Houve um momento na história em que a piada infame “o Acre não existe” era verdadeira. Mais precisamente até 1903, quando o Tratado de Petrópolis foi assinado com a Bolívia, e o território anexado após uma das Guerras Esquecidas do Brasil: a Revolução Acreana ou Guerra do Acre, como é conhecida lá fora.
Até 1889 o Brasil meio que desdenhou daquelas terras, e não faltam tratados e documentos que comprovem isso.
Enquanto acontecia a Guerra do Paraguai, por exemplo, bolivianos e brasileiros assinaram o Tratado de Ayacucho, em 1867, que reconhecia o território do Acre como boliviano. Isso garantiria a neutralidade da Bolívia no momento do confronto. Inclusive, em 1898, o Ministro das Relações Exteriores, Dionísio Cerqueira, ordenou ratificar o acordo de 1867, ficando os limites conhecidos como Linha Cunha-Gomes, que hoje divide o Amazonas do Acre.
Só que as coisas vinham mudando entre as décadas de 1860 e o fim do século 19, por conta de uma matéria-prima essencial para as revoluções industriais (isso mesmo, no plural) que aconteciam países na Europa, nos Estados Unidos e no Japão: a borracha, usada para envolver cabos de eletricidade e fabricação de pneus, por exemplo.
Por causa dela, nordestinos (grande parte do Ceará) foram migrando para aqueles lados e, ainda que o Amazonas tivesse grande produção, o Acre combinava alta oferta de seringueiras para extração do látex (para borracha) e quase nenhuma autoridade para “torrar a paciência”.
Alguns locais chegaram a ter perto de 60 mil seringueiros, segundo estimativas, contou à Gazeta do Povo a geógrafa historiadora Maria de Jesus Morais, professora da Universidade Federal do Acre (UFAC). Ela revela que, antes, “essas terras apareciam tanto em mapas bolivianos, como peruanos e brasileiros como terras não descobertas ou inexploradas”.
“No início do século tinham muitos brasileiros cortando borracha do lado onde é a Bolívia. Até hoje tem uma presença muito forte de brasileiros do lado de lá”, afirma a doutora, que é autora da tese Acreanidade: Invenção e Reinvenção da Identidade Acreana, também publicada como livro pela editora Edufac. “E quando a borracha desponta, o interesse para conhecer nessa área avança muito mais”, destaca.
Esse pessoal não gostou quando o ministro boliviano José Paravicini tomou posse do território, em 3 de janeiro de 1899, e fundou Puerto Alonso (hoje Porto Acre), montou uma aduana e passou a cobrar impostos com soldados bolivianos para garantir os pagamentos e a posse.
“Respondendo à pressão de grupos empresariais vinculados a um projeto de extração para a exportação, o estado [boliviano] se encontrou frente ao desafio de melhorar e controlar progressivamente as rotas de saídas fluviais e terrestres até o circuito atlântico pelo rio Amazonas e afluentes; ademais de institucionalizar a soberania de tais espaços e para garantir a propriedade da terra a seus cidadãos”, explicou a historiadora boliviana Clara López Beltrán no artigo La exploración y ocupación del Acre.
Mas não foram apenas os seringueiros que ficaram ressabiados com essa situação. “O governo Federal e do Amazonas sentiram-se ameaçados politicamente e economicamente com a política de Paravicini, uma vez que os impostos cobrados pelo transporte dos produtos que entravam no Acre e da borracha que deixava o Acre enriquecia a Aduana boliviana, sendo que outrora, todo o comércio e cobrança de impostos eram realizados pelo governo do Amazonas”, escreveu o historiador e mestre em Educação Carlos Farias Pontes, professor do Colégio de Aplicação da Universidade Federal do Acre (UFAC), no artigo El-dourado Verde: A Guerra do Acre.
“O governo Federal também se sentia insatisfeito, pois a permissão de transporte de navios em rios acreanos para nações amigas da Bolívia ameaçava a soberania brasileira na região, principalmente os Estados Unidos que agora poderiam penetrar na região amazônica”, completa o historiador.
Foi então que os comerciantes, apoiados pelo Amazonas, resolveram expulsar os bolivianos, afirma a geógrafa e historiadora Maria de Jesus.
O “acordão” da Bolívia com os EUA e o imperador do Acre
Com a insatisfação, o governador do Amazonas à época, Ramalho Júnior, apoiou a Primeira Insurreição Acreana ainda em 1899. Liderados pelo cearense José de Carvalho, homens armados obrigaram o delegado boliviano Moisés Santivanez a deixar o território, sem precisarem dar um tiro. Mas é claro que a Bolívia não aceitaria isso de forma tão simples.
Os bolivianos preparam um plano para arrendar as terras aos Estados Unidos. O “acordão” foi descoberto pelo espanhol Luís Gálvez Rodrigues de Árias, ex-embaixador da Espanha na Argentina e jornalista, que publicou o caso no jornal “A Província do Pará”. A denúncia fez, momentaneamente, os EUA pularem fora das negociações.
O gringo foi praticamente premiado pela descoberta, ganhando o financiamento de sua própria expedição para o Acre. Chegando lá, proclamou o Acre independente, sendo chamado por alguns até hoje de “Imperador do Acre”, com o lema Pátria e Liberdade e uma bandeira.
“No centenário do Acre (2003), esse personagem foi muito comemorado por ser o primeiro a fundar o estado independente. Seria uma nação. Daí a ideia de imperador, no sentido da simbologia”, afirma a doutora Maria de Jesus. “O discurso dele de fundação do Acre é muito patriótico, que diz que se ‘a pátria não nos quer, criamos outra’”, completa a geógrafa e historiadora.
Mas seu reinado, ou melhor, presidência, não durou muito tempo: os seringalistas e acreanos não estavam gostando muito do governo, e o espanhol se desentendeu com Manaus e Belém, que não aceitavam a taxação da borracha.
“Gálvez, num ato impensado, proíbe a entrada de navios brasileiros nos rios acreanos e a exportação da borracha para Belém e Manaus. Essas medidas levaram os seringalistas, liderados pelo Coronel Antônio de Souza Braga, a substituir e expulsar Gálvez do Acre, em 28 de dezembro de 1899”, destaca Faria Pontes em seu artigo.
O espanhol acabou, no fim das contas, sofrendo um golpe pouco após aplicar um (ou mais golpes), e foi deportado pelo Brasil para a Europa em 1900.
Mas, além de Gálvez, ainda tinha empresários e soldados bolivianos na região, que os brasileiros – claro – não queriam. Isso fez com que Manaus patrocinasse expedições, incluindo uma chamada “Expedição dos Poetas”, que tinham intelectuais e médicos na linha de batalha. Obviamente, ao entrarem em confronto com “soldados de verdade” a luta não deu muito certo, ainda que os “poetas” tenham se juntado a uma junta revolucionária local.
Mesmo assim, houve uma segunda declaração de independência do Acre, apoiada pelo Amazonas, em novembro de 1900, com Rodrigo de Carvalho na presidência. Não durou nem um mês: tropas bolivianas derrubaram o governo entre 24 e 25 de dezembro de 1900.
Os gringos do Bolivian Syndicate e a Revolução Acreana
Essa desorganização brasileira era um brilho nos olhos de bolivianos e norte-americanos que viram a chance de, com o apoio de empresários de outros países (como ingleses e alemães), promoverem a criação do Bolivian Syndicate.
“Seria a organização de um sindicato de investidores de diferentes nacionalidades, com sede em Nova Iorque, a quem se alugaria o território boliviano no Acre, ainda que esse estivesse tomado por brasileiros”, destacou a autora Nedy Bianca Albuquerque, em sua tese de doutorado.
O novo “acordão” dava à organização estrangeira até mesmo o direito de criar suas próprias forças armadas para defender o território, além de bancar infraestrutura (serviços como rodovias e portos), sendo que 60% do faturamento ficaria para o governo boliviano e 40% para o Syndicate.
A notícia caiu como uma bomba entre seringueiros, brasileiros e até mesmo no Peru, país vizinho que também disputaria uma pequena parte da região acreana. A presença era considerada uma ameaça à soberania da própria região. Mesmo com os protestos, o presidente boliviano José Manuel Pando seguiu adiante, enviando tropas à região. E há um bom motivo para isso, como explicou a historiadora da Bolívia, Clara Lopez Beltrán:
“Na Bolívia a questão se viu por uma perspectiva diferente. Acontece que seus territórios estavam invadidos por brasileiros, mas não consideraram isso um problema; o que queriam era recuperar os impostos sobre a exportação da borracha.”
Os ministérios das Relações Exteriores do Brasil (especialmente na figura de Barão do Rio Branco) e do Peru pressionaram os Estados Unidos, que negaram ter parte no projeto do Syndicate, mas conseguiram desfazer o acordo. “O Brasil pagou a multa indenizatória que a Bolívia deveria pagar por rescindir o contrato, sendo um montante de 110 mil libras esterlinas”, destaca o historiador Faria Pontes em seu artigo.
A chegada de Plácido de Castro à Revolução Acreana
Só que a história estava longe de acabar. Em paralelo à negociação diplomática, brasileiros se rebelavam apoiados pelo Amazonas, até que foi escolhido um experiente gaúcho militar para comandar a Revolução Acreana: José Plácido de Castro. Em Manaus, o ex-combatente da Revolução Federalista recebeu a patente de coronel e toda a logística necessária para levar tropas e treinar rebeldes em solo acreano.
“Discursivamente falando, ele é o grande herói da Revolução Acreana. É aquele que organizou um exército de seringueiros e venceu batalhas contra a Bolívia”, revela a professora Maria de Jesus. “Era uma figura com experiência militar, letrado de certa forma e que conseguiu tomar as dores daquela insatisfação, e organizou um exército com seringueiros. E uma vez que o patrão seringalista apoiava, os seringueiros não tinham opção de não ir”, completa.
Logo em suas primeiras missões, Plácido de Castro passaria a ser temido pelos bolivianos. Isto porque, no dia 6 de agosto de 1902, quando é celebrada a Independência da Bolívia, o militar com um pequeno grupo de homens tomou Xapuri, chamada pelos bolivianos de Mariscal Sucre.
Sobre o episódio, o próprio Plácido de Castro escreveu em suas notas, expostas na obra “O Estado Independente do Acre e J. Plácido de Castro”, de Genesco de Castro, irmão de Plácido:
“Sem que soubessemos, era 6 de agosto, dia de festa nacional na Bolivia; era o dia da sua Independencia, pelo que estava preparada uma grande festa. Na vespera haviam as autoridades dormido muito tarde, depois de abundantes libações e dos canticos patrioticos do costume, pelo que áquella hora da manhã dormiam ainda a somno solto. (...) Penetrando na Intendencia, de lá retiramos umas carabinas e dous cunhetes de balas; em seguida chamei-os em voz alta. O intendente, mal acordado ainda, respondeu: ‘Es temprano para la fiesta’, ao que lhe retorqui: ‘Não é festa, Sr. Intendente, é revolução’. Levantaram-se então o intendente e os demais, sobresaltados.”
As autoridades bolivianas foram presas ali mesmo, e a data de 6 de agosto também é hoje celebrada como o dia oficial da Revolução Acreana, feriado estadual.
O presidente boliviano José Manuel Pando continuou tentando manter a ordem, enviando contingentes de La Paz, o que dificultou a vida do gaúcho. Mesmo com derrotas, Plácido conseguiu tomar a Volta do Seringal Empresa (atual Rio Branco) e, já em 1903, Puerto Alonso (Porto Acre).
“A grande parte das batalhas históricas ocorreram em Rio Branco e na fronteira com Bolívia, em Brasiléia. Inclusive, em Cobija, que é cidade fronteiriça com Brasiléia, tem uma imagem muito simbólica de um índio que atirou fogo no seringal Carmen, que é um dos conflitos que a Bolívia ganhou com Plácido de Castro”, conta Maria de Jesus.
“A última batalha vencida pelo comando brasileiro foi a de Porto Alonso (atual Porto Acre) foi algo muito simbólico. Os bolivianos colocaram corrente de uma margem à outra do Rio. E Plácido de Castro estava descendo com borracha e não poderia atravessar. Contam que os seringueiros pularam no rio e limaram a corrente. É uma batalha contada com fervor patriótico. Os restos dessa corrente, ou que se diz ser os restos dela, ornamentam o obelisco da cidade de Rio Branco”, explica a professor.
A partir daquele momento não havia muito mais o que as tropas da Bolívia fazerem a não ser se renderem.
“Quando a notícia da expulsão dos bolivianos chegou em La Paz, o presidente Pando, montou forte exército para reaver seu território. O exército do general já marchava rumo ao Acre quando entra na guerra a diplomacia brasileira. José Maria da Silva Paranhos Júnior, o Barão do Rio Branco, Ministro das Relações Exteriores do Brasil, buscou meios pacíficos de resolver a querela, buscando evitar mais derramamento de sangue”, escreveu Faria Pontes.
A negociação “pacífica” incluiu o deslocamento de tropas brasileiras do Mato Grosso e Amazonas para o Acre, claramente intimidando Pando.
Tratado de Petrópolis e tensões atuais
Com a Guerra do Acre, ou Revolução Acreana, tendo a vitória brasileira, restava aos presidentes Rodrigues Alves (Brasil) e José Manuel Pando (Bolívia) fazerem seu próprio “acordão”:
Em troca da maior perda territorial da história da Bolívia (cerca de 190 mil km²), o Brasil pagaria 2 milhões de libras indenizatórias pelo território antes boliviano, entregaria um pequeno pedaço da fronteira no Mato Grosso e Rondônia e construiria a estrada de ferro Madeira-Mamoré, para facilitar o escoamento de produtos bolivianos, já que o país não tinha mais saída para o mar depois de perder para o Chile a Guerra do Pacífico (1879-1883).
O acordo foi assinado dia 17 de novembro de 1903, ficando conhecido como o Tratado de Petrópolis.
“Até hoje os bolivianos têm uma tensão histórica com o Acre. Em Rondônia (também fronteira) eu já não vejo isso. Aqui tem uma tensão subjetiva, que de uma certa forma o Brasil roubou a Bolívia. Tem essa perspectiva. Até porque na negociação o Brasil se deu muito bem”, afirma a professora Maria de Jesus.
Parecia o fim da história. Parecia. Só que alguns novos capítulos ainda aconteceram no Alto Juruá, quando soldados peruanos invadiram a região em 1904. Acabaram sempre derrotados pelos acreanos, agora oficialmente brasileiros. Mas com os novos conflitos, o Brasil ainda firmaria um novo tratado, em 8 de setembro de 1909, para a retirada dos peruanos da região do Juruá em troca de 40 mil km².
Com esse sangue e luta, o Acre finalmente se consolidou como Território Federal do Brasil em 1904, passando a ter medidas praticamente definitivas em 1909. Anos após, foi elevado à “categoria de Estado”, em 15 de junho de 1962. Mas essa é outra história.
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