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Censura por parte do Judiciário não aparece em rankings globais
Censura por parte do Judiciário não aparece em rankings globais| Foto: Pexels

Nos últimos meses, o Judiciário brasileiro — sobretudo o STF (Supremo Tribunal Federal) intensificou as violações à liberdade de expressão e de imprensa. Como as revelações do Twitter Files deixaram ainda mais evidente, magistrados atropelaram o rito constitucional ao determinar a remoção de conteúdo identificado como "fake news" ou "discurso de ódio".

Mas dois rankings globais divulgados recentemente ignoram o problema.

Nas avaliações da organização francesa Repórteres Sem Fronteiras e da inglesa Artigo 19, o Brasil teve mais liberdade de informação em 2023 que em 2022. Ambas atribuem parte da melhora à troca na Presidência da República. Luiz Inácio Lula da Silva seria mais favorável à liberdade de expressão que Jair Bolsonaro. Além disso, as publicações não dão importância à censura promovida pelo Judiciário brasileiro, e não mencionam as revelações do Twitter Files.

Na lista da Repórteres Sem Fronteiras, divulgada em 3 de maio, o Brasil ganhou 10 posições e pulou do 92º para o 82º lugar entre 2023 e 2024 — embora a nota tenha ficado praticamente estável, (de 58,67 para 58,59). O levantamento utiliza dados do ano anterior à publicação. Ou seja: a melhoria teria ocorrido entre 2022 e 2023.

No levantamento da Artigo 19, lançado em 21 de maio, o desempenho do Brasil é ainda melhor: com 81 pontos em uma escala de 0 a 100, o país passou do 87º para o 35º lugar. A maior mudança, na avaliação da Artigo 19, foi a derrota eleitoral de Jair Bolsonaro.

No índice da Artigo 19, os países são classificados em cinco categorias: aberto, menos restrito, restrito, altamente restrito ou em crise. Com a melhora na sua nota, o Brasil atingiu o patamar de "aberto". No relatório anterior (publicado em 2023 com base em dados de 2022), o Brasil havia registrado seu pior resultado desde a criação do índice.

No relatório da Repórteres Sem Fronteiras, menções positivas a Lula

O ranking da Repórteres Sem Fronteiras é publicado desde 2013. O Brasil esteve classificado como "problemático" em todos os anos exceto 2021, quando ganhou o selo de "difícil" (ainda pior).

“O novo governo de Luiz Inácio Lula da Silva traz de volta uma normalização das relações entre as organizações estatais e a imprensa, após o mandato de Jair Bolsonaro marcado por uma hostilidade permanente ao jornalismo”, afirma o novo relatório.

Ao tratar do "Quadro Jurídico", a entidade ignora a ofensiva do Judiciário sobre jornalistas nos últimos anos e afirma que "o arcabouço legislativo brasileiro é bastante favorável ao livre exercício do jornalismo." Em vez de citar os excessos cometidos por juízes, o texto afirma que “a escala que a desinformação tomou no país continua intoxicando o debate público”.

O índice da Repórteres Sem Fronteiras tem cinco categorias diferentes. A avaliação é feita de duas formas. Um aspecto envolve um "levantamento quantitativo dos abusos cometidos contra meios de comunicação e profissionais de mídia". Já a outra parte do trabalho se baseia em entrevista com “especialistas” que, segundo a entidade, conhecem a realidade de cada país. A lista, cujos nomes não são divulgados, inclui “jornalistas, pesquisadores, acadêmicos, defensores de direitos humanos, etc”. Eles respondem um questionário com 117 perguntas.

O ranking mais recente da Repórteres Sem Fronteiras traz a Noruega em primeiro lugar, seguida por Dinamarca, Suécia, Países Baixos e Finlândia. Os Estados Unidos — país com ampla proteção para a liberdade de expressão — aparecem na posição de número 55.

Repórteres Sem Fronteiras é financiada por governos

A entidade realiza um trabalho relevante, e faz críticas públicas contra países autoritários como China, Venezuela e Rússia. A Repórteres Sem Fronteiras mantém uma campanha pública em favor da jornalista chinesa Zhang Zhan, que desapareceu depois de criticar o acobertamento do governo da China durante os primeiros meses da pandemia.

Mas isso não significa que, intencionalmente ou não, a entidade esteja imune à influência política. Ao confiar na avaliação de "especialistas" locais, a organização pode sucumbir ao poder dos vieses ideológicos.

Aparentemente, o chefe da Repórteres Sem Fronteira no Brasil nunca foi repórter. Em sua página no Linkedin, Artur Romeu não menciona qualquer passagem por um veículo de imprensa.

A Repórteres Sem Fronteiras também divulgou recentemente um comunicado criticando Elon Musk por se posicionar "contra a democracia no Brasil". O caso era uma menção ao episódio dos Twitter Files e da resistência de Musk em seguir determinações judiciais com fundamento legal questionável.

O último relatório financeiro publicado pela Repórteres Sem Fronteiras é de 2020. Na lista de doadores da organização, estão a Fundação Ford e Open Society Foundations (de George Soros e seu filho Alexander).

A entidade também recebeu recursos dos governos da França, da Suécia, do Reino Unido, da Holanda e da Alemanha, além da UNESCO e da União Europeia.

Artigo 19 também ouve especialistas

O levantamento da Artigo 19 é mais abrangente e analisa a liberdade de expressão em geral (não apenas da imprensa). São 25 indicadores, que incluem critérios como a participação política da população. Os dados também se baseiam em informações compiladas pelo Instituto V-DEM, mantido por especialistas da Universidade de Gotemburgo, na Suécia.

Isso ajuda a explicar a mudança significativa do Brasil no ranking: ao trocar Bolsonaro por Lula, os brasileiros estariam substituindo um regime autoritário por um democrata.

Em seu site, a ONG afirma que o Brasil obteve "o maior avanço do mundo" em liberdade de expressão, dando um salto da 87ª posição para a 35ª" entre 161 países, com melhoria em 17 dos indicadores, saindo do pior resultado em sua série histórica para integrar a mais elevada categoria do ranking, a de "aberto". Entre os supostos avanços está listado o "monitoramento governamental da internet".

A Artigo 19 acredita que o Brasil ainda tem pontos a melhorar, como "mudar o cenário de concentração midiática", uma velha pauta da esquerda. Sem dados, a organização afirma que houve um "aumento da violência política de gênero".

Em entrevista para a Folha de S. Paulo, o codiretor executivo da Artigo 19 no Brasil, Paulo José Lara, reconheceu que o Judiciário brasileiro tem feito "resoluções erráticas e muitas vezes até contraditórias". Porém, afirmou que seu ranking avalia apenas a "independência" do Judiciário, sem entrar no mérito de suas decisões.

Por email, a Gazeta do Povo perguntou à Artigo 19 se ignorar o mérito de decisões judiciais, como a do TSE que impôs censura prévia a um documentário da produtora Brasil Paralelo em 2022, poderia comprometer a confiabilidade de seu ranking de liberdade de expressão. A organização não respondeu até o fechamento da reportagem.

O escritório da Artigo 19 no Brasil recebeu US$ 1.240.000,00 da Open Society entre 2017 e 2021, o equivalente a R$ 7,45 milhões com correção para inflação na cotação atual. A sede inglesa recebe fundos da mesma organização, além de financiamento da Comissão Europeia, Fundação Ford e organizações governamentais como a americana NED (Fundação Nacional para a Democracia, na sigla em inglês, fundada pelo Congresso americano e suspeita de ser ligada à CIA).

Advogados veem falta de critérios

Advogado constitucionalista especialista em liberdade de expressão, André Marsiglia acredita que os índices não refletem a realidade: "Acredito que todos tenham direito de usar os parâmetros que desejarem para realizar uma pesquisa, mas chega a ser um escárnio um país autoritário e devastado por silenciamentos judiciais como o Brasil ser classificado como o que mais progrediu no mundo a respeito da liberdade de se manifestar".

Para Marsiglia, não faz sentido ignorar o papel do Judiciário na censura no Brasil. "Vale muito pouco uma pesquisa que trate de liberdade de expressão ou imprensa e não entre no mérito das decisões judiciais. Nenhuma censura consta em índices oficiais, nenhuma censura avisa que está censurando. O ato censório estará sempre disfarçado de ato legítimo", afirma.

Renor Oliveira Filho, advogado do Terça Livre, concorda que melhora do Brasil nos rankings vai de encontro à realidade. “É no mínimo estranho que surja essa publicação no meio de uma crise nacional de liberdade de expressão”, diz. O canal Terça Livre foi banido das principais plataformas por determinação do ministro Alexandre de Moraes.

Críticas à censura no Brasil

Nem todas as organizações internacionais concordam que a liberdade de expressão tem evoluído no Brasil.

Em uma análise publicada em 2023, o pesquisador Christopher Hernandez-Roy, do CSIS (Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais), criticou a postura do ministro Alexandre de Moraes, do STF, em sua cruzada contra as "fake news". "Infelizmente para indivíduos como Alexandre de Moraes, uma rápida olhada no estado da liberdade de expressão na região provavelmente obrigará os observadores a serem céticos em relação às tentativas do Brasil de erradicar a desinformação", ele escreveu.

Também em 2023 foi publicada a Declaração de Westminster, assinada por personalidades como Julian Assange, Edward Snowden, Oliver Stone, Michael Shellenberger, Leandro Narloch, Ana Paula Henkel, Steven Pinker, Glenn Greenwald, Slavoj Žižek e outros. A carta diz que "o Supremo Tribunal Federal do Brasil está criminalizando o discurso político".

Recentemente, parlamentares americanos também chamaram atenção para a censura no Brasil. O Comitê Judiciário da Câmara dos Representantes dos Estados Unidos produziu um relatório com provas de que o STF e o TSE determinaram a remoção de conteúdo das redes sociais sem que houvesse comprovação de ilegalidades. Em entrevista à Gazeta do Povo, a deputada republicana María Elvira Salazar criticou Alexandre de Moraes, a quem chama de "totalitário".

A reportagem da Gazeta do Povo procurou a Repórteres Sem Fronteiras e a Artigo 19, mas não obteve respostas.

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