Perder um braço ou uma perna, seja por acidente ou consequência de alguma doença, é um momento de grande sofrimento para uma pessoa, assim como para todos que a cercam. A amputação de um membro geralmente é a medida mais extrema, tomada quando não há alternativa de tratamento que garanta qualidade de vida para o paciente, e que só é tomada após avaliação criteriosa por parte dos médicos. Ninguém tomaria um caminho tão drástico por simples vontade própria. Ninguém, exceto os assim chamados “transficientes”.
Versão aportuguesada de transabled (mistura de trans com disabled, deficiente em inglês), os transficientes se identificam como pessoas que mesmo portadoras de todos os membros normais e saudáveis sentem um desejo quase incontrolável de ter removido um braço ou uma perna, ou mesmo de ficarem cegas.
Cegueira proposital
É o caso da norte-americana Jewel Shuping, que desde criança tinha como objetivo de vida perder a própria visão. Ela conta ter ficado horas olhando fixamente para o sol numa de suas primeiras tentativas de ficar cega. Adolescente, aprendeu a ler em braile e andava pela casa de olhos vendados ou mesmo com óculos adaptados para que não pudesse enxergar. Aos 21 anos, finalmente ela tomou uma medida drástica e pôs seu plano em prática.
Com a ajuda de um profissional de saúde, ela pingou nos olhos um produto para desentupir ralos. “Meus olhos ‘gritavam’ e um pouco do líquido escorreu pela minha bochecha, queimando minha pele. Tudo o que eu pensava era ‘eu vou ficar cega, vai ficar tudo bem’”, disse. Shuping não revela o nome do profissional que a ajudou no processo.
Eles só procuraram um serviço médico meia hora depois, quando já era tarde demais para recuperar os danos causados pelo produto químico. Um dos olhos teve a córnea derretida, e precisou ser removido. No outro, o glaucoma e a catarata provocados pelo líquido comprometeram totalmente a visão. Shuping afirma que seu exemplo não deve ser seguido por ninguém, mesmo assim afirma que não se arrepende do que fez.
“Eu realmente sinto que este é o jeito que eu deveria ter nascido, que eu deveria ter sido cega desde o nascimento. Quando não há ninguém ao seu redor que pensa como você, você começa a pensar que isso é loucura. Mas eu não acho que eu sou louca, eu só tenho um transtorno”, afirmou a norte-americana.
Transtorno de Identidade de Integridade Corporal
O transtorno a que ela se refere não é reconhecido em nenhuma literatura médica, a despeito do nome pomposo: Transtorno de Identidade de Integridade Corporal (TIIC). Diferente do transtorno dismórfico corporal, onde a preocupação excessiva do paciente recai sobre a aparência dos membros, o TIIC parece estar muito mais ligado ao fato de o cérebro não reconhecer aquela parte como pertencente ao corpo.
É o que sugere um estudo publicado em maio de 2020 pela revista Current Biology, no qual 6 pacientes saudáveis foram comparados com outros 16, que apesar de terem as pernas funcionais desejavam pela amputação dos membros. As pessoas com TIIC apresentaram diferenças na formação de áreas do cérebro responsáveis por controlar os sentimentos e as respostas a estímulos nos órgãos inferiores. Também foi identificada uma possível menor atividade de neurônios em outra parte do cérebro, a que é usada para construir o chamado mapa corporal total da pessoa.
“A sensação de que um membro nos pertence depende da extensão em que a área sensório-motora do membro está funcionalmente conectada a todas as outras regiões do cérebro”, explicou Gianluca Saetta, doutorando na Universidade de Zurique e autor do estudo. “Curiosamente, descobrimos que, quanto menos matéria cinzenta estiver na região parietal direita do cérebro, mais forte será o desejo de amputação e mais os indivíduos com TIIC agem como se fossem amputados”, disse.
Cadeira de rodas
Talvez seja esse o motivo de o escocês Nick O’Hallaron fazer um exercício de contorcionismo ao dobrar a perna direita para trás para poder andar de muletas como se fosse um amputado. O mesmo com a norte-americana Chloe-Jennings White, que usa um aparato para reduzir a mobilidade das pernas e anda de cadeira de rodas para se sentir como uma paraplégica.
Ela já sofreu um acidente de carro do qual saiu ilesa, mesmo com a batida a 120 km/h, e disse não se lembrar se foi realmente um acidente ou uma ação deliberada para tentar se ferir a ponto de perder o movimento dos membros inferiores.
O médico e pesquisador na área de neurobiologia Dick Ferdinand Swaab, em seu livro “We Are Our Brains”, aponta o que ele chama de “intrigante relação” entre os transficientes e os transsexuais – 19% dos pacientes com TIIC têm algum tipo de disforia de gênero e 38% são homossexuais ou bissexuais. “Todas essas características parecem ser programadas muito cedo no desenvolvimento do ser humano, e o mesmo provavelmente também se aplica ao TIIC, embora ambos, causa e ponto exato no cérebro onde isso ocorre, ainda sejam um mistério”, afirma.
O neurologista Oliver Sacks, em seu livro “Mente Assombrada”, também cita a possibilidade “raríssima”, segundo ele, de uma “ausência congênita da imagem corporal de um membro que, em todos os outros aspectos, é normal”. Ele conta a história de um paciente em pré-operatório para remoção de um tumor cerebral que caiu da maca em que estava após chutar a própria perna esquerda por achar que ela não lhe pertencia.
Mudanças no cérebro
Mas para Anil Ananthaswamy, jornalista científico e autor de “The Man Who Wasn't There”, as modificações cerebrais podem não ser a causa, mas a consequência do que ele chama de uma “atividade mental incessante” por parte dos pacientes, que de tanto insistirem em pensar dessa forma podem acabar mudando a fisiologia do próprio cérebro.
“É crucial enfatizar que essas descobertas são correlações – não provam que as anomalias neurais são a causa do TIIC. Há uma certa tendência reducionista, especialmente nos estudos de certas doenças, de ver a relação cérebro-mente como uma via de mão única, com o cérebro influenciando a atividade mental, e não o contrário.
Os exames de imagem geralmente nos mostram mudanças na atividade cerebral em certas regiões naquelas pessoas com uma determinada condição. Mas não estabelecem de forma definitiva se essas aberrações funcionais e anatômicas vieram primeiro e causaram o transtorno, ou se uma atividade mental incessante, como o pensamento obsessivo de que ‘esta perna não é minha’ levaram a mudanças no cérebro”.
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