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Política

Revista da “direita woke” publica Karl Marx sem querer em pegadinha de crítico

James A. Lindsay reescreveu trechos do "Manifesto Comunista" de Karl Marx, pegando desprevenida revista da "direita woke".
James A. Lindsay reescreveu trechos do "Manifesto Comunista" de Karl Marx, pegando desprevenida revista da "direita woke". (Foto: Gage Skidmore/Flickr)

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O americano James A. Lindsay tem um doutorado em matemática pela Universidade do Tennessee, mas foi na crítica cultural que se fez um pensador amplamente conhecido. Autor de mais de dez livros, incluindo uma crítica ao pedagogo marxista brasileiro Paulo Freire (“A pedagogia do marxismo”, Avis Rara, 2024), uma das formas adotadas por Lindsay para mostrar falhas em ideologias são as "pegadinhas".

A primeira, em parceria com o filósofo americano Peter Boghossian em 2017, foi a publicação do artigo acadêmico “O pênis conceitual como construção social”. No ano seguinte, com inclusão da britânica Helen Pluckrose, o trio produziu uma série de artigos falsos — um deles reescreveu trechos de Adolf Hitler em retórica feminista e foi aceito para publicação na revista Affilia.

Agora, o alvo de uma pegadinha de Lindsay foi uma revista com ideologia que ele chama de “direita woke”. Confira a seguir essa história e a entrevista do intelectual para a Gazeta do Povo a respeito.

“Marcus Carlson” faz sua análise contra a “ordem liberal”

O alvo de Lindsay foi a revista online American Reformer. A publicação tem como missão “promover uma abordagem cristã vigorosa dos desafios culturais dos nossos tempos” e reformar instituições cristãs que supostamente “foram corrompidas por ideologias e práticas falsas”.

Josh Abbotoy, diretor executivo e cofundador da revista, escreveu um artigo em junho de 2023 em que afirmou que “os Estados Unidos vão precisar de um Franco protestante” para trazer ordem — uma referência ao ditador espanhol Francisco Franco (1892-1975).

Preocupado com o que chama de “direita woke” (em referência ao identitarismo na esquerda, conhecido popularmente como woke, palavra derivada da raiz do verbo “despertar” em inglês), James Lindsay submeteu à revista no mês passado um artigo que consiste em uma reescrita do “Manifesto Comunista” de Karl Marx e Friedrich Engels para soar como a retórica alarmista da revista a respeito do estado da cultura americana. Ele escolheu o pseudônimo “Marcus Carlson”, um trocadilho de Karl Marx.

“Peguei alguns milhares de palavras do manifesto e modifiquei levemente para ser uma crítica da ‘direita woke’ ao liberalismo, que eles odeiam”, disse Lindsay em nota sobre o episódio. “Eles publicaram: ‘O consenso liberal e a nova direita cristã’”, o título escolhido.

A referência ao “Manifesto Comunista” fica óbvia nas primeiras palavras do artigo: “Um espírito em ascensão assombra os Estados Unidos: o espírito de uma verdadeira Direita Cristã”. Compare com o início do primeiro capítulo do manifesto: “Anda um espectro pela Europa: o espectro do Comunismo”.

“Carlson” afirmou que uma “ordem liberal autoindulgente se forçou em um ‘consenso’ nacional e depois internacional, e enquanto o fez teve de por fim subjugar os costumes, a tradição a fé e a verdadeira Direita que os conservava”.

Lindsay anunciou a pegadinha no dia 3 de dezembro, no X, atraindo milhões de visualizações. A repercussão alcançou a imprensa: “A publicação do ensaio é prova de que a extrema direita é basicamente a mesma coisa que a extrema esquerda”, escreveu o correspondente sênior Zack Beauchamp na revista Vox.

Um apoiador das ações de Lindsay foi Neil Shenvi, doutor em química teórica que se dedica à apologética cristã. Ele tem sido um crítico da “direita woke” e ofereceu uma definição do que ela teria em comum com o identitarismo da esquerda: “a sociedade é dividida em grupos opressores e oprimidos de acordo com raça, classe, gênero, sexualidade etc., através do poder hegemônico; mas pessoas privilegiadas estão cegas para isso, então precisam ouvir a experiência de vida dos marginalizados para desmantelar sistemas injustos”.

A revista responde ao embuste

Em vez de remover o artigo, a American Reformer o manteve no ar, acrescentou o nome verdadeiro do autor e uma nota de cabeçalho. “Como ateu declarado, ele não se qualifica para publicar”, afirmou a revista, para a qual a “estrutura retórica” de Marx de fato é “poderosa”.

“Embora não soubéssemos da autoria e da motivação, ainda é uma agregação razoável de algumas das ideias da Nova Direita (reembaladas com a retórica eficaz de Marx)”, disse a nota. “O abuso que Lindsay fez da nossa confiança exige que adotemos um processo mais restritivo de triagem daqui para diante”.

Ben C. Dunson, cofundador da revista, respondeu com um artigo em que avaliou se “direita woke” é um termo justo. Ele apontou que Shenvi já havia proposto, nas páginas da própria revista, que elementos da “crítica antirracista” podem ser aproveitados pelos cristãos.

“Está claro para mim que Shenvi não adota toda a visão de mundo dos críticos antirracistas. Ele simplesmente argumenta que uma de suas ferramentas analíticas podem ser empregadas de forma frutífera a serviço da verdade cristã”, afirmou Dunson, para quem a pegadinha foi “muito boba” pois “todos nós odiamos o comunismo, também”.

James Lindsay explica a pegadinha

Em conversa com a Gazeta do Povo, Lindsay afirmou que o que ele chama de “direita woke” é “um movimento reacionário que decidiu que o único jeito de derrotar a esquerda marxista e woke é adotar suas táticas para avançar suas próprias convicções”.

Para o escritor, “é um movimento fascista sob nova roupagem, pode-se dizer que é um neofascismo feito em resposta ao neomarxismo”. Os defensores desse movimento seriam pessoas que acreditam que “despertaram para a crença de que o poder estrutural que divide a sociedade entre opressor e oprimido é a descrição correta da realidade e, portanto, o poder estrutural deve ser cobiçado e obtido por quaisquer meios necessários para ser usado contra seus inimigos percebidos”.

Enquanto a esquerda woke “geralmente se dirige para o caos”, continuou o autor, “a direita woke geralmente se dirige na direção de extremos de ordem que estejam sob o seu jugo autoritário”.

No livro “Teorias Cínicas” (Avis Rara, 2021), coescrito com Pluckrose, James Lindsay traçou o identitarismo progressista à paternidade intelectual do pós-modernismo e a chamada “teoria crítica”. A ancestralidade intelectual da “direita woke” está, segundo ele, em precursores como o jurista alemão Carl Schmitt (1888-1985), que foi membro do Partido Nazista, o filósofo político Leo Strauss “até certo ponto”, o filósofo italiano Julius Evola e outros.

Entre influências mais recentes estariam proponentes do “pós-liberalismo” como Adrian Vermeule e Patrick Deneen. O quadro completo do movimento “é complicado, pois há muitas facções da direita woke que ainda não estão em pleno acordo entre si e que não têm as mesmas fundações intelectuais”, disse Lindsay.

O próprio Lindsay confessa que não estava plenamente convencido de que o termo “direita woke” era útil como descrição, mas a aceitação das palavras reaproveitadas de Marx e Engels o fez pender na direção favorável ao uso.

“Muitas pessoas estão chocadas por descobrir a intensidade e tamanho do movimento da direita woke escondido dentro do que acreditavam que era seu próprio lar ideológico”, afirmou Lindsay. Com a pegadinha, “abriram os olhos”. Em sua percepção, outra reação às suas ações foi um silencioso distanciamento de alguns conservadores tanto do grupo criticado, como dele próprio.

Se há dois tipos de woke, e são movimentos políticos disparatados, qual é a saída para a pessoa que quer ter crenças políticas refletidas e razoáveis? “A liberdade individual e o realismo do senso comum ainda são as soluções, as únicas soluções”, afirmou Lindsay. “O woke é uma forma de coletivismo cult que só pode ser contido pela afirmação do direito de todo indivíduo de dizer aos wokes para irem ao inferno, e de criar estruturas políticas que defendem e asseguram esse direito e capacidade”.

“É essencial que nos aprofundemos nas fundações filosóficas da liberdade individual e do realismo do senso comum para parar o woke”, concluiu o pensador, “em especial porque a palavra ‘liberal’”, que nos Estados Unidos virou um sinônimo de progressista, “está agora tão envenenada por todos”.

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