Em 20 de março de 2018, o ex-presidente francês Nicolas Sarkozy foi detido pela polícia local para prestar depoimento. O caso é sobre um suposto financiamento eleitoral irregular de sua campanha em 2007, feito pelo então líder da Líbia, Muamar Kadafi. A campanha de Sarkozy teria recebido 50 milhões de euros de Kadafi. As suspeitas sobre a relação entre eles, entretanto, pode significar mais do que fraudes eleitorais. Pode explicar uma das maiores catástrofes humanitárias do século XXI.
No dia seguinte a sua detenção, Sarkozy foi formalmente indiciado por corrupção, o que significa que existem evidências suficientes para que, no mínimo, uma investigação completa seja feita. Teriam sido violados diversos pontos das regras eleitorais de 2007: nenhum candidato poderia gastar mais de 21 milhões de euros; nenhuma contribuição individual poderia ser maior que o montante de 7.500 euros; todas as doações tinham que ser divulgadas; finalmente, estrangeiros não podiam contribuir com as campanhas.
“Harvard para tiranos”
As relações próximas entre Sarkozy e um líder africano autoritário não são um caso de exceção, um ponto fora da curva. Os vínculos entre o Estado francês e diversos países africanos com governos tão ou mais autoritários quanto a Líbia de Kadafi são comuns faz décadas, com alguns episódios comprovados de promiscuidade nessas relações. A aproximação foi uma forma da França manter relações superavitárias e capacidade de projeção de força após as independências de suas antigas possessões imperiais.
A França foi, por décadas, o principal pilar de sustentação dos governantes do Chade. François Tombalbaye, que governou entre 1960 e 1975; Hissene Habré, que governou entre 1982 e 1990, condenado internacionalmente por violações de direitos humanos; e seu sucessor, Idriss Déby, que governa desde então e estudou no Centro Revolucionário Mundial, um think tank mantido por Kadafi que foi apelidado de “Harvard para tiranos” pelo jornalista e analista Douglas Farah.
Por todo esse período, a França manteve bases militares no país e forte presença na economia, incluindo a petrolífera Total, com o petróleo cru respondendo por 96% das exportações chadianas. O envolvimento francês foi essencial para, de acordo com a conveniência, a derrubada ou manutenção de determinado ditador. Sarkozy, em novembro de 2007, como presidente francês, visitou o Chade, acompanhado da comitiva de CEOs e investidores que costumava levar em suas visitas pela África, especialmente à região francófona.
Talvez o mais famoso caso de promiscuidade nas relações políticas envolvendo franceses e países africanos tenha ocorrido com Valéry Giscard, que presidiu a França entre 1974 e 1981. Em 1973, ainda Ministro de Finanças, Giscard aceitou dois diamantes, supostamente um presente pessoal, de Bokassa I, do Império Centro-africano. Jean-Bédel Bokassa governou a República Centro-africana entre 1966 e 1976, quando proclamou um império, que durou até 1979.
Bokassa faliu o país devido aos desvios feitos para o próprio bolso e para seu megalômano reinado. Tornou-se infame pelo massacre de estudantes — ainda crianças — e, por isso, foi deposto em 1979, por um golpe com apoio francês. Apesar de condenado à morte, Bokassa fugiu justamente para a França presidida por Giscard, onde viveu confortavelmente por alguns anos em um château de “sua” propriedade. A presença francesa ainda é substancial na República Centro-africana, incluindo os eventos do atual conflito civil do país.
Outro exemplo é o de Omar Bongo, que governou o Gabão por mais de quarenta anos, entre 1967 e 2009, com enorme apoio francês. Sarkozy e Chirac foram os únicos líderes ocidentais no funeral de Bongo. Além da habitual presença de bases militares e da exploração do petróleo cru, nesse caso pela Elf, correspondendo à 69% das exportações gabonesas, outro recurso é importante nessa relação: o urânio para usinas nucleares.
Atualmente, a energia nuclear corresponde a mais de 70% da matriz energética francesa. O urânio é componente essencial não apenas das relações entre França e Gabão, mas também entre França e Niger. A antiga colônia francesa está entre os dez países do topo tanto em maiores reservas quanto em maior produção.
O fornecimento francês de apoio político e recursos militares, somado às vistas-grossas sobre violações de direitos humanos, era retribuído com posições geopolíticas e a exploração de recursos naturais africanos em suas ex-colônias. Em exemplo recente, a então Ministra de Relações Exteriores Michelle Alliot-Marie, durante o governo Sarkozy, ofereceu “cooperação policial” ao ditador Ben Ali, da Tunísia, durante a Revolução de 2011, a única que rendeu frutos democráticos na chamada “Primavera Árabe”.
Moeda comum
Além disso, a influência francesa possui um elemento incomum e poderosíssimo, que extrapola os elementos clássicos da geopolítica, como bases e recursos. A moeda. Existem duas moedas chamadas Franco Africano, de ampla circulação: o Franco Centro-africano, que é a moeda corrente de Camarões, República Centro-africana, Chade, República do Congo, Guiné Equatorial e Gabão; e o Franco Africano-ocidental, de igual valor, usada em Benin, Burkina Faso, Guiné-Bissau, Costa do Marfim, Mali, Níger, Senegal e Togo.
Ambas as moedas são garantidas pelo tesouro francês e possuem taxa de conversibilidade fixa para com o Euro; anteriormente, com o Franco francês. Embora cada moeda tenha um banco central próprio localizado na África, na prática a política monetária desses países é regulada pela França e por sua participação na União Europeia. Além de ser uma realidade distante da africana, impossibilita planejamentos econômicos e monetários de longo prazo pelas nações soberanas, mantendo forte influência francesa em seus assuntos domésticos. Algo que nenhum líder da França estará disposto a perder.
Tenda real
Kadafi contribuiu com 50 milhões de euros para a campanha de Sarkozy por idealismo, ou por altruísmo? Não, longe disso. Seja um ditador africano, seja uma empresa do ramo de construção, não existem doações eleitorais, são investimentos. E no quê Kadafi investiu? Relações comerciais, visibilidade e reabilitação internacional.
No início do século XXI, Kadafi distanciou-se de suas políticas da Guerra Fria, definidas por ele como anti-imperialistas, enquanto era acusado de financiar o terrorismo internacional. Junto com o distanciamento ideológico veio a reaproximação internacional. O governo líbio reconheceu a responsabilidade no atentado de Lockerbie, que deixou centenas de mortos. Pagou indenizações de quase três bilhões de dólares aos familiares e entregou os responsáveis para as autoridades britânicas.
Ainda mais relevante foi o acordo mediado justamente pela França, no qual Kadafi abriu mão de seu programa nuclear, submetendo seu país aos inspetores internacionais. Isso possibilitou o fim do regime de sanções imposto à Líbia desde a década de 1980, que afetaram gravemente a economia do país. Em abril de 2004, Kadafi fez sua primeira visita ao continente europeu em quase duas décadas. Em dezembro de 2007, Kadafi foi recebido por Sarkozy.
Já eleito presidente, Sarkozy enfrentou críticas de seu próprio partido por receber o líder líbio. Tornou-se motivo de sátiras na televisão por permitir que Kadafi instalasse sua tenda real nos jardins do Hôtel de Marigny, a mansão que serve de residência para chefes de Estado em visita na França. A tenda de Kadafi, além de sintoma de sua paranoia por segurança, era uma excentricidade vista como símbolo de sua identidade beduína. Em 2009, em Nova Iorque, por ocasião da Assembleia Geral da ONU, Kadafi instalou sua tenda em uma propriedade de Donald Trump, naquele momento longe de ser um presidenciável.
Relações públicas
Na pauta da visita de Kadafi estavam a compra de aviões, civis da Airbus e militares da Dassault, investimentos em petróleo e um acordo de cooperação nuclear: direitos de exploração de urânio líbio para a empresa francesa Areva (recentemente renomeada Orano), controlada pelo Estado, e usinas de energia nuclear da mesma empresa para a Líbia.
Ou seja, em troca da “doação” eleitoral, Kadafi era visto negociando com um dos principais líderes europeus, incluindo temas sensíveis, como compra de armamento e tecnologia nuclear. Além do caso francês, Kadafi fez verdadeira operação de relações-públicas pelo mundo. Seu país foi retirado da lista de países que patrocinam o terrorismo dos EUA e fartos contratos foram assinados com diversas empresas pelo mundo.
Essa é a mesma lógica e o mesmo contexto da reaproximação entre Líbia e Brasil, também com suspeitas de possíveis contribuições de Kadafi para a campanha do ex-presidente Lula. Durante os governos Lula, empresas brasileiras, como a Odebrecht, tiveram acesso ao mercado líbio, e a Petrobras foi a primeira petrolífera estrangeira que conquistou uma licitação na Líbia, em 2005.
Importante destacar que isso foi uma reaproximação, pois as relações entre o Brasil e a Líbia de Kadafi remontam ao período Médici, o auge da repressão militar brasileira. Entre 1973 e 1991, início das sanções internacionais, empresas brasileiras de diversas áreas operaram na Líbia, além de contratos de centenas de milhões de dólares em armamentos, desde veículos blindados da Engesa até bombas para aviões da Avibrás. Em 1987 é formada uma comissão mista binacional, tamanha era a relação comercial entre os dois países.
Não é teoria da conspiração
Sarkozy teve um papel decisivo na derrubada e na morte de Muamar Kadafi. No dia 17 de Fevereiro de 2011, eclodiram diversos protestos por toda a Líbia contra o domínio de Kadafi. Embora numa primeira vista tomados como mais um dos protestos da “Primavera Árabe”, a situação líbia tinha algumas especificidades. Especialmente o fato que, desde o início, os protestos tinham um núcleo armado e organizado, ao contrário dos movimentos orgânicos da Tunísia, por exemplo.
Hoje, sete anos depois, sabe-se que, dentre os protestos, existiam milícias rebeldes organizadas representando setores insatisfeitos com Kadafi. Alguns clãs beduínos anti-Kadafi e também grupos cirenaicos em Benghazi, região historicamente contrastada com a Tripolitânia, onde fica a capital e maior cidade líbia, Trípoli.
Ambos os tipos de grupos receberam armamento estrangeiro, especialmente via Qatar. Mais grave ainda, teve-se importante papel do Fronte Islâmico da Líbia e da Ansar al-Sharia, grupos considerados terroristas pelos EUA e pelas Nações Unidas, filiados à al-Qaeda de Osama bin-Laden. Os grupos receberam armamento e apoio militar da OTAN durante a guerra civil na Líbia.
Kadafi ordenou a repressão em larga escala dos protestos, o que iniciou uma guerra civil que dura até os dias de hoje, embora em outra fase. Alegando a defesa da população civil contra a repressão, Sarkozy foi um dos primeiros e mais veementes líderes que instigou a OTAN em intervir na Líbia. Com isso, e com a abstenção da Rússia e da China, o Conselho de Segurança da ONU autorizou o estabelecimento de uma zona de exclusão e de ações em defesa de civis.
Na prática, ocorreu uma campanha de bombardeio da OTAN como participação ativa em um conflito, objetivando uma mudança de regime. Não se trata de teoria da conspiração, como por vezes é alegado, mas constatação feita contrastando as resoluções da ONU, o que elas autorizaram, o que foi realizado e sob quais discursos. Por exemplo, Barack Obama, então presidente dos EUA, pronunciou em rede nacional, pouco tempo após o início dos protestos, que “Kadafi precisa cair”.
Resumindo a complexidade do conflito líbio, o envolvimento dos países da OTAN e do Qatar foi essencial e comprovado, como na captura de tropas especiais britânicas por acidente na Líbia. Tal envolvimento foi decisivo para a morte de Kadafi também, em 20 de outubro de 2011. Seu comboio que fugia de sua cidade natal, Sirte, foi atacado por aviões da OTAN; a organização alega que não sabia da presença de Kadafi no comboio.
Os veículos se dispersaram e Kadafi foi localizado por tropas rebeldes e executado em condições brutais, filmadas e distribuídas pela internet. Um componente não confirmado dessa história é a hipótese de que a localização de Kadafi foi obtida graças ao seu telefone via satélite, obtido pela inteligência francesa, possivelmente na Síria.
Mais do que advogar pela intervenção da OTAN, é possível que Sarkozy tenha sido diretamente responsável pelos protestos contra Kadafi, organizados desde o ano anterior. O pivô dessa relação seria Nuri al-Mesmari, figura próxima ao ditador líbio. Ele desertou e foi para a França. Lá ele teria colaborado ou sido cooptado pelo Direction générale de la sécurité extérieure (DGSE), o serviço de inteligência nacional francês, em coordenar e articular movimentos rebeldes contra Kadafi.
Ainda em março de 2011, Saif-al-Islam Kadafi, o moderado filho de Kadafi e provável sucessor, deu uma entrevista a Euronews em que afirmava que a campanha de Sarkozy foi financiada pelo dinheiro de seu pai, que ele tinha como provar e que, “em nome do povo líbio (...) quero o dinheiro de volta”. O que leva ao presente caso contra Sarkozy.
150 toneladas de ouro
Novamente, indo além da geopolítica clássica, que destaca, por exemplo, o fato da Líbia ter uma das maiores reservas de petróleo do mundo, de altíssima qualidade e fácil acesso ao continente europeu, o que explicaria o interesse de Sarkozy na derrubada de Kadafi? O ditador líbio era um alvo fácil. Não foi difícil convencer o mundo de que Kadafi deveria ser derrubado.
Por décadas considerado um dos principais inimigos do Ocidente, financiador de atos terroristas e de regimes muitas vezes considerados párias, Kadafi não despertava defesa. Mais do que isso, um histórico de violações de direitos humanos e um estilo de vida público de megalomania e luxo tornavam ele, no máximo, uma figura caricata para a maioria das pessoas.
Como parte da renovação de seu papel internacional no século XXI, Kadafi buscava um pan-africanismo político, a integração cada vez maior da União Africana, entidade da qual foi Secretário-geral em 2009. Seu maior plano era usar as imensas reservas exteriores da Líbia para criar uma moeda única. Como seu país, ao sofrer sanções, não pôde fazer negócios em moedas como o dólar, Kadafi apostou no ouro como lastro das reservas do país.
Além de ativos e fundos soberanos congelados de quase 150 bilhões de dólares, algumas estimativas especulam que a Líbia teria cento e cinquenta toneladas de ouro em reservas no sistema bancário estatal do país. Em valores aproximados de 2018, essa quantidade significaria mais de seis bilhões de dólares. Esse montante seria usado para criar uma moeda africana, iniciando seu uso pelo comércio do petróleo, habitualmente feito em dólares, com grande correlação entre o recurso e a moeda.
Ou seja, a iniciativa de Kadafi representaria não apenas uma mudança no comércio mundial de petróleo, mas também diminuiria a influência francesa na África, inclusive na África francófona. Isso foi exposto, dentre outras fontes, em um email vazado no escândalo do servidor pessoal de Hillary Clinton - escrito por Sidney Blumenthal, conselheiro sênior da presidência Bill Clinton e assessor de campanha de Hillary Clinton; Hillary, lembre-se, era Secretária de Estado dos EUA quando da intervenção na Líbia.
As novas investigações jogam mais elementos e possibilidades sobre essa relação ambiciosa e promíscua. A intervenção francesa contribuiu para a derrota de Sarkozy na busca pela reeleição. A OTAN e os países do Golfo Pérsico literalmente explodiram bilhões de dólares de seu orçamento na operação militar. O destino de Kadafi teria sido um dos motivos para a posição firme de Putin em defender seu aliado Assad.
A Líbia está com boa parte de sua infraestrutura destruída, sem um governo estabelecido, com seu território dividido em caudilhos e milícias, incluindo grupos jihadistas. A anomia chega ao ponto da Líbia ter virado um mercado aberto de tráfico de pessoas. O Grande Rio Artificial da Líbia, o maior sistema de irrigação do mundo, foi danificado, prejudicando o abastecimento de água de diversas regiões desérticas.
Cerca de um milhão de líbios fugiram para a Tunísia, com outros quatrocentos mil refugiados na Europa, totalizando cerca de 15% da população pré-guerra, além de dezenas de milhares de mortos. Uma catástrofe humanitária de proporções enormes, cujos motivos e origens não foram esgotados e também ainda não são totalmente conhecidos. Talvez as investigações francesas e Saif al-Islam Kadafi, candidato à presidência da Líbia, ainda possam elucidar alguns pontos.
Filipe Figueiredo é graduado em História pela Universidade de São Paulo e comenta política internacional no blog Xadrez Verbal.