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Nascido em 16 de novembro de 1938, no Brooklyn, filho do engenheiro Max Nozick e da poeta Sophie Cohen ‒ ambos imigrantes russos ‒, Robert Nozick talvez tenha sido o libertário mais proeminente que pisou em Harvard no século XX. Ele também foi um dos mais esgrimados filósofos que duelaram academicamente com John Rawls e com seu mais famoso livro, Uma teoria de justiça. Quando lançou o livro que o colocou em outros patamares universitários, Anarquia, estado e utopia, as críticas acadêmicas foram quase uníssonas numa específica percepção: talvez não concordemos com o que ele argumenta, mas seus argumentos são robustos. Definitivamente não são fáceis de desmontar.
Estudioso de suas obras, Aeon J. Skoble afirma que ele foi elogiado até mesmo por conhecidos e históricos socialistas de Harvard, algo quase impensável em tempos de Guerra Fria e acentuada guerra cultural nos espaços universitários. A motivação deste ensaio é apresentar as principais ideias que fizeram de Nozick um libertário tão diferente quanto necessário ‒ ainda que desconhecido no Brasil. Ele e suas percepções político-filosóficas participam do seleto espaço dos “necessários para entender as implicações libertarianismo contemporâneo”.
Nozick se formou em filosofia em Columbia, em 1959. Ao longo dos anos de graduação foi um convicto socialista, militando pela causa, inclusive, na supracitada universidade. Isso mudou logo quando ingressou na pós-graduação em Princeton, universidade que, como ele mesmo descreveu, tinha um ambiente com menor teor ideológico, com professores adeptos de diversas escolas de ideias. O contato com os alunos e professores da pós-graduação o fez conhecer obras de proeminentes liberais clássicos ‒ alguns, naqueles dias, ainda contemporâneos a ele ‒, como Friedrich Hayek, Ayn Rand, John Stuart Mill, Ludwig von Mises e Murray Rothbard ‒ sendo este último o que mais o influenciou na mudança radical de posição ideológica.
Após iniciar suas leituras liberais e libertárias, com o claro intuito de refutar os colegas já convictamente liberais, diz o filósofo no prefácio de Anarquia, estado e utopia que não demorou para perceber que uma teoria moral e política liberal fazia muito mais sentido do que as propostas teóricas do socialismo progressista que até então defendia. Como acadêmico e professor, trabalhou em Princeton, na Universidade Rockefeller e em Harvard; ficou conhecido para alguns como “o libertário de Harvard”.
Ética como fundamentadora da liberdade
Talvez aquilo com o que ele mais tenha se identificado no liberalismo, provoca o autor no livro, seja a definição ética de liberdade do libertarianismo. Para ele, os liberais definiram de forma definitiva o que é liberdade em um campo ético coeso. Logo no primeiro capítulo, ele afirma que o limite de uma ação moral está justamente na existência do outro ser humano, e esse limite é, per se, um limite moral. Ele assume que não existe uma liberdade total em nada. Se morássemos sozinhos neste planeta, ainda sim seríamos limitados por nossos limites fisiológicos, pelas leis da física, etc., todavia, quando falamos em convívio humano, o limite de minha ação, diz ele, é a existência composta de outro indivíduo que divide espaço comigo.
A definição, ainda que não seja inteiramente dele, encontra em sua pena uma descrição clara e coesa ‒ coesão e clareza, aliás, são atributos virtuosos da argumentação filosófica de Nozick. Após essa percepção moral como princípio de direitos e deveres básicos em uma sociedade, ele precisava definir o que a ética diz ser o homem e qual sua essência para ser ele próprio um indivíduo com direitos atávicos.
Aquilo que dignifica o homem e o faz ser um fim em si mesmo são duas coisas: (1) a sua existência em si mesma, isto é, pelo simples fato de um indivíduo existir suas garantias éticas e sociais básicas deveriam ser respeitadas. Alguns, afirmam o filósofo, poderiam argumentar isso com relação aos animais e até mesmo a outros seres vivos, pois o fator da existência é muito abrangente. Então ele elabora um segundo condicionante: (2) o homem se dignifica e se diferencia dos demais a partir da possibilidade ímpar que tem de racionalmente construir uma existência com sentido próprio.
Em suma, o homem é o único ser capaz de dar sentido e planejar sua existência para além dos limites biológicos e ambientais que o cercam e definem, e, por isso, é digno em si mesmo. Ninguém tem o direito de interferir ou atrapalhar a vida (projeto de existência) de outrem, a não ser que este o agrida em sua própria. Sem o esteio da ordem moral na sociedade, sem o respeito consentido ante a dignidade do outro, qualquer tipo de liberdade social e individual seria pueril. Uma discurso esvaziado de sentido real.
Por que é necessário entender seu conceito de moralidade e dignidade humana? Porque tudo o que ele defenderá a partir disso estará alicerçado nesse ponto. De sua definição de Estado à visão de comércio, tudo está alicerçado no conceito de dignidade intrínseca do homem e do limite moral do outro. E é justamente por isso que sua argumentação e suas ideias se tornaram um composto filosófico extremamente duro e louvado até hoje por muitos acadêmicos. Aceitando-se os pressupostos expostos por Nozick, dificilmente nos separaremos de suas conclusões.
Porém, ele parece, num instante, ter se contradito em seu libertarianismo, o que mais tarde se fará entender principalmente quando assume para o jornalista independente Julian Sanchez, em uma entrevista, que não era um libertário extremista. Isto é, ele aceitava discutir aspectos do libertarianismo que outros libertários sequer debateriam. Qual seria essa suposta contradição? Ora, se os direitos atávicos dos indivíduos não aceitam interferências e coerções de terceiros, pois isso é, em seu sentido mais nevrálgico, imoral, por que deveríamos aceitar qualquer tipo de Estado que, na sua essência, existe para coagir, taxar e direcionar de forma policial nossas condutas sociais? O libertário Nozick parecia defender uma possibilidade de Estado mínimo real.
Estado mínimo possível
Para Nozick, há duas formas de ver o Estado, (1) a coercitiva e taxativa, assumindo a possibilidade de liberalismo pragmático de um Estado mínimo que, ainda que coercitivo, é o que melhor poderemos ter no melhor dos mundos possíveis; (2) ou aquela em que se tenta mudar a percepção sobre o problema, e é isso que ele propõe. O filósofo americano argumenta que, para existir um Estado mínimo legítimo ‒ aquele que gere uma defesa territorial eficaz e um sistema jurídico e policial de garantias dos direitos individuais primordiais ‒, este não poderia nascer já rompendo o direito moral dos indivíduos. Para existir um monopólio de segurança social numa perspectiva libertaria, tal Estado/empresa deveria se compor através das regras de mercado.
Imaginemos que, ao invés de Estado, tivéssemos agências de proteção que regulamentariam política e juridicamente uma sociedade, os indivíduos pagariam diretamente por esses serviços e não seriam coagidos a isso de forma alguma. Para que houvesse um monopólio dessa Estado/empresa, diz o libertário, as agências deveriam se fundir naturalmente no processo de mercado, algo que aconteceria de forma natural devido à limitação e especificidade da atuação das agências num mesmo território. Assim sendo, o monopólio natural advindo dessas agências seria uma espécie de Estado que nasceu sem romper nenhum direito individual, na medida que pagar por seus serviços continua sendo uma escolha.
Isso cria dois problemas adicionais na lógica libertária, (1) como aceitar um monopólio, ainda que “natural”, na medida em que isso exigiria o impedimento de concorrência?; (2) como lidar com aqueles que não aceitam pagar pelo serviço de proteção e escolhem uma autodefesa que pode ser danosa aos demais que compõem o grupo dos assegurados pelo Estado mínimo?
Para Nozick, os independentes, que não queiram pagar pelos serviços do Estado ‒ que ele chama de “ultramínimo” ‒, acabam compondo um grupo que oferecerá algum risco à ordem dada pelo Estado. Entretanto, proibi-los de buscarem ou criarem outras agências para suas seguranças é, em si, uma violação de seus direitos básicos. Assim sendo, o filósofo oferece um de seus argumentos mais controversos para solucionar essa aporia: o Estado/empresa compensaria os independentes a fim de sanar essa violação. Ele não explicita como isso seria realizado, mas afirma que a única maneira de ser minimamente coerente diante desse Estado é se ele recompensasse aqueles que não quisessem pagar por seus serviços, mas que ainda assim estivessem sob sua influência e jurisdição geral.
O trabalho de sua argumentação, nesse ponto, é provar que seu Estado ultramínimo não viola os direitos dos independentes, sendo assim um Estado mínimo possível, limitado à defesa e garantia jurídica dos valores individuais. Para ele, compensação não é o mesmo que justiça, dado que, ainda que não aceito, o Estado mínimo gerará proteção aos independentes de forma geral à medida que regulamenta a vida em sociedade. E os que estão sob o guarda-chuva jurídico do Estado naturalmente se relacionarão com os que se recusam a ele.
A compensação se dá, assim, na esteira de um ajuste compensatório, dado que o independente não quer o serviço específico daquela agência e se encontra impedido de encontrar outra ou criar a sua própria. Esse fator específico precisa de compensação, e o Estado monopolista pode suprir isso. Assim sendo, para o filósofo, ainda que seu conceito de compensação seja passível de contestação e críticas sérias, é o suficiente para manter em pé sua noção de Estado mínimo legítimo.
Desnudamento do bem-estar social
No entanto, o argumento mais relevante de Nozick para a contemporaneidade parece ser o de que o Estado não tem meios racionais e éticos de fazer uma justa redistribuição de bens. É exatamente nessa parte de sua argumentação que os entusiastas do filósofo batem de frente com os seguidores de John Rawls. Em sua teoria da titularidade, Nozick afirma que uma posse só pode ser justa se adquirida também através de um processo justo, baseado em regras de transferência de bens aceitas por ambas as partes envolvidas nas trocas, e não meramente nos fins almejados por um planejador qualquer.
Para Nozick, as distribuições podem ser a-históricas, isto é, consideradas justas pelo resultado final que se busca com essa redistribuição, ou processuais, levando em conta os inúmeros e incontroláveis fatores que levam alguém a adquirir ou passar adiante algum bem. O Estado, segundo Rawls, deve ser o promotor de bem-estar e justiça social e, com toda sua dedicação, promover a prosperidade populacional através de ações ativas e constantes na sociedade. Nozick afirma que a própria concepção de posse, justiça e a epistemologia envolvida na concepção desse Estado de bem-estar social, estão profundamente erradas.
Segundo Nozick, uma teoria de justiça redistributiva tem que considerar os meios pelos quais são adquiridos os bens a serem redistribuídos, além de todo processo ético de doação que envolve a realocação desses bem, a avaliação dos necessitados e os graus de suas necessidades. Do contrário, uma redistribuição, ainda que bem intencionada para um fim valoroso, se realizada a partir do trabalho e dos bens alheios, não passaria de uma injustiça simplória e grotesca. Se não são considerados os processos de aquisição dos bens redistribuídos, nem as retas necessidades individuais dos contemplados, com todas as suas nuances e gradações, toda redistribuição não passa de injustiças querendo consertar infortúnios.
Em resumo, a justiça de uma ou várias posses está no processo, isto é: o meio pelo qual uma posse foi adquirida foi justa e ordeira?; seguiu os padrões mercantis predefinidos e aceitos pelos participes? Se sim, temos uma posse legítima, do contrário, não. Dessa forma, não se julga uma posse justa pelo bem final e abstrato que grupos ou ideologias definem, mas sim através das condições e amparos pelos quais tal bem foi alcançado.
Em suma, o Estado não tem instrumentos legais, capacidade ética e nem possibilidade racional de realocar de forma justa, precisa e adequada os bens que ele demanda em seu modelo de bem-estar social, definido ideologicamente através de um abstrato e fugidio “bem final necessário”. O Estado só poderia redistribuir, realocar, reajustar aquilo que é dele próprio, ou que foi adquirido por ele sem nenhum tipo de extorsão ou coisa que o valha; só poderia fazê-lo de forma ética se tivesse os meios racionais e instrumentais de realocar recursos sem decair em injustiças e corrupções. Ou seja, o Estado teria que ter uma capacidade racional divina aliada a posses infindáveis de bens a serem redistribuídos.
Essa explicação, um tanto quanto óbvia e simples, está, porém, inserida num contexto filosófico amplo em Anarquia, estado e utopia, fazendo do livro um todo coeso, articulado e sensato. Muitos abandonaram as ideias de Rawls quando Nozick mostrou a impossibilidade da conciliação da ética e da redistribuição através do Estado ‒ ética essa, é bom dizer, que supostamente assenta a narrativa de “Estado promotor de bem-estar” que John Rawls, em sua famosa obra Uma teoria de justiça, garante ser o futuro da prosperidade e da igualdade política mundial.
Um Nozick a ser descoberto
Um aprofundamento nas ideias de Nozick torna perceptível que a liberdade, para o filósofo, de fato é um “atrapalhador” de padrões ‒ ainda que ele aceite uma ordem moral primordial que firmemente assegura os conceitos primordiais de liberdade. Ou seja, a liberdade não está no vácuo. O Estado e as ideologias que sustentam sua atuação social centralizadora padecem, ao ter que ajustar um conceito ético de liberdade individual e as atribuições que o Estado adquire com o centralismo que hoje lhe é característico. Essa perturbação, segundo Nozick, se dá pois a liberdade é um definidor de dignidade ‒ como vimos antes ‒, ela não é negociável ante uma ideia que pretende padronizar gostos, necessidades e modos de se portar, segundo um abstrato e fugidio conceito de “ética de ponto de chegada”.
Sempre que um modelo social é criado sem a livre participação e escolha dos indivíduos, o que vemos é uma usurpação da autonomia do homem. Há uma diferença enorme entre o homem escolher uma instituição central com monopólio da força para protegê-lo e manter uma mínima ordem jurídica vigente, e o homem ser coagido e constrangido a aceitar ‒ sem nenhuma compensação ‒ os padrões que terceiros definiram para sua existência. Como vimos, para Nozick, a dignidade intrínseca, e completamente diferenciadora do homem, está em sua capacidade racional de direcionar sua vida dentro dos limites morais conscientes. Tudo aquilo que é padronizado pelo Estado ou instituições, e colocado na sua frente como uma lei não consentida, trata-se de uma violência pura e simples.
Nozick, após escrever Anarquia, estado e utopia, não se ocupou de uma defesa de suas ideias, ainda que eventualmente elaborasse respostas pontuais a críticos. Após se doar ao projeto de sua filosofia política libertária, foi para outros ramos da filosofia, principalmente epistemologia. Seu livro quis, antes de mais nada, trazer o libertarianismo para o mundo da possibilidade real, do pragmatismo do fato. Uma das críticas constantes ao libertarianismo refere-se ao seu alto grau de idealismo, do “se fosse assim”.
Nozick parece forçar as nuvens onde vários libertários curtiam suas abstrações éticas, e encontrar meios racionais e políticos, não contraditórios, para enfim pousar o libertarianismo em terra firme. E, para isso, não só lutou por um conceito de Estado mínimo que não violasse os pressupostos libertários, como construiu uma robusta ética individual que poderia regulamentar a vida humana sem precisar de metafísicas ou materialismos ideológicos ao estilo marxista: o homem é digno per se, e isso está localizado em sua diferenciação basal das demais espécies, ponto.
Nozick trabalhou até o final de sua vida como professor e escritor. Morreu em 23 de janeiro de 2002, aos 63 anos, de câncer no estômago. Foi sepultado em Mount Auburn Cemetery, em Massachusetts. Podemos afirmar que ele foi um filósofo diferente, principalmente por contrapor o status quo universitário de Harvard com polidez e inteligência, mas também pela rara coragem na mudança brusca de seus valores, ao perceber que a verdade estava longe do que anteriormente acreditava. Talvez essa seja a mais antiga definição da função do filósofo: seguir a verdade independentemente para onde ela o carregue.
Sua mente completa e esgrimada ‒ quiçá quase enciclopédica no ramo filosófico ‒ o fez competente ao analisar as multifaces da realidade, conectando-as e esmiuçando-as quando necessário, e, por vezes, também, dissecando e destruindo argumentos falaciosos que poucos em seus dias se dedicaram a analisar com seriedade e coragem.