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Opinião

Questão acadêmica: estampa de oncinha pode ou não pode?

A cantora Beyoncé em cena de "Black is King"
A cantora Beyoncé em cena de "Black is King" (Foto: Divulgação)

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Estudei filosofia na Universidade Federal da Bahia. O campus, conhecido como São Lázaro, é bem peculiar. Um casarão avarandado em estilo colonial, arrodeado por palmeiras imperiais, fica no topo de uma colina. A vista dele dá para a Igreja de São Lázaro, construída no século XVIII, e, ao longe, lá embaixo, está o mar aberto. Em sentido contrário ao mar, no campus, estão um prédio arejado da década de 70 e um caixote de concreto do petismo.

Minha faculdade na Vogue

Como eu passei quase uma década frequentando o local, reconheço-o com facilidade em filmagens ou fotos. Até hoje, só o reconheci em três ocasiões inesperadas: a primeira, quando um colega de curso, membro do MBL, Ricado Almeida, levou Kim Kataguiri para a varanda do casarão durante uma greve, quando a faculdade fica deserta. Os militantes esquerdistas da faculdade ficaram doentes.

A segunda foi mais insólita: no segundo turno da última eleição presidencial, o PT nacional trocou de marqueteiro e botou a equipe do PT baiano. E eis que eu vi “gente do povo” sendo entrevistada na minha faculdade para elogiar Haddad.

A terceira, mais insólita ainda, foi quando entrei no Instagram da diva-ativista nº 1 do Brasil (pois li que ela estava lá pedindo censura àquele agente do patriarcado racista, o Twitter), e encontrei uma foto daquela revista anticapitalista decolonial (a Vogue) com uma outra diva-ativista, cuja pele de cor de ébano contrastava com a roupa alvíssima, em pose na escadaria do casarão.

Kim Kataguiri na minha faculdade não me choca, porque é um lugar político. Gravação de depoimentos espontâneos para Haddad em São Lázaro me fez dar risada, pensando que devia estar difícil a coisa pros marqueteiros. Mas São Lázaro na Vogue era algo que definitivamente nunca esteve no radar. Só mesmo um fenômeno novo para causar isso: as ciências humanas de salão de beleza.

Problematizar Beyoncé

Qual não foi minha surpresa, então, ao ver que a editora de divas-ativistas, a livre-docente Lilia Moritz Schwarcz, fez um texto na Folha de S. Paulo para concluir que estampa de oncinha é out e Beyoncé não deveria ter usado oncinha. Depois de tecer considerações sobre "Hamlet" (uma “peça vitoriana”, segundo ela), "O rei leão", o complexo de Édipo, a decolonialidade, Carlos Drummond de Andrade, e ainda fazer a exegese de uma postagem do Instagram de Beyoncé, Lilia bem poderia concluir que “a Leopoldina virou trem, e Dom Pedro é uma estação também”, mas não. Concluiu isto: “Nesse contexto politizado e racializado do Black Lives Matter, e de movimentos como o Decolonize This Place, que não aceitam mais o sentido único e Ocidental da história, duvido que jovens se reconheçam no lado didático dessa história de retorno a um mundo encantado e glamorizado, com muito figurino de oncinha e leopardo, brilho e cristal.”

Como resolver o problema? Assim: “Quem sabe seja hora de Beyoncé sair um pouco da sua sala de jantar e deixar a história começar outra vez, e em outro sentido.”

Nessas horas, uma senhora olha para a outra no salão e comenta: “Miga, não use oncinha. Não combina com Black Lives Matter, que tá super na moda.” O cabeleireiro concorda e observa que um look de Angela Davis nos anos 70 é super apropriado. Ufa! Poupou-as de deixar a sala de jantar, mas elas poderão dizer que deixaram a sala mesmo assim. Foram para as ruas e aprenderam com o povo a fazer um black power de pontas milimetricamente aparadas.

Lugar de fala serve pra destratar os outros

Como era de se esperar, subcelebridades da internet que ainda não tiveram um livro editado pela Cia das Letras xingaram muito a branca que ousou falar alguma coisa negativa acerca da diva pop negra Beyoncé. Lilia já se arrependeu e já pediu desculpas no Twitter. (Mas eu achei pouco, e só acredito em arrependimento sincero, mesmo, se ela usar oncinha.)

De minha parte, creio que gente de qualquer cor pode criticar gente de qualquer cor acerca de qualquer assunto. Lilia Schwarcz, porém, endossa a racialização de tudo, bem como o tal do lugar de fala – que, como mostrei, é um termo do internetês brasileiro que ganhou verniz acadêmico graças a Djamila Ribeiro.

Ora, segundo a teoria do lugar de fala, os negros se dividem entre os com e os sem “consciência discursiva”. Os que têm consciência discursiva são os que, até prova em contrário, concordam com Djamila em tudo. Quem tem lugar de fala, portanto, não pode ser criticado nem por negro, que dirá por branco. Se um negro criticar, perde o lugar de fala. Se branco criticar, é racista. Ao que parece, a diva Beyoncé é uma mulher negra com lugar de fala, o que faz de Lilia uma racista.

A teoria do lugar de fala joga fora qualquer possibilidade de discussão racional; e, jogada fora a razão, sobram a força e a gritaria.

Falso antirracismo

Eu acho que Lilia escreveu um bocado de bobagem e o texto é uma porcaria. Uma livre-docente pela USP deveria se envergonhar de chamar Hamlet de peça vitoriana, para ficar no óbvio. Mas não é correto criticá-la com base em sua cor.

Aos meus olhos, a única diferença entre Lilia e Djamila é que uma branca e outra é preta. Acho infame que intelectuais, com base na cor de um indivíduo, se sintam à vontade para pontificar sobre como ele deve se portar. Isso eu chamo de racismo. Para mim, gente de qualquer cor pode se sentir empoderada, usar turbante e estampa de oncinha. Aos meus olhos, gente com as crenças de Lilia e Djamila deve ser enfrentada, independentemente de sua cor.

Mas é que eu sou antirracista. Elas são outra coisa.

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