O horror dos métodos nazistas baseados em uma crença pseudocientífica de “purificação racial”, que deixou profundas marcas na história da humanidade com o extermínio de milhões de judeus, tem outros episódios menos conhecidos, mas não menos cruéis. Se por um lado o Holocausto procurava eliminar indivíduos considerados de “raça inferior”, o Lebensborn ("fonte da vida", em alemão) era um projeto para produzir, por meio de “pretensos cruzamentos biológicos perfeitos”, pessoas da “raça ariana”, considerada por Hitler a raça superior que deveria governar o mundo.
Criado em dezembro de 1935 pelo comandante da SS (esquadrão de elite nazista), Heinrich Himmler, o Lebensborn consistia inicialmente em abrigos para que esposas de oficiais da SS tivessem cuidados pré-natal, enquanto seus maridos serviam o regime. O projeto ainda oferecia residências secretas de “copulação” para homens e mulheres considerados racialmente puros. Além disso, mulheres geneticamente valiosas, grávidas de filhos ilegítimos cujos pais eram comprovadamente arianos, recebiam cuidados e acomodação para que pudessem dar à luz, e o programa se dispunha a encontrar uma família adotiva para a criança, caso a mãe não pudesse cuidar dela.
Preocupado também com a crise demográfica do Reich (em 1900 a taxa de natalidade média na Alemanha era de 35,8 por mil habitantes, índice que caiu para 14,7 em 1932), Himmler criticava as “leis alegadamente morais, lindamente motivadas, formuladas pelo cristianismo” de restringir o sexo ao casamento, alegando que “homens e mulheres seguem os mandamentos da natureza”.
“Dessa maneira, ele esperava conseguir ‘anualmente, de cada batalhão da Verfügungstruppe, de duzentas a trezentas crianças’. ‘Não só quero como farei de tudo para criar essas crianças ilegítimas de boa raça e, na sua maioria, privilegiados intelectualmente dos homens da SS e transformá-los em soldados e oficiais e em mulheres valorosas do nosso povo, como também, e especialmente, farei de tudo para colocar essas moças [...], com toda a honra, no mesmo patamar das mães casadas.’ Obviamente, deveria ser ‘costume’ que as famílias da SS que tiveram a ‘desventura’ de não poderem ter filhos naturais em suficiente número aceitassem ‘criar filhos ilegítimos ou órfãos de bom sangue’, ou seja, ‘a média de filhos de uma família da SS deve ser de quatro a seis’”, conta o historiador alemão Peter Longerich, em sua biografia de Heinrich Himmler (Editora Objetiva).
O Lebensborn era mantido por contribuições obrigatórias dos membros da SS. Os pagamentos maiores eram feitos por casais sem filhos, e, a partir do quarto filho (legítimo ou não), a contribuição deixava de ser obrigatória. A política sexual de Himmler também incluía o veto ao casamento de oficiais da SS com uma mulher considerada “a única peça aceitável, enquanto os demais membros da família são lamentáveis”. Para evitar esse tipo de situação, ele incentivava o militar a “dar uma olhada nas irmãs, nos irmãos e nos pais” da noiva.
“Quando me deparo com essas petições, me pergunto: meu Deus, será que esse traste de mulher, essa figura torta e por vezes repugnante, tem de se casar logo com um homem da SS, por que não escolhe um judeuzinho do leste ou um pequeno mongol; para isso, uma moça dessas é adequada. Na grande maioria desses casos, ainda se trata de homens de excelente aparência”, dizia Himmler, em uma fala reproduzida na biografia.
Rapto de crianças
Como os alemães não fossem suficientes para repovoar sozinhos toda a Alemanha, o Lebensborn estendeu seus braços para fora das fronteiras: além do incentivo à reprodução entre militares alemães e mulheres selecionadas em países ocupados (sobretudo os escandinavos), o programa promovia o sequestro de crianças com características como olhos azuis e cabelos loiros. Só na Noruega, a Lebensborn mantinha seis maternidades, onde nasceram aproximadamente 6 mil filhos de militares.
O rapto de crianças de “boa raça” não se restringia a filhos de mulheres empregadas em trabalhos forçados; a SS também as deportava de territórios ocupados ou anexados pela Alemanha. De acordo com Peter Longerich, a historiadora Isabel Heinemann, que estudou a fundo a questão, estima que pelo menos 50 mil crianças foram raptadas no Leste e Sudeste da Europa. “Inicialmente, as crianças eram levadas para um orfanato central, onde eram observadas, e depois entregues às instituições Lebensborn, que encaminhavam as mais velhas a ‘internatos alemães’ e ofereciam as mais jovens para adoção em famílias SS”, explica Longerich.
Os raptados eram submetidos a exames raciais, para avaliar sua “capacidade de germanização” e, conforme o resultado, transferidos para o território do Reich ou para campos de extermínio. “Vamos pegar para nós aquilo que está presente nesses povos em termos de sangue bom do nosso tipo, se necessário, roubando-lhes as crianças e criando-as no nosso seio”, declarava Himmler abertamente. Em dos casos descritos pelo biógrafo, “88 crianças cujos pais haviam sido executados e cujas mães se encontravam trancafiadas em campos de concentração foram reunidas inicialmente em acampamentos de coleta da Central de Emigração em Lodz, onde sete delas foram consideradas ‘germanizáveis’ e as outras 81 foram transferidas para o campo de extermínio de Chelmno e assassinadas”.
Sequelas do “programa perverso”
Quase todos os documentos relativos ao Lebensborn foram destruídos pelos nazistas e os responsáveis pelo projeto receberam penas menores durante os Julgamentos de Nuremberg. As atrocidades, porém, deixaram milhares de vítimas nos nossos tempos.
Nascida em 1945, a cantora Anni-Frid Lyngstad, a Frida do grupo sueco Abba, é um dos bebês de Lebensborn. Filha de uma norueguesa, Synni, com um sargento alemão, Alfred Haase, ela, a mãe e a avó foram marcadas como traidoras e tiveram que fugir para a Suécia quando a guerra acabou. A mãe de Frida morreu de insuficiência renal, antes que ela completasse dois anos, e o encontro com o pai ocorreu apenas três décadas depois.
“É difícil... teria sido diferente se eu fosse adolescente ou criança. Eu realmente não consigo me conectar com ele e amá-lo do jeito que eu amaria se ele estivesse por perto quando eu crescesse”, declarou a cantora, que caiu em depressão após o encontro tardio com o pai.
Com a derrota da Alemanha, o veredito de 'pai era alemão' bastava na Noruega para enviar crianças a hospitais psiquiátricos, onde muitas foram torturadas e estupradas. O ódio contra os descendentes de alemães era tão grande que psicólogos do governo definiam as mulheres que se envolveram com os soldados como "de talento limitado e psicopatas anti-sociais, algumas delas seriamente atrasadas".
Outro caso emblemático é o da fisioterapeuta Ingrid von Oelhafen, que só descobriu aos 58 anos ter sido sequestrada pelos nazistas quando bebê. Autora do livro ‘As crianças esquecidas de Hitler: a verdadeira história do programa Lebensborn’ (Editora Contexto), Ingrid na verdade é Erika Matko, natural de onde hoje fica a Eslovênia. Ela foi adotada por um casal alemão, cuja missão era criar crianças arianas. Já seus pais biológicos criaram outra menina em seu lugar.
“A ideia de sangue permeia esta história: a crença nazista, que hoje nos parece absurda e imoral, na existência de um ‘sangue bom’, uma substância preciosa que deveria ser buscada, preservada e multiplicada. O contraponto inevitável dessa ideia era o ‘sangue ruim’, que deveria ser identificado e cruelmente erradicado”, pontua. “Mas minha história pessoal também é a de um passado muito mais secreto, acobertado pelo silêncio e escondido pela vergonha. É um alerta do que acontece quando se cultua o sangue como essência vital que determina o valor humano e, por extensão, quando se usa o sangue para justificar os crimes mais terríveis que a humanidade já cometeu contra ela mesma. Porque eu sou filha do Lebensborn”, denuncia a autora.
Em seu livro ‘A Parte Obscura de Nós Mesmos’, a psicanalista Elisabeth Roudinesco alerta que a obsessão nazista pelo terror do declínio da raça inventou a noção de “valor de vida negativa”, baseada na crença de que determinadas vidas não valem a pena ser vividas. “A figura heroicizada do ‘homem novo’ fabricada pela ciência mais civilizada do mundo europeu transformou-se então em seu contrário, uma figura imunda, a da raça dos senhores vestindo o uniforme da SS. Programa perverso — oriundo de uma ciência erigida em religião e cujo ideal de verdade fora pervertido num país fadado à humilhação —, a ‘higiene racial’ repousava primordialmente na pretensão ao controle totalizante da sexualidade humana. Julgando servir à civilização, ela não fez senão percorrer o círculo antropológico peculiar à essência da perversão: humana, exclusivamente humana, a ponto de encerrar o projeto de exterminar o próprio homem e querer substituí-lo, mediante pretensos cruzamentos biológicos perfeitos (o Lebensborn), por um humano de raça pura.”
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