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“Revolta dos Búzios”: Racialistas chancelam a versão oficial do Estado escravocrata

Revolta dos Alfaiates ou Revolta dos Búzios? (Foto: Reprodução)

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A história da relação da Bahia com o Brasil é conturbada. Ela pegou em armas para ser Brasil. Em 2 de julho de 1823, data conhecida como Independência da Bahia, os baianos expulsaram as tropas portuguesas, após mais de um ano de guerra, e enfim as câmaras municipais puderam votar o reconhecimento de D. Pedro como soberano da Bahia, tornando-a assim parte do Brasil e não de Portugal.

O conflito se militarizara em 12 de junho de 1822, quando as tropas da coroa lusitana ocuparam a antiga Rua Direita do Palácio, hoje Rua Chile, para impedir os vereadores de Salvador de se reunirem na Câmara (o prédio defronte do Elevador Lacerda) e reconhecer D. Pedro I como seu soberano. A partir daí pipocaram pelo estado guerras de vilas e cidades se declarando independentes de Portugal. A primeira a lograr êxito fora Cachoeira, em 25 de junho de 1822, antes mesmo do brado do Ipiranga. Hoje, logradouros de Ipanema, tais como Maria Quitéria e Joana Angélica, trazem nomes de guerreiros e mártires da Independência da Bahia.

Mas a relação da Bahia com o Brasil não foi só flores. Houve até uma revolta feita com a finalidade não de se separar do Brasil, mas sim de dar um tempo. A Sabinada aconteceu em 1837, quando o político liberal Sabino Vieira angariara apoio militar para que a Bahia fosse um Estado livre e independente até a maioridade de 18 anos do Imperador Pedro II. Entre os ideais mutantes da Sabinada, chegou a aparecer o da Abolição. Foi derrotada em março de 1838, mas Salvador ficou ocupada até 1840.

Infelizmente, a Sabinada anda fora de moda. A burocracia das letras prefere exaltar o Levante dos Malês, dos islâmicos que pretendiam transformar a Bahia num Califado escravocrata, e a dita “Revolta dos Búzios”.

A misteriosa francezia

Isso que os historiadores oficiais de hoje chamam de Revolta dos Búzios era antes dado nas escolas com o nome de Revolta dos Alfaiates. Ambos os nomes são imprecisos, e o renomado historiador Luís Henrique Dias Tavares, recém falecido, chama-a de Sedição intentada na Bahia em 1798, que aliás é o título do seu livro sobre o assunto.

Nesse livro, o historiador lê com ares de detetive os processos que culminaram na morte de quatro mulatos baianos acusados de serem os conspiradores da Revolução que instauraria a República Democrática da Bahia. A Revolução Francesa iniciara havia poucos anos, e esses mulatos, alfaiates e soldados, eram acusados de francezia, ou seja, adesão às ideias francesas revolucionárias.

Como se soubera da sedição intentada e do seu teor filosófico? Os próprios sediciosos a divulgaram. No dia 12 de agosto de 1798, há exatos 222 anos, a Cidade da Bahia amanheceu com 11 papéis manuscritos colados em portas e paredes. Alguns poucos letrados os leram para os curiosos. Falavam em nome do Povo Bahinense (sic) Republicano, e anunciavam que estava em andamento uma conspiração que totalizava 676 pessoas, dos quais mais da metade eram militares. Mas contaria também com 13 graduados em letras, 14 franciscanos e 8 comerciantes.

Entre os comunicados ao Povo Bahinense estava que “aqui virão todos os estrangeiros tendo porto aberto, mormente a nação francesa”, isso em prol do “progresso do comércio de açúcar, tabaco, e pau brasil, e todos os mais gêneros do negócio”. Conclamavam em particular os soldados pretos e pardos para lutar em nome da igualdade e da liberdade. Isso era especialmente importante porque o Exército discriminava os pretos e pardos, vetando-lhes promoções.

A essa altura, a Bahia tinha dois terços da população de negros e mulatos, sendo o outro terço integrado pelos “brancos da terra”, que era como os baianos chamavam os mestiços de índio e branco. Assim, não é nada de extravagante supor que a soldadesca baiana fosse majoritariamente mulata. Ao cabo, portanto, os papéis mostravam uma associação de comerciantes e militares: os primeiros querendo a liberdade comercial com a abertura dos portos, e os últimos a igualdade de oportunidades. Um dos papéis trazia um poema que começava enunciando “Igualdade e liberdade/ No sacrário da razão/ Ao lado da sã Justiça/ Preenchem o meu coração”.

Mas havia ainda, claro, os homens de letras elaborando essas ideias. Podemos nomear dois: Cipriano Barata, um “branco da terra” de família comerciante, licenciado em filosofia, fundador do jornal Sentinela da Liberdade, e um certo Domingos da Silva Lisboa, mulato português, advogado de uma influente família baiana. De resto, havia um tal Tenente Hermógenes que traduzia escritos franceses (eles gostavam muito de As paredes, de Volney) e repassava para outros letrados. Cipriano e Domingos tinham bibliotecas, e talvez fizessem circular os seus livros.

Foi ao português que a investigação da época chegou. Comparações da caligrafia e da qualidade do papel apontaram que ele redigira os papéis sediciosos. Para piorar, ele ainda tinha uma cópia do poema. Foi preso no dia 16.

Mas ele se safou, e logo a polícia achou um bode expiatório: o místico esquisitão Luís Gonzaga das Virgens, um soldado mulato insubordinado, preso no dia 23.

A versão das autoridades

No dia 23, após a prisão, alguns conspiradores se reuniram na casa de um particular para combinar o que fazer, e decidiram marcar uma outra reunião, mais ampla, no dia 25, no Dique. Dois informantes deduraram às autoridades… Que só apareceram no dia 26, para prender “pessoas insignificantes”. Aqui, o historiador supracitado especula: elas “começaram a ser presas no dia 26. Por que não na noite do próprio 25 de agosto? Não quis o tenente-coronel Alexandre Theotônio efetuar prisões no próprio campo do Dique do Desterro? Esperava maiores indícios? Esperava a revelação de outros partidários? Ou queria dar tempo para que escapassem os que não eram ‘insignificantes’?”

Muitos mistérios sobram: ao que parece, havia um navio francês descarregando livros clandestinamente na Bahia (lembremos que a imprensa só foi permitida no Brasil em 1808!); é possível que uma conspiração maçônica chamada Cavalheiros da Luz tivesse um dedo nisso. Mas fato é que as autoridades só pegaram peixe pequeno. Havia pretos analfabetos acusados de francezia e de seguir as ideias de Voltaire. É verdade que Cipriano Barata passou perrengue na cadeia, mas se safou. No fim, safaram-se todos os comerciantes e letrados, inclusive o português que, ao que tudo indica, colou os papéis.

Um manuscrito anônimo que relata os fatos e deplora as francezias explica que é tudo obra de uns “pardinhos” e “também branquinhos da plebe”, que queriam fazer um levante depois de lerem uns “livrinhos”. Gente de extrato mais elevado? Nem pensar! Embora admita a colaboração de plebeus branquinhos, o manuscrito racializa e torna não-branca a sedição já no título: “Relação da Francezia Formada pelos Omens Pardos da Cidade da Bahia no ano de 1798”.

Luís Henrique Dias Tavares explica o expediente. Era importante para as autoridades negar que gente importante se misturasse com mulatos numa sedição contra o governo central: “Há um ofício de D. Fernando dirigido a D. Rodrigo de Souza Coutinho, datado de Salvador em 12 de fevereiro de 1799, em que insiste em afastar daquele ministro qualquer suspeita de ‘pessoas de consideração’ no movimento baiano. Nesse documento, diz o governador que ‘sempre se receou nas colônias’ a rebelião de escravos, daí porque ele acentuava que nenhum dos proprietários [de escravos] haveria de participar de uma conspiração de homens ligados à escravatura, como aqueles que saíam os únicos culpados de uma triagem que afastara as ‘pessoas de consideração’. É mais ou menos esse o sentido da carta de José Venâncio Seixas ao mesmo D. Rodrigo: ‘Uma das novidades inesperadas que aqui achei foi a do perigo em que estiveram os habitantes desta cidade com uma associação de mulatos, que não podia deixar de ter perniciosas consequências sem embargo de ser projetado por pessoas insignificantes.’ Os que iam morrer seriam para dar o exemplo.”

Em 8 de dezembro de 1799, após muitas apelações de advogados, foram executados como conspiradores quatro mulatos pobres na Praça da Piedade. Hoje seus nomes podem ser lidos no chão, nos quatro cantos da praça. São Luiz Gonzaga, Manuel Faustino, João de Deus e Lucas Dantas. Este sabia de cor o poema sobre igualdade e liberdade.

A burocracia racialista revive a versão das autoridades

O site da Fundação Pedro Calmon, do Estado da Bahia, batiza a sedição com o nome de Revolta dos Búzios. Os racialistas devem tê-lo escolhido por causa da associação do objeto com o candomblé, mas o pretexto – que o site da fundação deixa misterioso – é haver uma barba, um brinco e um búzio na corrente do relógio para identificar os conspiradores.

Segundo a nova versão oficial, a Revolta dos Búzios é vinculada à Independência do Haiti por causa da raça. Ao menos não tentaram apagar o vínculo com a França. Luís Henrique Dias Tavares escreveu dois livros sobre o assunto: um infantojuvenil e um acadêmico. O site cita como referência o infantojuvenil.

E, numa grande ironia histórica, as caras inventadas para os quatro executados aparecem sob o título “Os conspiradores”. Os quatro mulatos teriam inventado tudo, tal como rezaram os seus acusadores escravocratas.

Sai a elite escravocrata, entra a burocracia racialista. A visão do mundo, porém, é a mesma.

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