Vivemos tempos de crise mundial ou, nas palavras do sociólogo polonês Zygmunt Bauman, “tempos de interregno”, entre o que não é mais e o que não é ainda. Esta é a ideia central de seu novo livro, “Babel - Entre a incerteza e a esperança” (Zahar), um diálogo com o jornalista e escritor italiano Ezio Mauro. Em entrevista, Bauman defende que não é a democracia que está em crise, mas o Estado nacional, incapaz frente ao poder das corporações e aos fluxos comerciais, financeiros e informacionais. Apesar do horizonte sombrio, o sociólogo afirma que “o que nos mantém vivos é a imortalidade da esperança”. E aponta que construir o novo é o desafio que se impõe no presente.
Seu novo livro, “Babel”, aborda a crise da democracia no mundo. Quais são as causas dessa crise?
A chamada “crise da democracia” na era da globalização do poder deriva da crise da territorialidade do Estado nacional. Esse Estado foi proclamado como o modelo universal da coabitação humana, pela autonomia e o autogoverno. Hoje, existe uma discrepância entre o alcance global - extraterritorial - dos poderes que realmente importam para nossa vida e as políticas dos Estados, destinadas a confrontá-los, mas que estão confinadas às fronteiras territoriais. Os Estados que pretendem proteger seus residentes e defender seus interesses não podem mais cumprir suas promessas, pois não têm mais os poderes necessários para isso. E é nos Estados que, corretamente, mais se orgulham do seu espírito democrático e das suas instituições que a crise é erradamente traduzida como uma crise da democracia.
A crise da democracia afeta também a crença nos valores democráticos mais nobres, como a tolerância e o respeito às diferenças?
A tolerância e o respeito às diferenças e a democracia são dois lados da mesma moeda, e seus destinos são inseparáveis. A crise de um é, simultaneamente, a crise do outro. Democracia sem tolerância e respeito pelo Outro é um oximoro, enquanto democracia com tolerância e respeito à diferença é um pleonasmo.
O senhor diz que os indivíduos se sentem vulneráveis, não se sentem representados politicamente e desconfiam do Estado. Qual a consequência dessa vulnerabilidade?
Um serviço fundamental esperado do Estado era a redução dos desconfortos da vida. No entanto, ou esse serviço foi completamente abandonado pelo Estado ou ficou muito abaixo do nível adequado. Os desconfortos, então, se multiplicaram e se intensificaram pelos tormentos da incerteza e da humilhação trazidas pela sensação de inadequação pessoal. Esta última, o efeito de uma política que tornou os indivíduos os únicos responsáveis pelos seus resultados, particularmente os negativos e os desapontadores. Como coloca o ditado popular inglês, “cada um por si e o diabo fica por último”. As pessoas pararam, então, de ver o Estado como um investimento seguro e confiável de suas esperanças.
O sentimento predominante no mundo contemporâneo parece ser a raiva. O espaço da tolerância e do respeito parece cada vez menor. Essa seria uma reação à sensação de vulnerabilidade?
A vulnerabilidade é como nós nos sentimos após um processo prolongado de individualização forçada, privatização e “flexibilização” das nossas preocupações, das nossas posições na sociedade, dos direitos, dos deveres e das responsabilidades. O sedimento deste sentimento de vulnerabilidade é a incerteza, a ameaça constante à nossa autoestima. Nossas conquistas ao longo da vida se tornam frágeis, instáveis e não confiáveis, temporárias até segunda ordem. Esses medos tendem a ser difusos, desfocados e indefinidos, por essa razão ainda mais insuportáveis. E nos provocam raiva. Pelo menos um alívio parcial - a que somos levados a acreditar pelo canto da sereia de todo o tipo de demagogo interessado no capital político oferecido pela nossa incerteza, nosso medo e nossa raiva - pode ser oferecido pela descarga das nossas tensões e ansiedades sobre alvos específicos. Atualmente, os alvos preferidos são imigrantes e refugiados, aqueles estranhos que tornam vívida a fragilidade do nosso próprio destino. Por isso, estão aptos a ocuparem esse lugar. São lembretes da nossa miséria e da nossa impotência.
O projeto da União Europeia foi uma tentativa de superação dos limites dos Estados nacionais, mas hoje está em crise, com ascensão da extrema-direita em todo o continente. O que houve?
Cada Estado e a própria União Europeia são pressionados por duas forças contraditórias e inconciliáveis: de um lado, os poderes extraterritoriais que estão fora do seu alcance e, do outro, as demandas dos seus próprios cidadãos e eleitores. Nessas circunstâncias, nenhum dos dois lados fica totalmente satisfeito com o desempenho do governo e considera suas ações adequadas. E por isso não me admira que a visão dos próprios membros da União Europeia varie entre uma armadura de proteção contra pressões hostis e um agente de tais pressões.
Nossas convicções:
O senhor aponta que vivemos um interregno, um tempo entre aquilo que não é mais e aquilo que não é ainda. Quais são as bases do futuro que devemos construir?
A “base para esse futuro que devemos construir” reside precisamente no espaço “entre o que não é mais e aquilo que não é ainda”. Não podemos continuar como antes, mas os novos caminhos ainda são, na melhor das hipóteses, rascunhos. Esse é o desafio do nosso tempo. Os tempos do interregno.
Trecho do livro “Babel”, de Zygmunt Bauman
‘Da ânsia por mais liberdade à angústia por mais segurança’
“De maneira pendular, nós vamos da ânsia por mais liberdade à angústia por mais segurança. Mas não podemos ter ambos em quantidade suficiente. (...) Conforme nos preveniu Paine, hoje nós estamos “expostos por um governo às mesmas misérias que esperaríamos de um país sem governo”. Essa miséria angustiante, que entregamos ao cuidado dos governos para nos aliviar, mas que hoje nos assombra pela iniciativa dos governos, com a assistência ativa ou a indiferença resignada dos mesmos, está na essência do sentido existencial da insegurança. Como você corretamente enfatiza, é pelo sistema democrático como tal, essa densa rede de instituições que nossos pais projetaram com engenho e teceram com lavor, que um grande número de seus sucessores e nossos contemporâneos se sentem traídos e desapontados.
A mais horrenda manifestação dessa frustração é a distância crescente entre os que votam e os que são postos no poder pelo seu voto. Cada vez menos os eleitores confiam nas promessas feitas pelas pessoas que elegem para governar; amargamente descrentes por causa das promessas não cumpridas do passado, os eleitores não chegam a esperar que desta vez as promessas sejam cumpridas. Com frequência cada vez maior, os eleitores apenas procedem mecanicamente - mais guiados por seus hábitos adquiridos que por alguma esperança de mudança para melhor ensejada pelo seu voto. (...) A ampla maioria dos cidadãos raramente acredita, se é que acredita, que a perspectiva de mudar o curso dos acontecimentos na direção certa (...) está hoje entre as cartas do baralho e ao alcance da mão.”