Desde que a existência de campos de concentração para uigures e outros povos minoritários na Região Autônoma de Xinjiang foi reportada pela primeira vez em meados de 2017, o Partido Comunista Chinês e seu líder, o ditador Xi Jinping, são apontados como os responsáveis pelas violações aos direitos humanos às quais estes povos vêm sendo submetidos. Embora a atribuição esteja correta, o pouco conhecimento sobre a rede de apoiadores que garantem a permanência do sistema de repressão dificulta que todos os envolvidos sejam incriminados.
Publicado pelo Australian Strategic Policy Institute (ASPI) no último dia 19 de outubro, um extenso relatório intitulado “A arquitetura da repressão”, elaborado pelos pesquisadores Vicky Xu, James Leibold e Daria Impiombato, incomodou o Ministério das Relações Interiores da China ao mapear não apenas as políticas públicas que sustentam a repressão - como os programas de vigilância interna das famílias uigures - , como alguns dos principais nomes envolvidos com a perseguição aos povos minoritários.
“Xi Jinping tem uma obsessão pelos secretários do partido nos condados; ou seja (...) os principais oficiais nas cerca de 3 mil regiões administrativas neste nível na China”, diz o relatório. Para o ditador, estes comitês são a “linha de frente” do Partido Comunista Chinês, e o secretário local é a peça-chave para a mobilização popular e para “a própria existência do regime”. Entre 2014 e 2017, Xi treinou pessoalmente alguns destes membros.
Durante a elaboração do documento, os pesquisadores compilaram nomes e informações básicas de centenas de secretários de partido do condado de Xinjiang entre 2014 e agosto de 2021. Entre eles, destacam-se três que foram mais incensados pela mídia chinesa e, algumas vezes, pelo próprio Xi Jinping. A Gazeta do Povo teve acesso à íntegra do relatório que contém os perfis desses mandatários e reproduz, abaixo, os principais trechos do documento:
O intelectual devoto
O último 1º de julho marcou o 100º aniversário do Partido Comunista Chinês. Na véspera, Xi Jinping se reuniu com 103 oficiais locais de todo o país que foram agraciados com um título honorário. O mais jovem entre eles era Yao Ning, de 36 anos.
Yao é o retrato do intelectual devotado à causa, e ganhou considerável atenção da mídia chinesa graças a sua formação em duas das universidades mais importantes do mundo: Tsinghua, na China, e Harvard, nos Estados Unidos. No início de 2019, foi nomeado secretário do partido do condado de Maralbeshi, predominantemente uigur. Nele, os pesquisadores da ASPI identificaram nove instalações de detenção construídas ou ampliadas desde 2017.
“Yao personifica o quadro ideal de Xi Jinping: jovem, leal e capaz. Depois de passar seus primeiros anos na província de Shanxi, Yao estudou engenharia na Universidade Tsinghua. Na graduação, ele participou ativamente da política estudantil, chefiando a Liga da Juventude Comunista e o braço do partido para sua corte, e foi eleito presidente da associação estudantil”, relata o documento.
Desde a faculdade, Yao demonstrava forte nacionalismo e ambição política “[Eu gostaria de] ir para o lugar onde a pátria mais precisa [de mim]”, dizia. Naquele ano, foi selecionado pela universidade para ser um "Membro Notável do Partido Comunista de Graduação”. Em 2018, em uma conversa com estudantes, Yao disse ser “grato pela oportunidade de servir em Xinjiang”.
A fidelidade de Yao ao partido é reafirmada em suas redes. Em dezembro de 2019, ele postou no Weibo - o Twitter chinês - que um oficial próximo a ele havia falecido repentinamente, "exausto de tanto trabalho”, em Xinjiang. “Estávamos brincando ao telefone há alguns dias e de repente ele se foi’, escreveu ele, “para que o sul de Xinjiang tenha a situação pacífica de hoje, tantos quadros se sacrificaram”.
No mesmo ano, publicou uma foto com o slogan maoísta "Sirva ao povo" e a legenda: "Sempre que [estou] exausto, encontro esta foto tirada anos atrás e olho para ela. [Minha] única esperança é nunca perder de vista [minha] aspiração original”. A expressão “aspiração original”, segundo os pesquisadores, é uma famosa frase de efeito de Xi Jinping.
O marqueteiro inovador
Onze vice-governadores dividem o governo da província de Xinjiang, abaixo do secretário do Partido. O mais recente deles é Yang Fasen, de 50 anos, que é também o funcionário mais jovem de nível ministerial na região. Foi ele o responsável pela criação de um conjunto de políticas de propaganda pró-Partido Comunista que ficou conhecido como “Bay County Experience”, uma vez que o experimento se deu enquanto Yang servia como secretário do partido no condado de Bay, majoritariamente uigur.
Segundo o relatório, a “experiência Bay County” consistia na centralização de recursos de meios de comunicação estatais, sites do governo e verbas de propaganda voltados para o exterior para formar uma superestrutura de propaganda no próprio condado, o Bay County Propaganda Center.
Criado em janeiro de 2013, o centro possui três andares, mais 600 mil metros quadrados e custou cerca de 314 000 dólares. Nele, os membros do partido organizavam entrevistas na mídia, produziam conteúdo e enviavam mensagens unificadas para diferentes plataformas, incluindo rádio, televisão, mídia social e alto-falantes de vilas. O centro também produz e divulga folhetos de propaganda, panfletos, peças de teatro, pinturas e jingles alinhados aos ideais do partido. Além disso, o Centro de Propaganda mobilizava civis para combater o “extremismo religioso” dos uigures, fomentando a espionagem e a doutrinação.
Por tudo isso, a Experiência de Bay County foi amplamente promovida pela mídia chinesa, e Yang caiu nas graças de Xi Jinping. Em 2015, durante a reunião do partido, foi um dos cinco homens a apertar a mão do ditador e discursar no Grande Salão Popular de Pequim. No mesmo ano, venceu o prêmio “Outstanding County Party Secretary” (“Secretário Excepcional do Partido do Condado”, em tradução livre) e, em 2016, foi promovido a Secretário Adjunto do Partido da região de Hotan, onde existem mais de 52 centros de detenção.
O uigur convertido
Desde 2017, quase todos os vice-secretários de partido pertencentes a minorias étnicas em Xinjiang publicaram por escrito, pelo menos uma vez, a promessa de serem “gratos ao partido, ouvir o partido e seguir o partido”, lembrando sempre “da generosidade do partido”. Eles juram “acabar com a festa dos inimigos” - literalmente, “erradicá-los e esmagá-los em batalhas sangrentas até a morte”.
O primeiro oficial uigur a fazer esta promessa foi Obulqasim Mettursun. No início da campanha de reeducação, ele era o secretário adjunto do partido de Jay Township, no condado de Keriye, e seu nome viralizou na internet chinesa depois de publicar "Um alerta para os outros uigures". Segundo o próprio texto, Mettursun escreveu a carta aberta depois de ser "inspirado" por uma série de desfiles militares realizados em Xinjiang.
Na carta, escrita em 19 de fevereiro de 2017, ele expressou gratidão pelas políticas do partido e afirmou que os uigures deveriam adotar uma postura mais firme na luta contra “as forças do mal”. Em 3 de março, o texto estava circulando na conta oficial do WeChat - o Facebook chinês - de Keriye. Em 25 de março, o Comitê do Partido de Xinjiang iniciou uma campanha em toda a região para que os uigures "aprendessem com o camarada Obulqasim Mettursun", que recebeu o título de "Membro Notável do Partido Comunista".
Ainda naquele ano, uigures começariam a desaparecer nos campos de “reeducação”. Mettursun seria convidado a dar palestras aos presos, incentivando que “ouvissem o partido, fossem gratos ao partido e seguissem o partido”. Ele foi presenteado pelo partido com o livro de Xi Jinping e apareceu segurando-o em diversos artigos da mídia estatal. Neles, Mettursun prometia “matar os inimigos até que fossem extintos”. Sua carreira, contudo, estacionou: uigures quase não são permitidos em cargos mais altos no partido. Ainda assim, em 2021, Mettursun continua a testemunhar a jornalistas estrangeiros que “em Xinjiang as carteiras das pessoas estão cada vez mais cheias e os sorrisos felizes em seus rostos cada vez mais bonitos".
Falta de vacinas expõe incompetência dupla de Nísia Trindade em 2024
Lira expõe papel do governo Lula na liberação de emendas ao confrontar Dino
Defesa de Silveira pede soltura e contato de Moraes em caso de nova emergência
Marco Civil da Internet no STF: a expectativa da retomada do julgamento em 2025; ouça o podcast