Ela é nacionalista, racista e xenófoba – ou, pelo menos, é o que seus opositores fazem questão de destacar. Ela quer tirar a França da União Europeia, quer banir a imensa maioria dos imigrantes do país e controlar rigidamente a entrada de novos – e sobre isso não há debate, está explícito em seu programa de governo. Aos 48 anos, Marine Le Pen lidera a Frente Nacional, partido de extrema-direita fundado por seu pai, e nunca deixou de ser a mais controversa entre os candidatos à presidência do país.A tal ponto que, tão logo se classificou ao segundo turno, a maioria dos derrotados se uniu em apoio ao outro candidato, o centrista Emmanuel Macron, na esperança de barrar a chegada de Le Pen ao poder.
Mas, tendo conquistado uma votação recorde para a extrema-direita francesa no domingo passado, Marine parece já ter vencido, mesmo que as urnas elejam Macron: são as bandeiras da Frente Nacional que hoje pautam o debate político francês e – a favor ou contra – mobilizam o eleitorado do país.
As origens
A Frente Nacional surgiu em 1972, como uma tentativa de unificar os diferentes movimentos nacionalistas e conservadores que há muito tempo buscavam um lugar dentro do sistema democrático francês. Trinta anos antes, a França havia visto um forte colaboracionismo com a Alemanha nazista, com grande parte do país cedendo ao controle do governo fascista de Vichy, comandado pelo marechal Philippe Pétain. Com o final da Segunda Guerra, o fascismo é condenado em todo o continente, Pétain cai em desgraça, mas os apoiadores de Vichy não desaparecem subitamente: os diferentes grupos continuam se organizando pelas décadas seguintes, ainda à procura de um lugar dentro do novo sistema político.
“Quando a Frente Nacional surge, ela é um movimento que abrange vários setores da sociedade: ex-militares das guerras coloniais, da época da Argélia, mas também fascistas que trabalhavam a favor da Alemanha dentro da França, movimentos neofascistas que surgiram depois, até estudiosos conservadores da Sorbonne que negavam o Holocausto”, destaca o historiador Guilherme Ignácio Franco de Andrade, doutorando na PUC-RS, que pesquisa a história do partido. “Do fim da Segunda Guerra até 1972, nós temos quase três décadas sem nenhuma legenda que reúna essas diferentes correntes conservadoras na França. O próprio nome, Frente Nacional, diz que é um movimento unitário objetivando, dentro da democracia, obter poder”, ressalta.
Guilherme Ignácio vai ainda mais longe: a Frente Nacional seria a mais recente encarnação de uma demanda conservadora existente na França desde a Revolução Francesa, no final do século XVIII, e que seguiu incorporando novas bandeiras através dos séculos. Pelo contexto em que surgiu, o então novo partido trouxe em seu gene um forte teor antissemita, que atraía os antigos fascistas do país, e aparecia claramente no discurso de Jean-Marie Le Pen, fundador da Frente Nacional e líder da sigla com poderes quase supremos até decidir se afastar e acabar substituído pela filha, Marine, em 2011.
Rupturas no meio do caminho
A busca da Frente Nacional por unificar os grupos mais à direita no espectro político francês nunca encontrou facilidades. O partido experimentou várias rupturas internas ao longo de sua história – na mais importante, em 1999, Bruno Mégret, um dos mais proeminentes nomes novos da sigla acabou deixando a FN e fundou o Movimento Nacional Republicano (MNR), após desacordos com Jean-Marie Le Pen. A crise interna não impediu que, pouco tempo depois, nas eleições de 2002, o próprio Jean-Marie surpreendesse o país ao chegar a um inédito segundo turno do pleito presidencial – quando acabou sofrendo uma derrota recorde diante do conservador Jacques Chirac, que conquistou mais de 82% dos votos no segundo turno.
“Foi um paradoxo Jean-Marie Le Pen se classificar para o segundo turno em 2002 em um momento difícil do FN”, aponta a cientista política Aline Burni, doutoranda na UFMG, que estuda a ascensão eleitoral da extrema-direita na Europa. Os números estagnados no segundo turno, porém, deixaram lições que a Frente Nacional saberia utilizar no futuro: “a sua incapacidade de expandir o eleitorado entre os dois turnos demonstra a debilidade de seu partido e a necessidade de renovação da estratégia política, caso o objetivo fosse realmente conquistar o poder um dia”, considera Aline.
Se o discurso de Jean-Marie Le Pen encontrava relativamente pouca aceitação até os ataques em Nova York, a partir de então ele encontra uma população amedrontada pelo perigo real de um atentado terrorista perpetrado por extremistas muçulmanos
O sucesso inesperado de Jean-Marie na época também foi atribuído ao impacto que os atentados terroristas de 11 de setembro de 2001 tiveram no imaginário francês. Embora um discurso que atribuísse a culpa dos problemas franceses aos imigrantes já fosse presente no FN, foi a concretização da ameaça após a queda do World Trade Center que começou a incluir esse tipo de preocupação em um debate mais amplo.
“Se o discurso de Le Pen encontrava relativamente pouca aceitação até os ataques em Nova York, a partir de então ele encontra uma população amedrontada pelo perigo real de um atentado terrorista perpetrado por extremistas muçulmanos”, analisa Anna Mamede, mestre em Relações Internacionais pela PUC-MG, que pesquisou os discursos de Jean-Marie após o 11 de setembro.
“Com os ataques, esse discurso encontra terreno fértil para sua propagação e aceitação pela sociedade como um todo. É quando dizemos que houve a ‘securitização’ de determinado problema: ele deixa de ser tratado como um problema qualquer e passa ser tratado como uma questão de segurança, em que você pode ir além das ‘regras do jogo’, pois a própria sobrevivência da sociedade estaria em risco”, diz Anna.
Marine, a renovadora
Nesse sentido, a chegada de Marine Le Pen à liderança do partido, em 2011, representou simultaneamente mudanças e continuidades no legado de Jean-Marie: ao mesmo tempo em que se apropriou do discurso do pai no sentido de combater a imigração, favorecida por um contexto de crise econômica e migratória, Marine se desvencilhou de velhas bandeiras que encontravam grande resistência no público francês – e já não encontravam eco no eleitorado jovem que, culpando os estrangeiros pelo desemprego, poderia vir a votar na Frente Nacional.
“Não adiantava mais o partido continuar sendo antissemita, continuar sendo homofóbico... isso não tem mais validade”, comenta Guilherme Ignácio. “Quando a Marine Le Pen entra, ela já tem muito tempo de militância com a juventude da FN. Então boa parte das pessoas que entram com ela é de uma geração diferente. Uma geração que cresce no neoliberalismo, onde o anticomunismo já não tem o mesmo significado de antes, onde manter o antissemitismo não significa absolutamente nada”, complementa.
Se pegarmos o que ela prega economicamente, Marine estaria mais próxima da esquerda do que da própria direita
Essa renovação ideológica em partes se apresenta, sobretudo, na política econômica de Marine Le Pen. Tendo formado seu partido durante a Guerra Fria, Jean-Marie se distanciava de políticas estatistas, posicionando-se como um ultraliberal. A filha é diferente: suas propostas incluem dar fim ao plano de austeridade implementado pela União Europeia, aumentar os serviços públicos e o estado de bem-estar social.
“Se pegarmos o que ela prega economicamente, Marine estaria mais próxima da esquerda do que da própria direita”, diz Guilherme Ignácio. “Mas ela se diferencia da esquerda pelo programa excludente: o assistencialismo estatal que ela quer aumentar é para os franceses. Exclusivamente os franceses brancos – não os imigrantes, não os naturalizados de primeira, segunda, terceira ou quarta gerações. Ainda é um programa extremamente preconceituoso”.
Os demônios ficaram para trás?
Desde que assumiu a liderança da FN, Marine Le Pen deu início a um projeto de “dédiabolisation” (literalmente: desdiabolização) do partido. A ideia era tirar definitivamente a sigla da marginalidade política que havia marcado os dias de seu pai, posicionando-a como uma opção concreta para os problemas atuais da França. O partido começou a investir mais fortemente na participação em eleições locais e abordar temáticas que fugissem à ladainha já conhecida de Jean-Marie.
“Marine colocou em ação uma estratégia voltada a modernizar, profissionalizar e dar mais credibilidade ao partido e à sua candidatura. Isso inclui uma maior presença na mídia, o recrutamento de candidatos mais jovens e credenciados, a ampliação e diversificação dos temas abordados no programa e o distanciamento de tudo o que possa estar relacionado ao passado fascista da organização”, explica Aline Burni.
O eleitor que vem somando apoio à Marine Le Pen é mais jovem, proveniente das classes populares, com baixa escolaridade, morador de regiões rurais e subúrbios, orientado por valores antiblogalização
Os resultados foram pouco a pouco aparecendo e crescendo rapidamente. Nas eleições municipais de março de 2014, a Frente Nacional conquistou doze prefeituras no país – um número pequeno, mas um recorde para o partido. Dois meses depois, em maio, a sigla conquistou a maior votação da França nas eleições para o parlamento europeu, ocupando 24 dos 74 assentos destinados ao país. O resultado chocou analistas no mundo inteiro: foi a primeira vez que a FN havia acabado um pleito em primeiro lugar, e justamente para o congresso da União Europeia, da qual é crítica.
Em 2017, Marine Le Pen já fez a maior votação da história de seu partido em eleições presidenciais: no primeiro turno, fez 21% dos votos. Para o enfrentamento direto com Emmanuel Macron, a vitória é mais difícil – o candidato de centro recebeu o apoio de François Fillon, que concorreu pelo partido conservador moderado Os Republicanos, e também do esquerdista Benoît Hamon, candidato do Partido Socialista –, mas Le Pen deve aumentar consideravelmente seu apoio, mesmo que não consiga ultrapassar o concorrente: as primeiras pesquisas indicam que a candidata da extrema-direita deva conquistar cerca de 40% dos votos em 7 de maio.
O eleitorado de Marine
A ascensão da Frente Nacional pode ser atribuída a diversos fatores: ao contexto econômico e político, às estratégias bem-sucedidas que o partido adotou desde a chegada de Marine Le Pen à liderança, e ao próprio descrédito das siglas mais tradicionais. Ao longo das últimas décadas, os únicos grupos políticos viáveis no país eram o Partido Socialista, à esquerda, e o grupo de direita tradicional conhecido hoje como Os Republicanos, que já teve diversos nomes no passado (mais recentemente, chamava-se UMP – União por um Movimento Popular, que elegeu Jacques Chirac e Nicolas Sarkozy no passado): eles acabaram, respectivamente, em quinto e terceiro lugar no pleito de 2017.
“Desde meados da década de 1990, o FN é um dos partidos preferidos pela classe operária e vem crescendo nos meios populares, muitas vezes conquistando antigos eleitores de esquerda, desiludidos tanto com o Partido Socialista, quanto com o Partido Comunista”, argumenta Aline Burni. “O eleitor que vem somando apoio à Marine Le Pen é o eleitor mais jovem, proveniente das classes populares, com baixa escolaridade, morador de regiões rurais e subúrbios, orientado por valores antiblogalização”, prossegue.
Como ocorreu em outros pleitos recentes com vitórias conservadoras, como a vitória do Brexit no Reino Unido e a eleição de Donald Trump nos EUA, Le Pen também encontra a maior parte dos votos no interior do país, longe dos centros urbanos. “São lugares onde há menor presença de imigrantes e onde mais recursos provenientes da União Europeia participam da agricultura”, diz Aline.
Mesmo sem resultado suficiente para chegar ao poder, a Frente Nacional tem pautado a política francesa nos últimos cinco anos
A aparente contradição se explica pela percepção que esses eleitores têm da situação do país: “os setores mais populares e pessimistas em relação ao futuro são mais facilmente atraídos pelo discurso nacionalista porque a globalização não tem trazido impactos positivos para todo mundo. Mais do que características sociológicas homogêneas, o que forma o grupo dos chamados ‘perdedores da globalização’ são suas percepções muito negativas do futuro e do mundo”, complementa.
Independentemente do que acontecer na votação de 7 de maio, é certo que Marine Le Pen continua a ser demonizada por grande parte da mídia e da oposição. Mas os especialistas alertam: desconsiderá-la de imediato como apenas mais uma racista ou xenófoba é incorrer em equívoco semelhante ao que os críticos de Donald Trump caíram no ano passado – ignorar as razões de sua popularidade frente a uma parcela considerável dos eleitores, e os efeitos que isso produz em uma discussão política mais ampla.
Não é casualidade que as pautas da FN acabaram sendo as mais discutidas ao longo dos debates na França. “A Frente Nacional aprendeu o que fazer: não precisa chegar ao poder para conseguir passar a sua agenda política”, diz Guilherme Ignácio. “A restrição à naturalização de estrangeiros, a proibição ao uso de burcas, o debate em prol da pena de morte... os outros partidos, para não perder tantos eleitores, passaram a discutir essas questões. Mesmo sem resultado suficiente para chegar ao poder, a Frente Nacional tem pautado a política francesa nos últimos cinco anos”, conclui.