Do “America First” de Donald Trump aos partidos que defendem a saída da União Europeia em países como o Reino Unido, a Holanda ou a França, os ideais nacionalistas têm ganhado força nos últimos anos. Mas o Brexit teve um efeito inesperado: ao mesmo tempo em que Londres deixou a UE, a própria unidade interna do país parece estar a perigo, com a ascensão de grupos nacionalistas de outro tipo dentro de suas próprias fronteiras. Desde o referendo que determinou a saída da Grã-Bretanha do bloco europeu, o debate sobre independência voltou a ganhar força na Escócia e na Irlanda do Norte – por lá, nacionalismo não é bandeira de grupos de direita, mas dos partidos historicamente identificados com a esquerda.
Quando os britânicos foram convocados às urnas para decidir seu futuro na Europa, em junho do ano passado, a mensagem das nações menores que compõem o Reino Unido foi clara: na Irlanda do Norte, quase 56% dos eleitores votaram a favor da permanência na UE; na Escócia, a vontade de permanecer no bloco econômico foi ainda mais forte, chegando a 62% da população que participou do pleito. A preferência do eleitorado nessas regiões, porém, acabou sendo voto vencido: muito mais populosa, a Inglaterra – contrária à permanência – superou com folga os números dos vizinhos e carregou a Grã-Bretanha inteira para uma nova fase em sua história.
Indignação escocesa
Recebido com surpresa no mundo inteiro, o resultado gerou um sentimento de traição entre os escoceses, que se sentiram apunhalados pelas costas: em 2014, o país dos kilts e das gaitas de foles havia rejeitado a própria independência em um referendo local, e um dos pontos principais pelos que defendiam seguir dentro do Reino Unido era a continuidade na União Europeia. Uma Escócia independente, argumentavam, ficaria excluída do continente. A Espanha seria a principal adversária para a entrada do país na UE, querendo transformar os escoceses em um exemplo desencorajador para as regiões separatistas que existem dentro de seu próprio território – casos do País Basco e da Catalunha.
Desde o Brexit, a situação mudou de figura. O Partido Nacional Escocês (SNP, na sigla em inglês), que domina a participação do país na Câmara dos Comuns em Londres – detém 54 dos 59 assentos destinados à Escócia –, voltou a se movimentar na direção de um novo referendo pela independência, ignorando a derrota recente. No início de abril, Alfonso Dastis, Ministro de Relações Exteriores da Espanha, indicou que seu país não vetaria mais a candidatura escocesa a um lugar na UE, caso a separação se concretizasse: “nós não queremos que a independência aconteça. Mas, se ela ocorrer legal e constitucionalmente, não vamos bloquear [a entrada do país na UE]”.
Comentaristas políticos britânicos têm apontado que o Brexit fortaleceu a causa separatista na Escócia, não apenas pela questão nacional, mas também na preferência política dos eleitores locais. O Brexit foi uma bandeira dos partidos conservadores britânicos e o SNP, que já tinha ampla maioria eleitoral, costuma receber os votos do centro e da esquerda. “O erro crucial que os oponentes do SNP fizeram é vê-lo apenas através do prisma da identidade nacional, o que os faz ignorar por que tantos cidadãos se aproximaram do partido”, escreveu Robert Somynne, comentarista de assuntos escoceses do jornal The Guardian.
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Segundo especialistas no tema do nacionalismo escocês, o que move o SNP é um sentimento exatamente oposto àquele dos ingleses: se o Brexit teve, além dos fatores econômicos, um forte argumento racial no sentido de fechar as fronteiras aos imigrantes, o SNP estaria ganhando votos por apostar na inclusão daqueles que adotaram a Escócia. Mesmo Stephen Daisley, analista que foi demitido do canal escocês STV após causar polêmica por seus comentários contrários ao SNP, havia comentado nesse sentido: “reduzindo aos termos mais simples, o Ukip (Partido de Independência do Reino Unido, defensor do ‘Brexit’) quer que menos pessoas sejam inglesas, enquanto o SNP quer que mais pessoas sejam escocesas”, escreveu em um artigo de 2015.
Nova chance para a Irlanda Unida
Na Irlanda do Norte, o ressurgimento do nacionalismo é ainda mais surpreendente do que na Escócia. O país existe com suas fronteiras atuais desde 1921, quando o restante da ilha, de maioria católica, obteve a independência e formou a República da Irlanda, também conhecida como Eire. O Norte, de maioria protestante e favorável à continuidade como parte do Reino Unido, passaria as décadas seguintes sofrendo com o terrorismo de grupos nacionalistas como o IRA (sigla em inglês para Exército Republicano Irlandês), que pregavam a independência de toda a ilha.
Os conflitos entre os unionistas – pró-Reino Unido – e os republicanos nacionalistas deixaram mais de 3,5 mil mortos desde os anos 1960, num período conhecido como “The Troubles” e encerrado apenas em 1998, após a assinatura de um cessar-fogo. Desde então, as relações entre a Irlanda do Norte e o Eire melhoraram consideravelmente: os controles de fronteira deixaram de existir e os atentados e conflitos religiosos pararam de ocorrer. Além disso, bebês nascidos no Norte passaram a ter direito à cidadania irlandesa – da República –, vantagem legal que pode estar sob ameaça no momento em que apenas um dos lados for integrante da União Europeia.
Principal partido nacionalista da região, o Sinn Féin (nome em gaélico irlandês que significa “nós mesmos”) também ganhou votos na repercussão do Brexit: nas eleições para o parlamento norte-irlandês celebradas no último dia 2 de março, pela primeira vez na história do país os partidos pró-Reino Unido não obtiveram a maioria dos assentos. Instrumental para a independência do Eire e historicamente criticado por suas ligações com o IRA, o Sinn Féin defende a ideia de uma Irlanda Unida, também apoiando projetos de esquerda em outros aspectos da política: no Norte, é o principal partido a favor da legalização da maconha e do aborto, entre outras medidas rejeitadas pela maioria dos britânicos.
“O nacionalismo de grandes Estados, como o Reino Unido, a Alemanha ou a França, é normalmente de direita e imperialista”, diz o historiador Tommy Graham, editor da revista Ireland History e professor do Griffith College de Dublin, em entrevista à Gazeta do Povo. “Mas eu seria cauteloso em ver o nacionalismo irlandês como sendo inerentemente progressista. A Irlanda pós-independência foi extremamente conservadora”, argumenta.
Para Graham, as políticas de esquerda do Sinn Féin podem ser “mais táticas do que por princípios”, mas estão ajudando o partido a surfar na onda pró-europeia e pró-Eire que ganha força no Norte. Segundo o historiador, a grande novidade trazida na sequência do Brexit é o prospecto realista de uma Irlanda Unida: “é preciso voltar até a década de 1790 [antes de as diferenças religiosas entrarem na política irlandesa] para encontrar a última vez em que isso foi possível”, sustenta o especialista.