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No dia 3 setembro, a revista médica The Lancet, a mais citada da área, publicou um editorial intitulado “Novos começos para a América Latina?”. No texto, a revista se diz preocupada com o estreitamento da disputa entre Lula e Bolsonaro nas pesquisas eleitorais. O favoritismo da revista para Lula é deixado claro: “O Brasil precisa de uma mudança urgente”, diz a publicação, que traz a foto do candidato. Bolsonaro é descrito como “conhecido por sua volatilidade e incitação indireta à violência” e pelo “manejo desastroso da pandemia de Covid-19 e seu desrespeito pelas mulheres, minorias étnicas, povos indígenas e o meio-ambiente”.
No editorial, a Lancet é também elogiosa a presidentes de esquerda recém-eleitos na América Latina: se as previsões de vitória de Lula acertarem, o Brasil “juntar-se-á a outros países latino-americanos onde há uma esperança renovada de mudança social progressista”, como na Colômbia de Gustavo Petro e Chile de Gabriel Boric, comenta a revista.
Não é a primeira vez que o periódico médico britânico usa as suas páginas para mensagens politicamente parciais. Na própria seção de correspondência da revista estão publicadas reclamações como a de Norbert Gleicher, profissional do Centro de Reprodução Humana em Nova York. Em uma carta de outubro de 2006, Gleicher diz que se decepcionou ao ler um editorial de agosto daquele ano sobre uma crise de saúde no Líbano. Em vez de encontrar uma exploração do assunto com propostas de solução, “encontrei-me exposto a polêmicas políticas opinativas do pior tipo, apropriadas para um tabloide de esquerda, não para uma revista médica com a reputação da Lancet”, reclamou Gleicher.
Os casos da BMJ e da NEJM
Outra revista médica britânica, a British Medical Journal (BMJ), chamou a atenção do jornal conservador britânico The Telegraph por sua atuação politicamente enviesada na pandemia. Nos últimos dois anos, os editores defenderam intervenções mais autoritárias do governo para conter o novo coronavírus, da chamada política de “Covid zero” ao retorno de máscaras obrigatórias e lockdowns.
Particularmente arriscada no viés político foi a decisão da revista de publicar uma série de artigos de um grupo autointitulado “SAGE paralelo” — SAGE é a sigla em inglês para Grupo de Aconselhamento Científico para Emergências, um órgão governamental que orientou as decisões do ex-primeiro-ministro Boris Johnson no período pandêmico. O SAGE original sofreu críticas por excessos, especialmente por conter um subgrupo que fez manipulação psicológica da população para causar medo e aderência ao lockdown. Mas o “SAGE paralelo” não se deu por satisfeito e queria mais controle do governo sobre a população. Como aponta o Telegraph, um dos sinais de viés político no grupo é a esmagadora presença de oponentes do Brexit, o referendo em que os britânicos escolheram sair da União Europeia em 2016.
Além disso, o editor-chefe da BMJ Kamran Abbasi mencionou em editorial de 31 de agosto as perdas educacionais das crianças britânicas durante a pandemia, mas não atribuiu essas perdas às medidas de fechamento. O artigo não diz que outra resposta o Reino Unido deveria ter dado à pandemia, mas dá a entender que a chave estava nas mãos do governo, cuja resposta “ficou bem aquém de seu potencial”.
A BMJ também publicou uma bronca contra si mesma em suas páginas. David E. B. Powell, um médico patologista aposentado que diz que lê a publicação há 70 anos, mandou para ela uma carta em novembro de 2020 em que reclama que “nunca vi a revista tomar uma posição política tão consistentemente enviesada como nos últimos anos”. Ele menciona a campanha de alarmismo da revista contra o Brexit e a menção da posição cristã conservadora da agora juíza da Suprema Corte Amy Coney Barrett nas páginas da revista como se fosse algo que a desqualificasse. Os editores “não têm ideia da frustração dos leitores que buscam a revista como fonte de reportagens médicas atualizadas”, conclui Powell com pesar, “só para encontrá-la tomada por uma agenda política partidária sem descanso. Não há vestígio de equilíbrio”.
Outra revista médica sem medo de transparecer viés político é a New England Journal of Medicine (NEJM), especialmente na seleção de artigos publicados em sua seção “Perspectiva”. Em janeiro de 2021, a seção publicou um artigo que utilizava a “linguagem neutra” com o termo “latinx” (em vez de latino ou latina), que ocorre 15 vezes. O foco do artigo era Covid-19 entre imigrantes ilegais dos Estados Unidos. Uma pesquisa do site Politico no mesmo ano mostrou que somente 2% dos latinos aprovam o termo “latinx”, 21% preferem a linguagem que respeita o gênero gramatical (latino ou latina) e uma maioria expressiva de 68% diz que prefere “hispânico”. Apesar disso, a revista estaria exigindo a adoção dessa linguagem como pré-requisito para publicação de artigos.
Um mês antes, a NEJM publicou outro artigo contencioso que propunha abandonar a “atribuição” do sexo a bebês em certidões de nascimento em nome do respeito a transexuais e intersexuais, uma minúscula minoria da população para a qual o registro do sexo natal e genital ainda é medicamente importante. A revista deu destaque ao artigo no Twitter, alegando que registrar o sexo na certidão de nascimento “não oferece nenhuma utilidade clínica”.
Resistência de médicos
Para Francisco Cardoso, médico infectologista e perito médico federal, “as grandes revistas médicas da atualidade estão todas enviesadas e dominadas com a narrativa progressista”. Ele pensa que isso é mais escancarado na Lancet que nas outras e sempre foi um problema da BMJ, apesar de a última ter sido alvo de banimento silencioso de uma publicação pela moderação de redes sociais por desafiar a perspectiva progressista a respeito das vacinas contra Covid-19.
O impacto do viés político nas revistas é “devastador”, na opinião do médico, e muito tempo será necessário para que elas restaurem a confiança de seu leitorado que tem outras visões políticas. Ele pensa que o viés foi uma das principais razões para uma rejeição apressada do reposicionamento de medicamentos para tratar Covid-19 no começo da pandemia, mencionando um artigo da NEJM contra o tratamento precoce que depois foi alvo de 17 correções publicadas. “Viraram meio de propaganda da indústria que trabalhou contra o reposicionamento”, conclui.
Embora quase toda medida de controle na pandemia tenha um cenário complexo de fatores causais e efeitos, e seja improvável que qualquer grupo político tenha todas as respostas corretas, medidas autoritárias amplamente defendidas por progressistas como o “passaporte” vacinal, as máscaras obrigatórias e os lockdowns, especialmente envolvendo o fechamento de escolas, tiveram em conjunto efeitos nefastos que dificilmente sobrevivem ao escrutínio nas melhores análises custo-benefício, como mostrou a cobertura da Gazeta do Povo. Os “passaportes” como tentativa de implantar vacinação obrigatória foram uma falsa panaceia que ignorou efeitos colaterais como a miocardite em adolescentes do sexo masculino, as máscaras obrigatórias foram ineficazes e causaram desconforto e prejuízo especialmente a crianças, e os lockdowns causaram danos econômicos enormes, incluindo perda de vidas. O viés político presente nas revistas médicas de prestígio contribui para o atraso ou bloqueio dessas conclusões.