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Atendendo a pedido da Coligação Brasil da Esperança, que faz a campanha de Lula para o segundo turno, o juiz Paulo Sanseverino, do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), assinou decisão às 14h de terça (04/10) para censurar 29 tweets e um vídeo no Facebook. Parte do conteúdo censurado trata da relação entre Lula e Daniel Ortega, ditador da Nicarágua. Entre os alvos de censura estão apoiadores do presidente Bolsonaro, seu filho e coordenador de campanha Flávio Bolsonaro, e a Gazeta do Povo. Um tweet da conta oficial do jornal, contendo notícia da remoção do sinal da CNN em espanhol pelo regime, com destaque ao relacionamento Lula-Ortega, encontra-se suprimido em todo o Brasil.
A petição da campanha de Lula alega que os 26 alvos representados “promovem reiterada campanha difamatória contra o candidato”, em desobediência ao TSE, e que buscam associá-lo a um regime autoritário que persegue cristãos, “o que sabidamente é uma inverdade”. No texto da decisão, que data do dia da votação do primeiro turno, o ministro Sanseverino defere o pedido com urgência e determina que Twitter e Facebook cumpram a censura em um prazo de 24h sob pena de multa diária de R$10 mil. Ele diz que as publicações censuradas “transmitem de forma intencional e maliciosa mensagem de que o candidato Luiz Inácio Lula da Silva é aliado político do ditador da Nicarágua Daniel Ortega”.
O juiz também elenca algumas das publicações censuradas, como este comentário: “Daniel Ortega, celebrado pelo PT e por Lula, tira o sinal da CNN da Nicarágua”. A decisão dá a entender que essa frase é falsa. Ocorre que todas as partes dela são verdadeiras.
Outra decisão do ministro Sanseverino, de 19 de setembro, oferece marcado contraste: na ocasião, ele negou pedido da campanha de Bolsonaro para que removesse uma propaganda da campanha adversária que alegava que Lula “foi preso sem crime e sem provas” e “venceu todos os processos” — essas sim, sabidas inverdades.
Qual é a relação de Lula e do PT com Ortega?
Uma das primeiras aproximações explícitas foi a fundação do Foro de São Paulo, organização que diz em site próprio que foi fundada “a partir de uma convocatória dos ex-presidentes Lula e Fidel Castro a partidos, movimentos e organizações de esquerda em julho de 1990”. Castro foi o ditador de Cuba por 46 anos. O partido de Ortega, Frente Sandinista de Liberación Nacional (FSLN), é listado como membro, junto ao partido da ditadura venezuelana (Partido Socialista Unido da Venezuela — PSUV). Em 2018, quando o ditador da Nicarágua reprimiu a oposição, com mais de 360 vítimas fatais, o Foro de São Paulo publicou nota em “apoio irrestrito” ao “camarada Daniel Ortega”, denunciando “o vandalismo da direita e das organizações financiadas pela contrarrevolução que, com o apoio do imperialismo ianque, encheram de luto os lares nicaraguenses”.
Em 2007, Lula, na época presidente da República, visitou a Nicarágua após vitória eleitoral de Ortega. Como noticiou na época a BBC Brasil, Lula disse que sentiu uma emoção diferente visitando o país, pois foi lá que conheceu Fidel Castro. “Vivi todo o trabalho que o presidente Daniel Ortega fez para consolidar a Nicarágua como país soberano”, disse Lula na época, prometendo tantos acordos quanto necessários para promover a “justiça social” no país. O próprio nicaraguense fez as vezes de motorista para buscar o amigo no aeroporto.
Os acordos vieram: em 2009, foi concluído um plano de construção da Usina Hidrelétrica de Tumarin com investimento de 500 milhões de dólares com participação do BNDES (banco estatal brasileiro). Corrigindo com a inflação e a cotação atual do dólar, equivalem a R$3,6 bilhões hoje. O plano era da Eletrobrás e de uma empresa afiliada à empreiteira Queiroz Galvão. Em 2014 e 2016, o diretor presidente da Queiroz Galvão foi preso pela operação Lava Jato, acusado de corrupção, lavagem de dinheiro, organização criminosa e tentativa de obstrução de investigação. O Tribunal de Contas da União (TCU) impediu o repasse de recursos para a construção da hidrelétrica em 2016. Na época, o orçamento tinha subido para US$1,2 bilhão (R$7,7 bilhões hoje).
Em matéria de 28 de julho de 2010, o site G1 informou que Lula expressava intimidade com o ditador: brincou que ambos integrariam um “eixo do mal” durante uma recepção oficial a Ortega. A matéria especula que seria uma menção direta ao termo do presidente americano George W. Bush para seus adversários na Guerra do Iraque: sinal de uma irmandade em oposição aos Estados Unidos, bandeira comum na esquerda latino-americana. “Nossa relação é parte integrante de um eixo latino-americano e caribenho, em franca expansão, que busca modelos de desenvolvimento progressistas”, disse o candidato.
A única interrupção aparente de apoio de Lula a Ortega, desde a fundação do Foro de São Paulo, foi em uma entrevista que Lula deu à jornalista Sabina Berman, do México, em julho de 2021. Berman citou Ortega explicitamente como exemplo de uma esquerda antidemocrática do continente. Na resposta, Lula faz elogios à democracia sem mencionar Ortega, e alega que disse a Hugo Chávez (Venezuela) e Álvaro Uribe (Colômbia) apenas, não a Ortega, que “toda vez que um governante começa a se achar insubstituível e toda vez que um governante começa a se achar imprescindível, está surgindo um pouco de ditadura naquele país”.
O mês de novembro de 2021 é crucial para entender que a relação amistosa de Lula e do PT com o regime de Ortega perdura até hoje. Defendendo Ortega em uma entrevista ao jornal El País, Lula perguntou “Por que Angela Merkel pode ficar 16 anos no poder, e Daniel Ortega não? Por que Margaret Thatcher pode ficar 12 anos no poder, e Chávez não?” No dia 10, o PT apagou discretamente uma nota de apoio a Ortega depois que ele foi “eleito” para seu quinto mandato, resultado amplamente considerado fraudulento, com todos os opositores do ditador presos ou exilados.
Em vídeo publicado no dia 30 do mesmo mês no próprio canal de Lula no YouTube, de uma entrevista realizada pelo grupo gaúcho de comunicação RBS, o jornalista Leandro Staudt perguntou a Lula se Nicarágua, Venezuela e Cuba são democracias. O candidato respondeu mencionando as eleições da Venezuela, em que a oposição teria ganhado mais votos, porém, segundo ele, ela teria perdido para o ditador Maduro por se dividir em partidos demais. No mesmo mês, uma Missão de Observação Eleitoral da União Europeia, a primeira em 15 anos, publicou relatório em que declarou que “a falta de independência judicial e o desrespeito pelo Estado de direito afetaram negativamente a igualdade das condições de concorrência e a equidade e transparência das eleições” venezuelanas.
Lula também explicou que sua declaração anterior, comparando Ortega a Merkel, na verdade era uma comparação da longevidade de mandatos de primeiros-ministros no parlamentarismo ao tempo mais curto considerado normal para presidentes, no presidencialismo. A jornalista Rosane de Oliveira, presente na entrevista, aproveitou a comparação para informar que “no caso específico, o que o Daniel Ortega fez foi prender os adversários, esta é a diferença”. Driblando o assunto, Lula respondeu “mas eu não vi vocês ficarem incomodados quando eu fui preso injustamente”.
Ortega não é consenso entre comunistas. A Liga Internacional de Trabalhadores Quarta Internacional, que existe desde 1982, acusa Ortega de ser um traidor em artigo republicado em 2018, e diz que os jovens do país “são mortos por um governo isolado e que carece de qualquer vestígio de legitimidade”. Enquanto isso, no site do Partido dos Trabalhadores de Lula, não há artigos críticos marcados com o nome de Ortega, apenas artigos elogiosos.
Por que Ortega é um ditador?
O histórico autoritário de Ortega é bem conhecido. A enciclopédia Britannica afirma que em 1967 ele foi preso por um assalto a banco e passou sete anos preso. Quando libertado, ele se exilou em Cuba, onde recebeu treinamento de guerrilheiro. Depois, atuou como líder de guerrilha e membro da junta sandinista (termo que vem de César Augusto Sandino, líder de guerrilha do começo do século XX) que tomou o poder após uma guerra civil em 1979 que derrubou uma outra ditadura corrupta. Ortega foi eleito presidente em 1984, mas foi derrotado em eleições subsequentes.
Em 2007, derrotou eleitoralmente o conservador Eduardo Montealegre, resultado reconhecido internacionalmente. Com um ano desse novo mandato, Ortega começou a regular a mídia, negar a jornalistas acesso a informações do governo, se alinhando ao ditador venezuelano Hugo Chávez. Em novembro de 2008, quando aconteceram eleições municipais, o presidente mandou policiais pilharem os escritórios do jornalista investigativo Carlos Fernando Chamorro, observadores internacionais dessas eleições foram recusados com a desculpa de que representavam poderes imperialistas. Sua aprovação popular minguava em 20%.
Em 2009, um ano antes da visita oficial ao Brasil, fez campanha com sucesso para eliminar a proibição constitucional à reeleição. Em 2011, “venceu” a reeleição com 60% dos votos, um resultado considerado fraudulento. Com maioria absoluta no parlamento, em seguida (2014) removeu limites de mandato na presidência e deu a si mesmo poderes de governar por decreto. Em 2016, “concorreu” com a esposa como vice, “vencendo” com 72% dos votos, processo que foi boicotado pela oposição e não foi observado por representantes internacionais. Ortega acumula 15 anos no poder.
Em agosto último, o jornal The New York Times noticiou que Ortega silenciou seus últimos críticos: os padres católicos. Foi um marco a prisão do Bispo Rolando Álvarez, crítico do regime, desenvolvimento que o jornal considerou “chocante”. Uma ONG local registrou 150 casos de tortura na Nicarágua de Ortega desde 2019.