É comum que os livros de história que líamos quando crianças evitem o lado humano mais complicado dos nossos santos e heróis. É reconfortante, afinal, mostrar apenas o desenho bidimensional que é o seu lado lendário. Só mais tarde é que aprendemos – se tanto – que até mesmo os nossos heróis podem ser perversos, vingativos, vulgares, invejosos e mesquinhos.
Essas considerações sobre imagem e realidade podem muito bem perturbar qualquer um que folheie a livro “Martin Luther: Renegade and Prophet” [“Martinho Lutero: Renegado e Profeta”, em tradução livre, ainda inédito em português], de Lyndal Roper.
Nessa nova biografia do nome que foi o estopim da Reforma, Roper – pesquisadora de história que ocupa uma cátedra de Regius Professor em Oxford – reconhece a coragem, a inteligência e as convicções profundas de Lutero, bem como também sua imensa influência cultural, mas nos mostra que, para os padrões modernos, ele era tudo menos um cristão exemplar.
Como líder religioso, ele era ditatorial e inflexível, fanfarrão, boca suja e dado a expressões escatológicas em suas invectivas contra os adversários, além de um homem de um antissemitismo asqueroso
Como líder religioso, ele era ditatorial e inflexível, fanfarrão, boca suja e dado a expressões escatológicas em suas invectivas contra os adversários, além de um homem de um antissemitismo asqueroso e longe de ter afinidade com qualquer igualitarismo político ou sexual, Lutero nos passa a imagem de um fanático. Mesmo os elogios na capa do livro transmitem essa impressão: Para A. N. Wilson, ele é o “gênio monstruoso da Reforma” e, para Hilary Mantel, “um homem que desperta tanto admiração quanto horror no leitor moderno”.
O historiador do século XIX Leopold von Ranke havia famosamente feito o apelo de que devíamos reconstruir o passado “wie es eigentlich gewesen”, isto é, a fim de mostrá-lo como era de verdade. Até onde é possível, Roper adapta esse lema para sua biografia também: Ela procura acompanhar o “desenvolvimento interno” de Lutero, entrar dentro da sua cabeça: “Eu quero saber como um indivíduo do século dezesseis percebia o mundo ao seu redor e o porquê de ele ver as coisas desse jeito. Quero explorar suas paisagens internas para melhor compreender suas ideias sobre a carne e o espírito”.
Ela acrescenta que “foram as amizades e inimizades marcantes de Lutero que me convenceram que ele precisava ser compreendido através das suas relações e não como o herói solitário do mito da Reforma”. Como resultado, seu livro situa esse pensador revolucionário e o seu pensamento dentro das correntes sociológicas, políticas e religiosas que se cruzavam na Alemanha contemporânea.
Nascido em 1483, Lutero cresceu em Mansfeld, uma cidade de mineração, onde seu pai foi parte do que hoje se chamaria de alta gerência. Quando o jovem Martinho foi para a universidade em Erfurt, era para ele ter voltado para casa formado como advogado. No entanto, após uma epifania assustadora que ele teve durante uma tempestade, Lutero decidiu se tornar um monge agostiniano, apesar do desgosto dos seus pais. Assim como o psicólogo Erik Erikson, Roper enxerga a vida de Lutero em termos de figuras de autoridade pelas quais ele tinha reverência a princípio, mas que depois são superadas e rejeitadas.
Como monge, Lutero adotou um estilo de vida de ascese extrema, combinada a uma busca implacável pela perfeição: Ele era conhecido por fazer seis horas de confissão por vez. De fato, Lutero nunca fazia nada pela metade. Após ascender pela hierarquia do seu monastério, o jovem monge foi apontado como professor de estudos bíblicos na pequena universidade de Wittenberg, uma cidade que Roper – cuja pesquisa ninguém pode dizer que não é bem detalhada – nos diz que contava com três portões, não mais do que nove ruas e algo entre 2000 e 2500 habitantes.
Em 31 de outubro de 1517, Martinho Lutero pregou as suas 95 teses na porta da Igreja do Castelo de Wittenberg. Ele mais tarde diria aos seus discípulos que o seu axioma fundamental – que os seres humanos são justificados só pela fé – lhe veio a princípio enquanto ele estava sentado no sanitário. Em seu juízo, as palavras das escrituras tinham uma autoridade que era superior tanto aos decretos papais quanto aos ensinamentos dos Pais da Igreja, os únicos sacramentos verdadeiros eram o batismo e a comunhão e a salvação dependia inteiramente da graça de Deus.
Na maioria das suas obras, bem como em suas cartas particulares, ele combinava argumentos inteligentes com vituperações e zombaria virulentas. Os bispos eram sodomitas. O Papa era o Anticristo.
E quanto às boas obras? Elas não contavam? A seu ver, elas eram irrelevantes, tendo sido comparadas certa vez à “imundície” que sai dos corpos das mulheres. Como comenta Roper, o sangue menstrual era “a comparação mais chocante e repugnante que ele conseguia imaginar”. Quando Lutero se recusou a desdizer suas ideias heréticas, ele foi excomungado em 1521.
Como Roper aponta, Lutero foi rápido em compreender como a tecnologia moderna – no caso, a imprensa de Gutenberg – poderia ser utilizada para disseminar sua mensagem reformista. Entre 1518 e 1525, as publicações de Lutero ficaram no topo da lista de best-sellers da Europa. Na maioria das suas obras, bem como em suas cartas particulares, ele combinava argumentos inteligentes com vituperações e zombaria virulentas. Os bispos eram sodomitas. O Papa era o Anticristo. Esperando ser martirizado, ele chegou até a se identificar, ousadamente, com Jesus.
Como líder, Lutero não tolerava qualquer oposição, exigindo dos seus associados, nas palavras de Roper, “completa submissão intelectual e espiritual”. Em algum respeito, ele acerta num aspecto que é muito moderno: Contra a longa tradição católica que honrava a abstinência e a castidade, ele afirmava que Deus quis que os seres humanos desfrutassem do sexo. Praticando o que pregava, Lutero casou-se com uma ex-freira com a qual teve vários filhos.
Em certo ponto, ele chegou até a dar o seu consentimento ao casamento bígamo entre um príncipe sifilítico e sua concubina de 17 anos
A partir de sua teologia, que tinha as escrituras como base, e no vigor terrestre da sua prosa polemista surgiu uma das maiores conquistas de Lutero: Sua tradução da Bíblia para o alemão. De um ponto de vista político, ele permanecia sendo excepcionalmente conservador, tendo horror a qualquer inquietação social e dando apoio incondicional à lei e à ordem. Durante a chamada “Guerra dos Camponeses”, ele ficou do lado da aristocracia, proclamando – aparentemente sem perceber a ironia – que “nada pode ser mais venenoso, danoso ou diabólico do que um rebelde”.
Em certo ponto, ele chegou até a dar o seu consentimento ao casamento bígamo entre um príncipe sifilítico e sua concubina de 17 anos. Menos chocante e mais surpreendente foi o fato de que Lutero chegou a publicar também uma introdução ao Corão.
Por fim, eu só queria enfatizar que “Martin Luther: Renegade and Prophet” não é um livro pró-ateísmo escrito por uma figura como um Christopher Hitchens, mas é obra de uma historiadora imensamente respeitada. Ao longo de todo o livro, Roper mantém um tom ponderado de inquisição acadêmica. No caminho, porém, ela nos faz perceber uma verdade desconcertante: Que as pessoas razoáveis, civilizadas e dotadas de empatia dão ótimos vizinhos, mas geralmente são os fanáticos e extremistas que mudam o mundo, para o bem ou para o mal.