Poucos cientistas conseguiram unir inteligência e irreverência como Richard Feynman (1918-1988). Vencedor do Nobel de Física em 1965, ele ficou tão conhecido por suas contribuições teóricas quanto por sua personalidade brincalhona e espírito incansável de descoberta.
No livro “Você Está Brincando, Sr. Feynman?” (editora Intrínseca), o físico narra episódios marcantes de sua vida — da infância às conversas com Einstein, passando por desafios no programa nuclear americano e até suas aventuras no Brasil.
O recorte abaixo ilustra bem sua combinação de brilhantismo, informalidade e bom humor, mostrando Feynman na juventude, época em que ainda era incompreendido em sua genialidade.
Eu devia ter 17 ou 18 anos quando passei as férias de verão trabalhando num hotel administrado por minha tia.
Não sei quanto ganhava (acho que eram 22 dólares por mês), mas lembro que alternava dias de 11 e 13 horas de trabalho, como recepcionista ou cumim [assistente dos garçons] no restaurante. E, durante a tarde, quem estivesse trabalhando como recepcionista tinha de levar o leite da sra. D., uma senhora inválida que nunca nos dava gorjeta
O mundo era assim: você trabalhava muitas horas e não ganhava nada com isso, dia após dia.
Era um resort de frente para o mar, nos arredores de Nova York. Os maridos iam trabalhar na cidade e deixavam as mulheres no hotel, onde elas passavam o tempo jogando cartas, por isso tínhamos de estar sempre arrumando as mesas de bridge. De noite, os homens jogavam pôquer, e tínhamos de preparar as mesas para eles — limpar os cinzeiros, etc.
A jogatina durava até tarde, mais ou menos até as duas, por isso a jornada de trabalho era de 11 a 13 horas. Havia coisas de que eu não gostava, como essa história de gorjetas. Eu achava que devíamos ganhar mais em vez de contar com uma gratificação extra.
Mas, quando falei sobre isso com a chefe, só escutei risadas. Ela disse a todos: “Richard não quer ganhar gorjetas, hahaha. Ele não quer as gorjetas, hahaha”. O mundo está cheio dessa gente metida a engraçadinha, que não sabe de nada.
Bem, a certa altura hospedamos um grupo de homens que, quando chegavam da cidade, iam logo pedindo gelo para as bebidas. Eu tinha um colega de trabalho que era recepcionista há mais tempo. Era mais velho do que eu e muito mais profissional.
Um dia, ele me disse: “Escute aqui, estamos a toda hora levando gelo para esse tal de Ungar, e ele nunca nos dá gorjeta, nem mesmo dez centavos. Da próxima vez que ele lhe pedir gelo, nem saia do lugar. Aí eles vão chamar você de novo, e, quando isso acontecer, você diz: ‘Ah, desculpe, esqueci. Todos nós ficamos esquecidos às vezes.’”
Foi o que fiz, e Ungar me deu quinze centavos. Mas hoje, quando me lembro disso, percebo que o outro recepcionista, o profissional, sabia mesmo como proceder. Fazia com que o outro corresse o risco de arrumar encrenca.
Ele me encarregou de treinar aquele sujeito a dar gorjetas. Não disse uma só palavra, mas deu um jeito de que eu fizesse isso!
Como cumim, uma de minhas tarefas consistia em arrumar as mesas no salão de refeições. A gente juntava numa bandeja tudo o que estava nas mesas e, quando a pilha atingia uma boa altura, levava a bandeja para a cozinha. Aí pegávamos outra bandeja, certo?
Isso deveria ser feito em duas etapas: carregar a bandeja cheia para a cozinha e depois pegar uma bandeja nova. Mas eu pensei: “Vou simplificar o trabalho e reduzi-lo a uma só etapa.
Assim, tentei meter a bandeja nova debaixo da pilha e puxar a bandeja cheia ao mesmo tempo, mas ela virou: BUM! Tudo foi ao chão. E a seguir, naturalmente, a pergunta foi: “O que você estava fazendo? Como foi que isso caiu?”. Bem, como eu podia explicar que estava tentando inventar uma nova forma de trabalhar com bandejas?
Entre as sobremesas, havia uma espécie de bolo de café que era servido em um pequeno guardanapo sobre um pratinho. Mas quem fosse aos fundos da cozinha veria um homem denominado copeiro, o encarregado das sobremesas.
Ele tinha trabalhado antes como minerador ou alguma coisa do gênero. Era um sujeito corpulento, com dedos curtos e muito grossos. Pegava uma pilha de guardanapinhos, que eram fabricados mediante algum tipo de processo de prensagem, bem comprimidos, e com os dedos grossos tentava separá-los para pô-los nos pratinhos.
Eu sempre o ouvia reclamar enquanto fazia isso — “Essas porcarias de papeletas!” —, e me lembro de pensar: “Que contraste… A pessoa na mesa recebe esse bolinho tão bonito num pratinho com guardanapo, enquanto o copeiro, nos fundos da cozinha, brigando com seus dedões, reclama: ‘Essas porcarias de papeletas!’”.
Portanto, aquela era a diferença entre o mundo real e o mundo aparente.
Geringonça inspirada em Da Vinci
Em meu primeiro dia de trabalho, a senhora que cuidava da despensa me disse que quase sempre preparava um sanduíche de presunto, ou algo do tipo, para o sujeito do turno da noite. Eu disse a ela que gostava de doces e que, se tivesse sobrado alguma sobremesa do jantar, gostaria que ela a deixasse para mim.
Na noite seguinte eu estava de serviço até as duas da manhã, com aqueles caras que jogavam pôquer. Fiquei ali andando de um lado para outro, sem nada para fazer, entediado, quando de repente me lembrei da sobremesa à minha espera.
Fui até a geladeira e vi que ela havia deixado seis sobremesas! Havia um pudim de chocolate, algumas fatias de pêssego, um pouco de arroz-doce, gelatina — havia de tudo Sentei ali e comi as seis sobremesas. Foi sensacional!
No dia seguinte, ela me disse:
— Deixei uma sobremesa para você…
— Foi maravilhoso — respondi. — Simplesmente maravilhoso!
— Mas eu deixei seis sobremesas porque não sabia de qual você gostava mais.
Por isso, a partir daquele dia ela passou a deixar seis sobremesas. Toda noite eu tinha seis sobremesas. Nem sempre eram diferentes, mas eram sempre seis sobremesas.
Certa vez, quando eu estava na recepção, uma moça deixou um livro junto do telefone ao sair para jantar. Era “A Vida de Leonardo” [biografia de Da Vinci], e não pude resistir: a moça me emprestou o livro, que eu li inteiro.
Eu dormia num quartinho nos fundos do hotel, e havia uma regra rigorosa sobre apagar as luzes do quarto ao sair, coisa que eu nunca me lembrava de fazer. Inspirado pelo livro sobre Leonardo, inventei uma geringonça que consistia num sistema de cordões e pesos — garrafas de Coca-Cola cheias de água — e era acionada quando eu abria a porta, puxando uma correntinha e acendendo a luz interna.
Abria-se a porta, a coisa funcionava e acendia a luz; fechava-se a porta, e a luz se apagava. Mas minha verdadeira façanha veio depois.
Uma de minhas tarefas era cortar verduras na cozinha. As vagens tinham de ser cortadas em pedaços de mais ou menos dois dedos de comprimento. A maneira tradicional de fazer isso era a seguinte: com uma das mãos, você segurava duas vagens; com a outra, a faca; então comprimia a faca contra as vagens e seu polegar, quase se cortando. Era um processo demorado. Por isso, comecei a pensar no assunto e tive uma ótima ideia.
Sentei-me à mesa de madeira na copa, pus uma tigela no colo e espetei na mesa, à minha frente, uma faca bem afiada, inclinada para trás num ângulo de 45 graus. Depois de ter posto um montinho de vagens de cada lado da faca, eu pegava uma vagem com cada uma das mãos e as puxava em minha direção, com força suficiente para que fossem cortadas em pedaços, que caíam na tigela em meu colo
Lá ia eu cortando muito bem as vagens, uma depois da outra — tic, tic, tic, tic, tic —, bem depressa e com todo mundo me animando, quando chega minha chefe e diz:
— Que diabos você está fazendo?!
— Inventei um jeito ótimo de cortar essas vagens! — digo eu.
E exatamente nesse momento, meto um dedo na faca, em vez de uma vagem. O sangue cai nas vagens e há um momento de agitação:
— Veja quantas vagens você estragou! Que jeito mais idiota de fazer as coisas! — continuaram falando.
Por isso não tive oportunidade de introduzir uma melhoria no processo, o que teria sido fácil — com uma guarda de proteção ou alguma coisa assim —, mas não, não houve nenhuma chance de aperfeiçoamento.
Inventei também uma outra coisa, que enfrentou dificuldades semelhantes. Tínhamos de fatiar batatas depois de cozidas, para uma espécie de salada de batatas. Por estarem pegajosas e molhadas, elas eram de difícil manuseio.
Pensei numa série de facas, dispostas paralelamente numa armação, que descessem e cortassem as batatas em várias fatias. Pensei nisso durante bastante tempo, e por fim me ocorreu a ideia de usar arames num bastidor.
Com essa ideia na cabeça, fui a uma loja de ferragens comprar faquinhas ou arames e vi exatamente o objeto que estava imaginando: um cortador de ovos. Na ocasião seguinte em que o menu incluía a salada de batatas, usei meu cortador de ovos, fatiei todas as batatas rapidamente e as mandei de volta ao chef, um alemão enorme conhecido como o Rei da Cozinha.
Com veias grossas no pescoço, ele veio em minha direção, mais vermelho do que nunca.
— O que houve com essas batatas? — berrou. — Elas não estão fatiadas!
Elas tinham sido cortadas, mas as fatias estavam todas coladas umas nas outras. Ele perguntou:
— Como é que vou separar essas fatias? — Enfie as batatas na água — sugeri.
— NA ÁGUA? ECA!!!
A inovação contra o mundo real
Em outra ocasião, tive uma ideia realmente boa. Estava na recepção e tinha de atender o telefone. Se entrasse uma chamada, ouvia-se um zumbido e um controle descia na mesa telefônica, indicando qual era a linha.
Às vezes, entrava uma chamada quando eu estava ajudando as mulheres com as mesas de bridge, ou sentado na varanda da frente no meio da tarde, num horário em que havia pouquíssimas chamadas. A mesa ficava meio longe, e eu corria para atender, mas, por causa do balcão da recepção, precisava dar um monte de voltas para chegar lá, o que levava um tempão.
Assim, tive uma ideia. Amarrei fios aos controles da mesa, estiquei-os por cima dela e prendi um papelzinho na ponta de cada um.
Depois pus o bocal do telefone em cima do balcão da recepção, para não precisar dar a volta para pegá-lo. Assim, quando entrasse uma chamada, o papelzinho que tinha se movido indicaria o controle que havia abaixado e eu atendia à chamada direto, pela frente do balcão, sem perder tempo.
É claro que depois eu teria de dar a volta para repor o circuito em sua posição de espera, mas tinha atendido a ligação sem demora. Dizia “Um momento, por favor” e contornava toda a recepção para repor tudo no lugar.
Achei que tudo estava perfeito, mas um dia a chefe apareceu e quis atender a chamada, mas não conseguiu — era complicado demais.
— Para que todos esses papéis? — quis saber. — Por que o telefone está deste lado? Por que você não… Raaaaa!
Tentei explicar — ela era minha tia — que não havia nenhum motivo para não se fazer aquilo, mas não se pode dizer isso a uma pessoa inteligente, que dirige um hotel! Aprendi que a inovação é muito difícil de aplicar no mundo real.
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