O ex-procurador-geral da República, com algum estardalhaço desajeitado e um imbróglio jurídico involuntário, está lançando Nada menos que tudo, seu livro de memórias, coescrito pelos jornalistas Jaílton de Carvalho e Guilherme Evelin. O livro despertou o interesse dos poucos brasileiros que ainda se dispõem a ler qualquer coisa por dois motivos. Primeiro porque Janot, em entrevista, deu vazão a seus sonhos homicidas em relação ao ministro do Supremo Tribunal Federal Gilmar Mendes, episódio que, aliás, não consta no livro. Depois porque as memórias de Janot, ou melhor, do doutor Janot chegam às livrarias na esteira de outros livros de relativo sucesso, todos tratando da conturbada política brasileira das últimas duas décadas.
O que move alguém a entrar na livraria, gastar algum dinheiro, voltar para casa e dedicar parte do escasso tempo ocioso da vida contemporânea a ler as memórias de um ex-procurador da República é algo que está além da minha compreensão. Diz o bom-senso que a vida é curta demais para esse tipo de leitura – e o bom-senso é bom por algum motivo. A leitura de um relato como o de Nada menos que tudo só seria justificável se Janot fosse dotado de um extraordinário talento literário ou se suas memórias revelassem escândalos capazes de fazer ruir a civilização ocidental. O que, evidentemente, não é o caso.
Foi por zelo profissional, pois, que li o livro que tem a ambição de entrar para os anais da historiografia contemporânea brasileira, mas que parece mais destinado mesmo ao anedotário. No meio jurídico, Janot se tornou alvo de discussões entremeadas por risos por causa do já mencionado caso da imaginação homicida do autor – punida orwellianamente com uma humilhante operação de busca e apreensão, ordem restritiva e ameaça de censura e até prisão. E também no mercado editorial, uma vez que a confissão dos pensamentos assassinos de Janot se transformou no mais cômico exemplo de golpe publicitário fracassado que se tem notícia desde o sumiço daquele menino no Acre. Para piorar, se Janot criou uma narrativa na qual engatilhava uma arma contra um ministro não exatamente querido do STF para criar empatia com os leitores e possíveis compradores do livro, o tiro delirante saiu pela culatra, porque Nada menos que tudo vazou na Internet, comprometendo os royalties destinados ao autor.
Li a jornada narcísica de Janot também porque seres humanos me interessam e um livro de memórias representa sempre uma oportunidade de conhecermos melhor um ser humano que, cotidianamente presente na TV, rádio e Internet, tende a se tornar um indivíduo monodimensional, muitas vezes reduzido à caricatura. É para isso, aliás, que servem os livros de memórias, os bons e também os péssimos: para revelar a pessoa real por trás do personagem, para enfatizar o lado comum, prosaico, inegavelmente humano dos episódios grandiosos, para nos aproximar do Olimpo e nos fazer perceber que os deuses ou semideuses, no dia a dia, sofrem percalços muito parecidos com os nossos.
Uma pena que Nada menos que tudo fracassasse miseravelmente em substituir o personagem da crônica político-jurídica por um homem de verdade. Não sei se por acaso ou se por total falta de talento do narrador e seus assistentes, a verdade é que as memórias de Janot acabam por mostrar que a elite governante do Brasil é composta por pessoas que, ao longo das últimas décadas, se transformaram em semirrobôs da engrenagem estatal, em tecnocratas positivistas da pior espécie, em escravos de uma vida vazia como só o Estado, com suas tentadoras e diabólicas promessas de segurança financeira e estabilidade, é capaz de oferecer.
Um servo do Estado, para o Estado, pelo Estado
No caso de Rodrigo Janot, a escravidão se completa com a ambição de entrar para a história oficial como um herói, um servo altivo e honrado do Estado, destinado a, quem sabe, figurar um dia num dicionário ilustrado ao lado do verbete “cidadania”.
Prova disso é a ausência quase total de referências à infância e juventude do autor. Aliás, para descobrir que Rodrigo Janot é também Monteiro de Barros e que nasceu em Belo Horizonte, tive de recorrer à Wikipedia. Meia hora mais tarde e vasculhando a Internet, não foi possível encontrar muito mais do que isso. Como um daqueles personagens sem passado dos velhos filmes de espionagem, Janot parece ter surgido no mundo quando foi nomeado procurador-geral pela ex-presidente Dilma Rousseff. É como se ele saísse de um ventre materno tardio já de terno e gravata para assumir o cargo que lhe causaria tantos aborrecimentos.
O primeiro capítulo do livro, portanto, é dedicado a essa gestação do homem público. Janot conta que “de repente, meu celular tocou”. E a frase salta aos olhos pela ênfase no “de repente”, como se o Criador estalasse os dedos e se fizesse a luz. Era o vice-presidente Michel Temer bancando o M das histórias de James Bond e dizendo para o “cidadão comum” Janot que em breve ele teria uma missão: torna-se procurador-geral da República – com licença não para matar, como o famoso espião, mas para pedir, num futuro próximo, a prisão do próprio Michel Temer.
Daí, no único trecho do livro que, com um pouco de generosidade, se pode chamar de “humano”, Janot volta no tempo para se autoelogiar como o homem probo que, apesar do passado de tímida militância esquerdista, típico de uma geração que entrou para o funcionalismo público depois de chegar “à conclusão de que a melhor maneira seria combater o regime por dentro do Estado” e tomou posse no Ministério Público “cheio de expectativas de que ajudaria a mudar o Brasil”, pediu que um ídolo político, o ex-deputado José Genoíno, fosse preso.
E aqui o livro já começa a ganhar cor: o melancólico cinza de um homem que em muitas vezes lembra o triste amanuense Belmiro de Cyro dos Anjos (livro que li numa juventude remota e que só sobrevive em mim como impressão), nascido para ser não alma, e sim RG, CPF e comprovante de endereço, tudo com autenticação cartorária. Um homem que sublima seus sentimentos em nome da retidão cívica, que dá a impressão de trocar facilmente a honestidade do livre-arbítrio pela honestidade do dever jurídico:
“Foi difícil, né, procurador? Dever de ofício, né?, ele [Fernando Pimentel, ex-governador de Minas Gerais e envolvido em casos de corrupção] comentou comigo.
“Foi sim, ministro, dever de ofício. Mas não dá para tergiversar em relação a isso”, respondi. Em seguida, completei com uma frase que viraria meu mantra: “A gente faz o que tem de fazer”.
Diálogo parecido aconteceria meses mais tarde, consolidando o tecnocrata. Eis a conversa que Janot relata com Rogério Chequer, um dos líderes do movimento Vem Pra Rua:
“Vamos dar apoio, mas o senhor tem que investigar!” E sugeriu alvos predeterminados. Se não me falha a memória, ele chegou a dizer que tinha mais de 1 milhão de seguidores e que cobraria resultados. Eu respondi:
“Calma, rapaz, a coisa aqui é técnica”.
A jornada do herói embriagado
Se o herói Rodrigo Janot de Nada menos que tudo é gestado naquele telefonema “repentino” do então vice-presidente Michel Temer, ele nasce quando a ex-presidente Dilma Rousseff o nomeia procurador-geral. Com uma mistura de ingenuidade calculada e humor negro involuntário, Janot conta que, quando o então ministro da Justiça José Eduardo Cardozo lhe ligou chamando-o para uma reunião com a presidente que selaria sua nomeação ao cargo, ele estava etilicamente alterado.
Eu tinha de chegar ao Alvorada sem qualquer vestígio de bebida alcoólica. De imediato, Dantas [o advogado Antônio Carlos Ribeiro Dantas] propôs café com sal. Topei a sugestão e ingeri a mistura. Foi um estrago. Tive engulhos e corri para o banheiro. Vomitei o que bebera e algo mais. Para que eu me recuperasse, Dantas e minha mulher me socorreram com alguns copos de água.
Depois disso, Janot, seguindo o manual já cansado das narrativas heroicas criadas a partir das lições de Joseph Campbell, desce aos infernos. Ele visita uma série de presídios pelo país, em mais uma daquelas iniciativas estéreis do Conselho Nacional de Justiça para transformar os cárceres do país em algo que não uma “masmorra medieval”, como dita o velho clichê. É dos corredores escuros, úmidos e mal-cheirosos das piores penitenciárias do país que Janot emerge mais uma vez triunfante, destinado a cumprir um destino nobre, um Lancelot encarregado de sair pelo Reino munido de suas petições para acabar com a corrupção.
Sim, porque no capítulo 4, intitulado “Como tudo começou: todo poder a Curitiba!”, Rodrigo Janot se autoproclama pai da Lava Jato, vassalo do Estado, mas senhor da Procuradoria, incumbido, talvez por vontade divina, a criar a força-tarefa liderada por outro obediente servo do Estado, Deltan Dallagnol. Capitaneando essa nau de burocratas virtuosos, Janot, como um Sísifo exausto, reflete, depois de elaborada a famosa “lista do Janot”, sobre o papel da Lava-Jato da qual, vale repetir, ele se considera pai:
“Era como se a solução de nossos problemas políticos e sociais estivesse entrelaçada à lista”.
O estilo faz o homem
Rodrigo Janot, sempre mais personagem do que homem, se revela muito no estilo de suas memórias – por mais que ele tenha contado com a ajuda de dois ghost-writers. A começar pela linguagem chula e os muitos pontos de exclamação que marcam os diálogos do livro.
“Nós temos que fazer, senão (sic) estamos fodidos. Se temos que fazer, vamos fazer! Ah, mas é presidente do Senado, é presidente da Câmara, foda-se. Se fosse o cara da esquina, não estaríamos descendo o cacete nele? Qual a diferença desse cara para o outro? Não, não, vamos fazer!”
Pior do que isso, porém, são os momentos em que o ex-procurador-geral usa de um tom professoral para expressar a sapiência que acumulou em décadas de gabinetes, provavelmente lendo tomos e mais tomos de teoria do direito. “Um procurador medroso não procura (e não acha) nada”, escreve ele em certo momento, para logo em seguida concluir que “a covardia é, sim, um sinal de fraqueza”.
Não menos importante é o uso abundante de lugares-comuns. Ao longo de todo o livro, Janot “chora copiosamente”, segue “a letra fria da lei”, sofre “derrotas e vitórias acachapantes”, vai “de vento em popa”, tem “saúde de ferro”, para diante de “dúvidas que acenderam a luz amarela”, expõe “obviedades ululantes” e põe “os pingos nos is”. Recurso preguiçoso, os clichês demonstram também uma visão de mundo estreita, marcada por raciocínios fáceis que avançam apoiados em muletas idiomáticas.
A teatralidade da humilhação, do choro, dos gases e das autocertezas
O bom de ler memórias tão desinteressantes é que as páginas avançam e o leitor, desesperado por encontrar um episódio que o tire do semissono, começa a se ver interessado por longos parágrafos que, no fundo, não revelam nada. Em Nada menos que tudo, esses episódios se estendem por 250 páginas. Você vira a página e encontra lá o nome famoso (um Aécio, uma Gleisi), citado cotidianamente nas páginas de política e polícia dos jornais, e se engana, na esperança de encontrar algo que o faça saltar da poltrona – mas nada acontece.
Ao longo de intermináveis páginas que são um primor de vazio narrativo, Janot descreve, por exemplo, a humilhação a que o ex-senador e hoje deputado federal Aécio Neves se submeteu ao lhe pedir que não o investigasse. “My life is in your hands [minha vida está em suas mãos]”, teria escrito Aécio numa carta a Janot, carta esta que o ex-procurador diz ter guardado como documento histórico, mas que ele não faz nenhuma questão de mostrar ao leitor. “Talvez ao longo da história isso diga algo sobre o tamanho de alguns dos nossos homens públicos”, reflete Janot, sem se dar conta de que ele está falando também de si.
Aí, quando as pálpebras estão pesando e ainda falta mais da metade do livro, o leitor se depara com um momento de humor involuntário. Ao descrever a segunda sabatina a que se submeteu no Senado, um rancoroso Janot se dedica a falar de um de seus maiores desafetos (entre tantos), o senador Fernando Collor, que se sentou na primeira fila para ficar xingando o já nervoso ex-procurador-geral. Neste trecho, aliás, Janot faz questão de mostrar o quão importante ele é e quão nobres e difíceis são suas missões ao dizer que, diante da possibilidade de Collor repetir os feitos do pai e matá-lo, contratou um segurança dedicado a cravar os olhos no intempestivo senador e contê-lo num possível ataque. Até que:
Em meio àquele estranho duelo de olhares, um garçom se aproximou com um guardanapo e duas pílulas. Eu, sem entender nada do que estava acontecendo, simplesmente repeli a oferta. Logo depois reapareceu o mesmo garçom, dessa vez com um bilhete escrito à mão pela minha mulher. Minha filha, assistindo à sabatina pela TV, percebera que eu estava inquieto na cadeira e sugerira à minha esposa me passar pílulas contra gases.
Rodrigo Janot humilha um já combalido Aécio Neves, enfrenta os olhares furiosos de Collor, mas se derrete todo diante de Gleisi Hoffmann. Ao narrar um encontro que teve com a ex-senadora, que aparentemente foi buscar consolo para os problemas do ex-marido, Paulo Bernardo, um desavergonhado Janot mais uma vez mostra que seu senso de dever nada tem a ver com uma base moral sólida, e sim com a submissão ao Estado e à instituição que ele parece representar a contragosto.
Com a voz baixa e visivelmente abatida, a senadora começou dizendo reconhecer erros cometidos por Paulo Bernardo, mas argumentando que estavam colocando carga demais sobre o marido. No meio da conversa, ao relatar o sofrimento dela e dos filhos, ainda crianças, diante da prisão do pai, começou a chorar. Eu disse: “Senadora, eu sei o que é sofrimento em família, mas o que deve ser feito será feito”. Nesse momento, também vi que estava chorando.
Acerto de contas consigo mesmo
Não há, em Nada menos que tudo, espaço algum para a transcendência, a reflexão, o autoexame da alma, todas essas coisas que um leitor busca num livro de memórias. Para Rodrigo Janot, tudo é preto-no-branco. Nuances desaparecem completamente até mesmo quando o narrador conta episódios como o das gravações dos irmãos Batista, que quase provocou a queda do ex-presidente Michel Temer e que rendeu aos empresários uma controversa imunidade penal.
Ao falar da delação dos executivos da Odebrecht, por exemplo, Janot mais uma vez se revela um ser reduzido a um cargo estatal, um narcisista destinado a livrar o país da corrupção, nem que para isso tenha que prejudicar a própria saúde. Ele conta que, durante as negociações com os executivos, descobriu dois carcinomas no rosto. “A descoberta de uma doença que pode ter consequências graves não deixa ninguém feliz, mas minha preocupação naquele momento era outra. Como tomar uma dose de Dormonid®, necessária para aquela cirurgia, sem colocar em risco o mais cobiçado segredo da República?”, conta, numa tentativa de transformar um vazio existencial e moral numa virtude.
Rodrigo Janot, por sinal, só dá sinais de ser algo além de um escravo do Estado quando bebe vinho (situação que se repete preocupantemente durante o livro) e, já no final, quando exalta os próprios dotes culinários. “A alegria pelas coisas simples é o que nos torna semideuses”, conclui ele, revelando, mais uma vez, como se vê e como pretende ser visto.
Isso porque Janot não está preocupado em deixar o livro com um legado. Ele está interessado apenas em prestar contas para si mesmo, exaltando seus feitos, justificando de forma quase infantil seus quase inexistentes erros e dizendo que aqueles que o criticaram só fizeram isso porque não foram capazes de entender sua lógica brilhante e honrada. Nada menos que tudo é isso: página após página, uma tentativa de legitimar as ações de um personagem secundário que se vê como protagonista.
Janot, contudo, se trai nas muitas entrelinhas do livro que, no mais, não passa de um gigantesco e cansativo ato falho. O leitor que se colocar no papel de psicanalista e ouvir com atenção a voz monótona do paciente, com seus pretensiosos pretéritos-mais-que-perfeitos, vai descobrir ali um ser com vocação para autômato positivista, um verdadeiro, inequívoco e assustador representante da tecnocracia brasileira.