Em meados de 1968, o regime militar vivia um momento de encruzilhada. Com a rápida transição de volta à democracia prometida quatro anos mais cedo se adiando, e novos episódios de violência se cumulando, grandes manifestações começavam a tomar conta do país. Em março, a morte do estudante Edson Luís aumentou a tensão. Em junho, no maior protesto registrado desde o golpe, a Passeata dos Cem Mil, ficou evidente que o país passava por um ponto de inflexão. Neste momento, alguns militares da linha-dura começaram a tramar nos bastidores um plano de destruição que, podendo ser atribuído à oposição, “comprovasse” a necessidade de endurecer ainda mais as coisas.
Em 12 de junho daquele ano, o capitão paraquedista Sérgio Ribeiro Miranda de Carvalho foi convocado ao gabinete do brigadeiro João Paulo Moreira Burnier, no então Ministério da Guerra, ainda situado na antiga capital federal, o Rio de Janeiro. O capitão deveria responder a uma pergunta simples: quantas pessoas morreriam se o Gasômetro da Avenida Brasil, no Rio, explodisse às seis da tarde, em plena hora do rush. Sérgio não hesitou: calculou em 100 mil baixas civis. Segundo o capitão relataria pelo resto da vida, foi nesse momento que Burnier chegou a uma conclusão sombria: “se é para salvar o Brasil do comunismo, vale a pena”.
A operação de bandeira falsa, aquelas em que um grupo realiza ataques e os atribui aos inimigos para se beneficiar da repercussão, não pararia nisso. A ideia era que o país vivesse uma escalada de terror no intervalo de poucos dias: primeiro, ataques com poucas vítimas a bancos, lojas de departamentos e à Embaixada dos Estados Unidos. A seguir, a explosão do Gasômetro, a destruição da represa de Ribeirão das Lajes, e o assassinato de pelo menos quarenta figuras políticas, que incluíam nomes como Juscelino Kubitscheck, Jânio Quadros e até o general Olympio Mourão Filho — o qual, após participar ativamente do golpe em 1964, havia se tornado crítico dos rumos tomados pelo governo militar. A culpa seria jogada genericamente nos “comunistas”.
Mas o capitão Sérgio disse não. Preocupado com os desdobramentos que o plano poderia ter independentemente da sua participação, de imediato tentou denunciá-lo ao ministro da Aeronáutica, entrando em contato com outros superiores e chegando até mesmo aos ouvidos do patrono da Força Aérea Brasileira (FAB), o brigadeiro Eduardo Gomes. Na época, porém, Sérgio não recebeu grandes saudações por desbaratar o que poderia vir a ser o maior projeto de terrorismo patrocinado pelo Estado brasileiro: pelo contrário, viu Burnier e seus aliados iniciarem uma série de processos e transferências que tornaram sua vida um inferno e culminaram com seu afastamento definitivo.
Para-Sar
Sérgio de Carvalho era um dos mais experientes membros de uma unidade de elite da FAB, a Para-Sar: grupo de paraquedistas que se dedicava a operações de busca e salvamento em regiões remotas do país. Ele acumulou milhares de horas de voo e cerca de 900 saltos em diferentes missões, passando grande parte do tempo na região da Amazônia, onde ganhou dos colegas o apelido com que ficou famoso — Sérgio Macaco. Já o nome da sua unidade acabaria batizando o escândalo. Sua denúncia entrou na história como o “Caso Para-Sar”.
Admirado por companheiros e até mesmo pelos indígenas, Sérgio conquistou boa reputação como um militar competente e cumpridor de seus deveres. O sertanista Orlando Villas-Bôas, também próximo do capitão, costumava compará-lo ao marechal Cândido Rondon, e dizia que Sérgio Macaco tinha a vantagem de ser “alado”. Líder de um grupo supertreinado, parecia o homem ideal para coordenar a aparatosa e ultrassecreta missão que Burnier tinha em mente. Sérgio, porém, preferiu ouvir a própria consciência e ignorar as ordens de um superior tão radical que, segundo sua versão, desprezava a “moderação” do presidente Costa e Silva a tal ponto que o chamava de “Bosta e Silva”.
Como resultado da sua negativa, sofreu o peso do corporativismo da linha-dura: passou quase um mês preso e respondeu a três inquéritos sigilosos ao longo de 1968, dentro da própria FAB, no Ministério da Justiça e no Serviço Nacional de Informações (SNI). Embora tenha sido absolvido em todos — e mais uma vez, no ano seguinte, em processo analisado pelo Supremo Tribunal Militar (STM) em que era acusado de falsidade ideológica —, Sérgio Macaco não escapou do endurecimento do regime. Se atentados como o que ele denunciou não chegaram a ocorrer, militares inconvenientes que haviam se levantado contra essas ideias seguiram visados pela ala que venceu a queda de braço dentro das Forças Armadas. Na esteira do AI-5, acabou reformado compulsoriamente em setembro de 1969.
O polêmico Burnier
Falecido em 2000, João Paulo Burnier era uma figura controversa dentro da Aeronáutica, acumulando críticas de seus pares, inclusive aqueles de mais alto perfil. O patrono da FAB, Eduardo Gomes, foi uma das vozes que se somaram para defender Sérgio Macaco e questionar a aptidão de Burnier. Em uma carta dirigida em 1974 ao então presidente Ernesto Geisel, Gomes chegou a se referir a Burnier como “insano mental”. Ele seguia tentando ajudar a reverter a reforma compulsória de Sérgio, passados cinco anos de seu afastamento.
Em sua carta, o patrono escrevia: “Se o Cap. Sérgio não tivesse procedido como, então, procedeu, a Revolução ter-se-ia perdido, irremissivelmente — desmoralizada, chafurdada na ignomínia, afogada num turbilhão de sangue de pessoas inocentes”. Na visão de Eduardo Gomes, Burnier tentou desviar o capitão do Para-Sar de suas funções para empregá-lo “de forma indigna e criminosa, como instrumento de ação desvairada de um insano mental, inspirado por instintos perversos e sanguinários, sob o pretexto de proteger o Brasil do perigo comunista”.
O famoso brigadeiro não era o único a condenar o idealizador do atentado que não se consumou. O general Pery Bevilacqua, ministro do STM que buscou manter a legalidade nos primeiros anos da ditadura e também acabou afastado na sequência do AI-5, era outro que lembrava de Burnier com desprezo. Em uma entrevista concedida à revista Fatos em 1986, afirmava: “o Burnier é um anormal. Só alguém fora de si poderia ordenar coisas como aquelas, de destruir o gasômetro, o Ribeirão das Lajes, e jogar napalm em milhares de pessoas. O capitão Sérgio prestou um grande serviço à nação quando deixou de cumprir suas ordens”.
Ouvidos moucos
No entanto, a solidariedade de altos oficiais contrários à linha-dura não serviu para Geisel rever a situação de Sérgio Macaco, que nas décadas seguintes seguiria lutando por reparação, enquanto buscava sustento de outras formas. Trabalhou no setor civil e chegou a ganhar a vida como publicitário. Durante a reabertura dos anos 80, decidiu entrar na política e se elegeu deputado federal pelo PDT.
Nem mesmo quando o próprio Burnier caiu em desgraça o afastamento do capitão Sérgio foi revisto. O brigadeiro por trás do Caso Para-Sar acabaria sendo reformado compulsoriamente em 1972, após o desaparecimento do estudante Stuart Angel Jones (filho da estilista Zuzu Angel), ocorrido em uma área sob sua jurisdição. Os restos mortais de Stuart nunca foram localizados e o caso acabou se tornando um desastre para a imagem do regime militar, convertendo-se em um dos casos mais famosos para aumentar as pressões internacionais contra as violações de direitos humanos no Brasil.
Conforme os anos se passaram, apesar de ter todas as evidências ao seu lado, Sérgio Macaco viu sua história ser convertida em uma espécie de dito pelo não dito. Burnier seguiu negando as denúncias e nada, realmente, foi feito sobre o caso. Especialmente após o caso voltar à tona, em 1992, com o documentário O homem que disse não, do francês Olivier Horn, o brigadeiro reapareceu na mídia insistindo que os fatos narrados não passavam de invenção. A explosão do gasômetro, garantia, era uma ficção da cabeça de Sérgio.
Macaco buscou justiça até o fim. No início dos anos 90, conseguiu, finalmente, que o Supremo Tribunal Federal revisse sua situação, considerasse sua demanda justa e determinasse que ele deveria ser reincorporado e promovido a brigadeiro. Da decisão do STF ao cumprimento, porém, meses se passaram. Sérgio Macaco faleceu em fevereiro de 1994, aos 63 anos, em decorrência de um câncer no estômago. A promoção só foi formalizada seis dias após sua morte.
Hoje, no Rio de Janeiro, o capitão que ousou questionar um projeto assassino é lembrado dando nome a um dos lugares que ajudou a salvar, em uma homenagem desconhecida por muitos cariocas: mais conhecida como Viaduto do Gasômetro, uma importante via que atravessa o bairro de São Cristóvão é chamada, oficialmente, de Viaduto Capitão Sérgio de Carvalho.
- 1964: golpe ou revolução?
- Nem todos os que se opuseram à Ditadura Militar eram comunistas
- Quais foram os grupos guerrilheiros que atuaram durante a ditadura militar
- 1964 não te faz melhor nem pior, amiguinho
- 5 coisas que a Ditadura Militar gostaria que você esquecesse
- 6 crimes hediondos cometidos contra crianças durante a Ditadura Militar
- A esquerda que combateu a ditadura queria a democracia no Brasil?
- Por que tantos brasileiros querem intervenção militar?
- Mário Kozel Filho, o jovem morto por terroristas de esquerda