O comediante Léo Lins foi censurado por decisão da juíza Gina Fonseca Correa (TJ-SP) nesta terça-feira (16). Acionada pelo Ministério Público de São Paulo, ela determinou que um especial de comédia de Lins com mais de três milhões de visualizações fosse tirado do ar e o proibiu de publicar mais materiais de humor com suposto “conteúdo depreciativo ou humilhante” para categorias consideradas “minorias ou vulneráveis”. Ele está proibido até de sair da cidade de São Paulo por mais de dez dias sem autorização judicial. Além de punitiva, a censura é prévia: o artista está proibido de mencionar os grupos “vulneráveis” em futuras apresentações de stand-up. Dessa vez, não é apenas ativismo judicial: o MP usou a lei antipiadas sancionada por Lula em janeiro.
A notícia é mais um desenvolvimento do apagão da liberdade de expressão no Brasil que começou a chamar a atenção de observadores internacionais. Lins não é o primeiro a ser punido por quem considera piada coisa séria este ano. Em março, o comediante Bruno Lambert, que não tem a fama de Lins para viver da comédia, foi demitido de seu emprego em um banco após ser denunciado ao mesmo MP de São Paulo pela deputada federal Tabata Amaral (PSB-SP) por causa de uma piada com o tema da deficiência física.
O diplomata Gustavo Maultasch, autor do livro “Contra Toda Censura” (Avis Rara, 2022), disse à Gazeta do Povo que a defesa da liberdade de expressão do humor é a mais óbvia, simples e direta, pois “determinadas limitações à liberdade de expressão (como a incitação à violência) não se aplicariam a um discurso assumidamente jocoso e satírico”. Infelizmente muitos não percebem a gravidade da situação, reflete Maultasch: “se o Estado não respeita mais nem aquilo que é dito em tom humorístico, imagine as perseguições que ele não fará em relação a nossas opiniões e críticas políticas”.
Por isso, como um canário em uma mina, sensível à falta de oxigênio e o primeiro a morrer quando gases tóxicos são encontrados pelos mineiros, alertando-os do perigo, a censura ao humor é um alerta para democracias liberais. A história mostra que muitos comediantes ou meros piadistas de ocasião serviram como mártires da liberdade de expressão. Conheça alguns deles.
Lenny Bruce
Quem assiste à série da Amazon “The Marvelous Mrs. Maisel”, que trata de uma dona de casa judia de Nova York que decide ser comediante em 1958, se lembrará do interesse romântico da protagonista: Lenny Bruce, um humorista de grande sucesso, magro, cabelos negros com brilhantina, fumante, sarcástico, e que é preso com frequência por causa de suas piadas. O que alguns não sabem é que Bruce foi uma pessoa real.
Nascido Leonard Alfred Schneider, no estado de Nova York, em 1925, Lenny Bruce viveu apenas 40 anos. Ele foi atraído para o microfone porque sua mãe trabalhava como dançarina em uma casa noturna. Fazia imitações, paródias e piadas curtas, evoluindo para um humor negro temperado com obscenidade e comentários críticos aos tabus sociais. Em aparições na TV, ele era descrito como “o mais chocante comediante do nosso tempo”, como foi apresentado no programa de Steve Allen (um músico, comediante e escritor, pioneiro de programa noturno de entrevistas), em 1959.
A perseguição a Bruce teve caráter principalmente judicial. Em 1961, mesmo ano em que fez um show no famoso Carnegie Hall em Nova York, lotado, o comediante foi acusado de violar a lei contra a obscenidade da Califórnia. O júri o inocentou, mas ele continuou a ser preso. Muitos outros estados tinham leis antiobscenidade em que ele foi enquadrado. Em dois outros julgamentos, os júris não conseguiram chegar a um veredito, mas uma corte do estado de Illinois o condenou a um ano na prisão. Ainda em liberdade, enquanto sua apelação era apreciada, Bruce foi deportado de Londres de volta a seu país. Em março de 1964 foi mais uma vez preso por “obscenidade” na Califórnia. Os custos da defesa, além dos custos ao seu bem-estar físico e emocional, o levaram à falência oficialmente declarada por um tribunal em 1962.
Em abril de 1964, mais uma vez o humorista foi para a cadeia, dessa vez em Nova York. O público protestou. Uma petição a favor dele foi assinada por celebridades, inclusive Woody Allen e Bob Dylan. Mas a Corte Criminal da Cidade de Nova York não se comoveu e condenou Bruce por obscenidade. Seu estado de saúde física e mental continuou a se deteriorar. Cinco semanas após seu último show em San Francisco, em 1966, Lenny Bruce morreu de overdose de morfina em sua casa em Hollywood Hills, bairro de Los Angeles.
Nos Estados Unidos, a Primeira Emenda da Constituição estabelece a liberdade de expressão irrestrita a níveis sem paralelo em outros países. Mas até por lá esse direito esteve sob ataque de leis como as antiobscenidade, que puseram o alvo em Bruce, e de decisões judiciais. A justiça não veio em vida, mas o artista inspirou outros a questionar o que exatamente é “obscenidade” — e quem deve defini-la —, além de uma mudança cultural que transformou o entendimento da liberdade de expressão no país. Em 2003, após tanto tempo depois de sua morte quanto ele teve de vida, Lenny Bruce recebeu um perdão póstumo do governador de Nova York à época, George Pataki. Foi uma decisão sem precedentes.
George Carlin
Falecido aos 71 anos, em 2008, o novaiorquino George Carlin segue sendo um dos mais respeitados comediantes de toda a história dos Estados Unidos. Sua vida recebeu um documentário em duas partes no HBO Max. Seguindo o pioneirismo de Lenny Bruce, Carlin teve mais tempo de lapidar sua obra. Ele começou nos anos 1950, no rádio, teve sucesso fazendo comédia “limpa”, sendo presença frequente nos talk shows de maior audiência dos anos 1960. Mas, apesar do sucesso, ele se sentia uma fraude, participando de uma cultura hipócrita. Nos anos 1970, se reinventou completamente, deixou o cabelo e a barba crescerem, e encontrou sucesso fazendo piadas para universitários — na época, ao contrário de hoje, grandes defensores da liberdade de expressão.
Foi nesta fase que Carlin criou seu monólogo “Sete palavras que você nunca pode dizer na televisão”, em que ele analisava satiricamente, com hermenêutica inteligente mesclada ao humor que acabou se tornando sua marca, as piores obscenidades da língua inglesa. Ao apresentar o monólogo, ele foi preso em 1972, mas um juiz não aceitou o caso. Os descontentes com a apresentação do monólogo no rádio e na TV, contudo, não desistiram e levaram o caso à Suprema Corte dos EUA. Por cinco votos contra quatro, os ministros do tribunal decidiram que a FCC (Comissão Federal de Comunicações, um órgão estatal) poderia censurar conteúdo “ofensivo” nas transmissões públicas de rádio e TV. O “Caso Carlin” é considerado importantíssimo no direito americano e estabeleceu um marco de jurisprudência.
Shady Abu Zaid
Depois de alcançar sucesso em um programa de televisão satírico apresentado por um fantoche, o comediante egípcio Sady Abu Zaid foi preso na capital Cairo em maio de 2018 e passou dois anos na prisão, sem julgamento. As autoridades do Egito o acusaram de participar de um grupo ilegal (uma referência à Irmandade Muçulmana, segundo a Al Jazeera) e de disseminação de fake news. Abu Zaid tinha também um programa online. Em 2016, ele atraiu críticas ao distribuir camisinhas infladas como balões para policiais, em comemoração aos cinco anos dos protestos que derrubaram o ditador Hosni Mubarak.
Khasha Zwan
O afegão Nazar Mohammad, conhecido pelo pseudônimo Khasha Zwan, foi sequestrado e morto em julho de 2021 por causa de suas piadas sobre o Talibã no aplicativo TikTok. Ele publicava músicas e piadas contra o grupo extremista que hoje comanda o Afeganistão. Ele foi abduzido em sua cidade, Candaar, a segunda maior do país, espancado e alvejado múltiplas vezes com tiros de arma de fogo. O Talibã reivindicou a autoria do assassinato.
Ablikim Kalkun
Além de comediante, Ablikim Kalkun é um cantor e compositor popular na província chinesa de Xinjiang. Ele pertence à minoria étnica local, os uigures, perseguidos pelo regime comunista, acusado de fazer contra eles um lento genocídio envolvendo campos de “reeducação”, rapto de crianças e até remoção forçada de órgãos. Em 2019, ele foi preso e condenado a 18 anos de prisão pelo Partido Comunista Chinês, que o acusa de fazer obras que incentivam “separatismo, extremismo religioso e discriminação contra a educação nacional”. A Radio Free Asia examinou comentários em fóruns online em língua uigur e disse que “os milhões de fãs de Kalkun o consideravam um exemplar dos valores uigures, um apoiador da verdade, um crítico de males sociais em campeão da cultura uigur”.
Piadistas vivendo sob Hitler
Assim como na União Soviética, na Alemanha nazista houve censura pesada contra piadas políticas. O diretor, produtor e escritor alemão Rudolph Herzog dedicou um livro inteiro ao tema, “Morrendo de Rir: Humor na Alemanha de Hitler” (tradução livre do título em inglês, “Dead Funny: Humour in Hitler’s Germany”, sem edição no Brasil), de 2006.
Entre os casos citados por Herzog está o do ator Robert Dorsay, que tinha fama por atuar como galã em comédias. Ele tinha uma grande habilidade de contar piadas e não tinha muitos pudores de usar Hitler e Goebbels como personagens. E tinha coragem: levou advertências formais, e se recusava a se filiar ao Partido Nazista. Primeiro, Dorsay perdeu papéis proeminentes nas produções: não era mais o galã, mas interpretava caricaturas de judeus. Quando veio a guerra, não conseguia nem os piores papéis em filmes. Frustrado, ele encontrava alívio bebendo e contando piadas, uma das quais caiu nos ouvidos de um funcionário público que o denunciou.
Em agosto de 1943, uma corte marcial condenou Dorsay a dois anos de prisão reeducativa. Mas o regime estava endurecendo e convertendo as penas em punições mais duras. Em 8 de outubro, Dorsay foi condenado à morte. Menos de três semanas depois, foi executado em uma guilhotina. Seu rosto terminou sendo usado como propaganda para intimidar outros piadistas.
Outra mártir do humor foi Marianne Elise K., uma trabalhadora de uma fábrica de armamentos em Berlim. Uma colega de trabalho a denunciou pela seguinte piada: “Hitler e Göring subiram no topo de uma torre de rádio em Berlim. Hitler diz que quer fazer algo para colocar um sorriso no rosto dos berlinenses. ‘Então pule’, disse Göring”. A Corte Popular nazista chegou a um veredito contra Marianne em 26 de junho de 1943. Ela “fez afirmações maliciosas sobre o Führer e o povo alemão”, alegou a decisão. A cabeça dela rolou numa guilhotina logo depois. A corte alegou que seu status como viúva de guerra não era atenuante, mas agravante.
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