mulher – Ligue 180 já registrou 5.965.485 atendimentos.
Em 2016, a central bateu recorde de 1.133.345 atendimentos, sendo que 12,38% (140.350) corresponderam a relatos de violência. Destes, 50,70% diziam respeito à violência física; 31,80%, violência psicológica; 6,01%, violência moral; 5,05%, violência sexual. Segundo o balanço, as mulheres negras (pretas e pardas) representam a maioria das vítimas (60,53%), seguidas pelas mulheres brancas (38,22%), amarelas (0,76%) e indígenas (0,49%).
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