A liberdade de expressão nas universidades é algo bem diferente da liberdade de expressão no Congresso ou Parlamento, liberdade de imprensa ou liberdade de expressão nas ruas. Cada geração tem suas próprias convenções e tradições e cada uma delas deve proteger sua liberdade para seu próprio fim e tendo uma ideia de seu bem particular. Em conversas cotidianas, não é uma regra que todos os aspectos de uma questão sejam discutidos abertamente, e leis de honra, ordem pública e sedição protegem as pessoas de discursos prejudiciais ou provocativos.
Essas leis foram ampliadas radicalmente nos últimos tempos, com a invenção dos “discursos de ódio” como uma categoria semilegal e leis como a britânica Lei de Ódio Religioso e Racial de 2006, que torna crime “incitar o ódio” contra grupos religiosos e raciais. O consenso emergente é o de que, na arena dos encontros diários, a liberdade de expressão sem amarras tem um custo que pode muito bem superar os benefícios e a lei tem o direito a intervir em nome da ordem pública.
Como, contudo, se deveria administrar a liberdade de expressão numa universidade? Uma universidade contemporânea é bem diferente da instituição medieval da qual ela descende. A universidade medieval tinha faculdades de direito e medicina, abrangendo também a matemática e as ciências naturais.
Mas ela girava em torno do estudo dos dogmas e da autoridade da igreja. Uma grande parte do trabalho intelectual delas era dedicado a identificar e extirpar heresias e, apesar de você só pode fazer isso se puder expressar livremente essas heresias e analisar os argumentos delas, você não é, de fato, livre para afirmá-las. Seria enganoso dizer que a universidade medieval se dedicava a promover a liberdade de pensamento, já que a liberdade acabava às portas da fé – mesmo que essas portas só pudessem ser descobertas por uma espécie de livre pensamento.
Há universidades hoje que se assemelham ao padrão medieval — a Universidade de Alazar, no Cairo, é um exemplo, e um exemplo estranho, já que ela sobreviveu e serviu de modelo para as universidades que surgiram bem mais tarde na Europa cristã. A maior parte das nossas universidades, contudo, passou por uma mudança radical na sua pauta social e intelectual durante o Iluminismo, quando a teologia foi tirada de sua posição central no currículo e as humanidades — a studia humaniora — acabaram por substituir a studia divina. Apesar de o ceticismo, o ateísmo e as heresias ainda estarem fora da pauta, isso se devia sobretudo porque eles eram considerados erros, e não crimes.
Quando a Universidade de Berlim foi fundada sob a direção de Humboldt, em 1810, presumia-se em todas as partes que universidades eram lugares de livre pensamento cujos objetivos eram promover o conhecimento independente de objetivo e tornar o conhecimento disponível para as próximas gerações. Essa ênfase no conhecimento se aplicava não só às ciências, nas quais o livre pensamento é essencial, mas também às humanidades.
Duas disciplinas interessantes surgiram no século XVIII: o estudo comparativo das religiões e o estudo filológico das Escrituras. Embora nenhuma dessas disciplinas se voltasse diretamente contra as bases da fé cristã, elas tiveram como efeito a remoção de algumas bases cuidadosamente protegidas dessa fé. No começo do século XIX, somente uma pessoa mal informada podia acreditar que a Bíblia era literalmente a palavra de Deus ou que o Cristianismo era a única forma de devoção religiosa. Quando [John Stuart] Mill lançou sua famosa defesa da liberdade de opinião, em Sobre a Liberdade (1859), aceitava-se amplamente que a expressão livre de ideias dissidentes é importante em todas as áreas de pesquisa, não apenas nas ciências naturais. Citando as palavras hoje famosas de Mill:
O mal específico de impedir a expressão de uma opinião está em que se rouba do gênero humano a posteridade tanto das gerações presentes quanto daqueles que discordam da opinião, ainda mais dos que a sustentam. Se a opinião é certa, aquele foi privado da oportunidade de trocar o erro pela verdade; se errônea, perdeu o que constitui um bem de quase tanto valor — a percepção mais clara e a impressão mais viva da verdade, produzidas pela sua colisão com o erro.
Não há nada de mau nisso. Mas e se as pessoas não estiverem buscando a verdade e sim outro tipo de benefício, como o ingresso num grupo, solidariedade ou consolo? A liberdade de expressão é igualmente benéfica na busca por consolo e na busca pela verdade? Claro que não. As religiões, ensinou-nos [Émile] Durkheim, faz com que nos sintamos membros de algo maior, e essa é a função social delas. Elas preenchem o vazio no coração humano com a presença mística do grupo e, se não fazem isso, elas entram em decadência e morrem como as religiões do mundo antigo durante o período helenista. É da natureza da religião se proteger de grupos rivais e das heresias que os promovem. Não é por acaso, então, que os heréticos sejam marginalizados ou até queimados em praça pública.
Claro que nós, cristãos, não praticamos mais tais coisas, já que aprendemos a arte de deixar a religião de lado quando lidamos com aqueles que não a compartilham, abrindo, assim, espaço bastante para a discussão livre de alternativas. Mas esse comprometimento contínuo entre a religião e o livre pensamento é estranho a muitas outras visões de mundo. Hoje em dia temos, vivendo entre nós, pessoas que acreditam que os erros religiosos são puníveis com a morte e que os que praticam esse tipo de punição são abençoados pelo Todo Poderoso.
O interessante é que não é todo desvio religioso que atrai esse tipo de reação. Isso é importante para se compreender como as circunstâncias atuais mudaram. Um comerciante de Glasgow chamado Asad Shah foi recentemente assassinado por um jovem chamado Tanveer Ahmed. O crime do sr. Shah era pertencer à seita islâmica Ahmadi, um ramo da Shi’a que prevê relações abertas com infiéis e que estende a boa-vontade dos sufis àqueles que ainda não obtiveram a salvação — fato associado à condição do sr. Shah de vizinho amado e respeitado entre as pessoas de seu convívio.
Enquanto o assassino era levado a cumprir prisão perpétua, uma multidão de sunitas se reunia do lado de fora do tribunal para expressar apoio enquanto o sr. Ahmed, que confessou abertamente o crime, não demonstrou nenhum arrependimento. Por outro lado, o sr. Ahmed insistia que não sentia nenhum impulso violento contra cristãos, judeus ou fieis de outras religiões. Ele estava ofendido pela heresia do islã, não pela existência de fés diferentes. De uma forma peculiar, preso a um imperativo quase genético do qual ele era apenas um escravo, ele queria vingar sua ação aos olhos dos sunitas e se sentia completamente indiferente ao restante do mundo. Não era o erro o que o ofendia, e sim um desvio no âmago da sua comunidade.
O exemplo é um entre tantos e devemos aprender com ele. Os hereges ofendem não porque passaram a acreditar nas coisas erradas ao longo de suas investigações religiosas. Cristãos, judeus e ateus estão todos errados, no entendimento do sr. Ahmed. Mas os erros deles não eram uma preocupação para o sr. Ahmed e tampouco lhe pareciam uma ofensa. O sr. Shah, contudo, era um herege cujos erros não eram apenas erros, e sim crimes, já que os hereges atacam o grupo de dentro do mesmo território espiritual.
Os hereges são essencialmente subversivos: aceitar o que eles dizem é reconhecer que, em certo sentido, o grupo é arbitrário, que ele poderia ter se reunido de alguma outra forma e que aqueles considerados hoje membros e pessoas ao seu lado na vida talvez sejam estranhos e até inimigos na busca por Lebensraum espiritual e geográfico. Esse pensamento subverte todo o projeto religioso, já que ele lhe diz que, no final das contas, a religião não trata da verdade e qualquer velha doutrina serviria desde que beneficiasse seus membros. Por consequência, e ainda que não pretendessem isso, os hereges relativizam aquilo no que se deve acreditar de forma absoluta, se é que se deve acreditar mesmo.
O medo da heresia não se expõe apenas no reino das crenças religiosas. Se você analisar a história do movimento comunista, se lembrará das disputas genocidas quando ao arianismo e pelagianismo no mundo antigo e das inquisições religiosas no fim do período medieval, nas quais as heresias eram identificadas e recebiam um nome – às vezes da pessoa que a cometeu primeiro ou que a divulgou. A Segunda Internacional nos deu o “menchevismo” e o “divisionismo esquerdista”, que foram acompanhados pelo “esquerdismo infantil”, o “fascismo social” e o “trotskismo”, todos analisados à luz do “marxismo-leninismo” que acabou por ser considerado a ortodoxia.
Especialmente interessante é a acusação feita contra o dr. Jivago por seus diagnósticos intuitivos: “neoschellinguismo”. Novamente o perigo real era o herege dentro do movimento, e não fora, aquele que, na época, ria do que estava acontecendo — embora tenha chegado a hora, como chegou com o islamismo hoje, em que ninguém mais pode rir em segurança. E talvez isso também esteja acontecendo em nossas universidades, cujas heresias indefinidas são expressas por rótulos atrelados com toda a força possível à vítima de preferência: racismo, sexismo, preconceito contra a idade, especiemismo e assim por diante, todos crimes capazes de pôr fim à carreira de alguém.
Distinções desagradáveis
O medo da heresia surge sempre que os grupos são definidos por uma doutrina. Por mais absurda que a doutrina seja, se ela é um teste de pertencimento precisa ser protegida das críticas. E quanto mais absurda a doutrina, mais veemente a proteção. A maioria de nós é capaz de conviver com acusações falsas, mas, quando uma crítica faz sentido, corremos para silenciar quem a pronuncia. Assim, são as doutrinas religiosas mais vulneráveis as protegidas com mais violência. Se você ri da afirmação muçulmana de que a religião deles é a “religião da paz”, você corre grandes riscos: o islâmico prova sua devoção à paz matando aqueles que a questionam.
Nas universidades de hoje em dia, contudo, os alunos — e sobretudo os politicamente mais ativos entre eles — tendem a resistir à ideia de grupos restritos. Eles insistem principalmente que as distinções associadas à cultura herdada — entre sexos, classes e raças, gêneros e orientações sexuais, religiões e estilos de vida — deveriam ser rejeitadas para o bem da igualdade ampla que permite que todas as pessoas sejam o que são realmente. Colocou-se um grande sinal de negação entre as velhas distinções, passando-se a adotar um ethos de “não-discriminação”. E esse ar de aparente abertura inspira seus proponentes a silenciar aqueles que se voltam contra ele.
Certas opiniões — sobretudo aquelas que estabelecer as distinções proibidas — se tornam heréticas. Com uma estratégia que [o filósofo, economista e químico] Michael Polanyi descreveu como “inversão moral”, uma antiga forma de censura moral foi renovada pelo direcionamento dela contra seus ex-oponentes. Assim, quando um professor é considerado alguém que faz “distinções desagradáveis”, ele provavelmente será alvo de intimidação por ser um apoiador de antigas formas de intimidação.
Talvez seja impossível saber adiantadamente como essas novas heresias serão cometidas ou o que elas exatamente são, já que a ética da não-discriminação está em evolução constante para desfazer distinções que ainda ontem eram parte do tecido da realidade. Quando [a escritora] Germaine Greer disse que, em sua opinião, as mulheres que se diziam homens não eram realmente membros do sexo masculino porque não tinham pênis, sua fala foi considerada tão ofensiva que armou-se uma campanha para impedir que ela palestrasse na Universidade de Cardiff. A campanha não teve sucesso, em parte, por causa da personalidade de Germaine Greer. Mas na época ela não percebeu que tinha cometido uma heresia. E seus acusadores provavelmente só perceberam isso mais tarde, ao praticar os matinais “Dois Minutos de Ódio”.
Mais bem-sucedida foi a campanha no Reino Unido para punir Sir Tim Hunt, ganhador do Prêmio Nobel de Biologia, por falar algo à toa sobre a diferença entre os homens e mulheres no laboratório. Teve início uma caça às bruxas na imprensa, o que levou Sir Tim a pedir demissão de seu cargo na University College London. A Royal Society (da qual ele era membro) o expôs publicamente e ele foi excluído da comunidade científica. Toda uma vida marcada pelo trabalho criativo acabou em ruínas. Isso não é censura, e sim uma punição coletiva por heresia, e deveríamos tentar compreender esses termos.
A ética da não-discriminação nos diz que não devemos fazer quaisquer distinções entre os sexos e que as mulheres estão tão adaptadas à carreira científica quanto os homens. Essa ideia é inquestionável em qualquer território reclamado pelas feministas radicais. Não sei se isso é verdade, mas duvido que seja, e a fala à toa do Sir Tim sugere que ele tampouco acredita nisso. Como descobrirei quem tem razão? Analisando os argumentos, comparando as opiniões contrárias na balança da discussão racional e estimulando a livre expressão de ideias heréticas.
A verdade surge graças à mão invisível dos nossos muitos erros, e tanto os erros quanto a verdade devem ser permitidos para que o processo dê certo. A heresia surge quando alguém questiona uma crença que não deve ser questionada de dentro do território de um grupo. O território do feminismo radical é o mundo acadêmico, o lugar onde carreiras podem ser feitas e alianças podem ser formadas pelo ataque ao privilégio masculino.
Um dissidente de dentro da comunidade acadêmica deve, portanto, ser exposto, como Sir Tim, à intimidação e assédio público, e na era da Internet esse castigo pode ser amplificado sem custo para os perpetradores. Esse processo de intimidação gera dúvidas, para as pessoas sensatas, quanto à doutrina que o inspira. Por que proteger uma crença que se mantém por si só? A fragilidade intelectual da ortodoxia feminista está toda exposta no destino de Sir Tim.
Não-discriminação discriminatória
Há algum motivo para pensarmos que as universidades têm um papel especial nessa questão, seja para apoiar a liberdade de expressão em geral ou para criar um espaço onde ela ocorra? A resposta, acho, é sim, e tanto a University College London quanto a Royal Society demonstraram, ao se recusarem a proteger Sir Tim do ataque dos idiotas tuiteiros, o triste estado do mundo acadêmico atual, que está perdendo toda a noção de seu papel como guardião da vida intelectual – e o está perdendo justamente por ceder às ortodoxias da não-discriminação.
Como [o psicólogo social] Jonathan Haidt argumentou com eloquência, assim que as universidades começam a defender a diversidade como um valor acadêmico fundamental — e por “diversidade” me refiro a tudo incluído sob o termo “não-discriminação” — a verdadeira diversidade que a universidade deveria defender, isto é, a diversidade de opinião, é corrompida e, em muitos lugares, completamente destruída.
Os motivos da não-discriminação ética e da inversão moral transformada numa forma violenta de discriminação direcionada contra todos os que ultrapassam seus limites fluidos e imprevisíveis são profundos. Como Rusty Reno argumenta em seu Resurrecting the Idea of a Christian Society [Fazendo ressurgir a ideia de uma sociedade cristã], o Iluminismo, que buscava um mundo onde a razão se sobrepusesse ao preconceito em todo o debate público, também semeou sua própria destruição ao exaltar a autonomia individual sobre todas as formas de obediência.
“Sou meu próprio autor” era a premissa do Iluminismo; posso ser o que eu quiser, desde que eu não prejudique os outros. As convenções sociais, as formas tradicionais de vida, as divisões de papeis e identidades comunais e até as diferenças de prestígio social associadas à divisão biológica do trabalho entre os sexos — nada disso tem importância em comparação com minha escolha de conferir ou não legitimidade a elas. Aos poucos, à medida que as antigas autoridades desapareceram ou perderam sua aura, cada vez mais a vida humana perdeu as regras, tradições e distinções que a compõem, e cada vez mais tudo na vida, tudo o que talvez seja importante para mim e constitui minha felicidade pessoal, se tornou uma questão de escolha, na qual eu tenho o direito à ação e ninguém pode interferir.
Daí porque ninguém hoje pode impor sobre mim uma identidade que eu não escolhi. Minha natureza como um ser autocriado é inviolável. Sua desaprovação ao meu estilo de vida é problema seu, não meu; se você se opõe à minha homossexualidade, isso só prova que você sofre de homofobia, um transtorno da alma que também é uma ressaca de uma forma de vida fora de moda.
Portanto, não há espaço para uma discussão sobre a homossexualidade e muito menos para críticas. Sua objeção ao islamismo e a presença de fieis dessa religião em nosso meio é um problema seu — um sinal de islamofobia, uma doença mental que se espalha descontroladamente pelo mundo ocidental desde 11 de setembro de 2001. O racismo, o sexismo, a homofobia, a islamofobia — todos os ismos e fobias que repreendem as malditas tiradas da ortodoxia — são resíduos de formas antiquadas e extintas de vida, o último suspiro da Civilização Ocidental na sua tentativa vã de se proteger seu império entre os vivos.
Era contra isso que se posicionava Germaine Greer: uma ampliação nova e inesperada da moralidade da autoescolha que nos diz que somos culpados de transfobia se negamos a uma pessoa o direito de ela decidir seu próprio gênero.
Isso tudo é normal, você talvez diga, e isso não constitui um ataque à liberdade de expressão. Tem razão. É perfeitamente possível aceitar a mais recente aventura de não-discriminação e permitir que os outros se manifestem contra ela. Mas as coisas não funcionam assim. O furor quanto ao tema do transexualismo se enquadra na categoria geral da política identitária. Trata-se de quem você é, não do que você pensa. Então pensar errado, e ainda por cima dizer a coisa errada, é um ato de agressão, o equivalente a uma injúria racista ou assédio sexual no local de trabalho.
O movimento antidiscriminatório pretende ampliar aos outros a liberdade de escolher sua própria identidade; criticar isso é restringir os outros no que eles têm de mais profundo, nas “escolhas existenciais” que determinam quem eles são: é uma agressão, não apenas uma crítica. Portanto, isso precisa ser punido. Mais do que isso, precisa ser extirpado com perseguições e caças às bruxas e com a purificação oficial da linguagem erudita. Neste exato momento a União dos Estudantes da Faculdade de Estudos Orientais e Africanos da Universidade de Londres, uma das pioneiras no estudo da religião e filosofia orientais, pretende retirar Descartes, Hume e Kant do currículo, já que eles seriam apenas apologistas de seu “contexto colonialista”.
Assim, a ética da não-discriminação acaba virando um ataque à liberdade de expressão da mesma forma que a ética da discriminação religiosa – por causa do medo da heresia. Isso para mim revela que não estamos lidamos com uma característica humana profunda e irremediável. Deixar de pertencer é uma postura que forma caráter tanto quanto pertencer. Se você ameaça a identidade resultante você deve ser exposto, humilhado e, se possível, silenciado.
Uma das características mais notáveis das novas identidades, contudo, é a perseguição do herege por meio de um gesto de autoperseguição. Há um momento inicial de martírio que os aspirantes a vítimas veem como uma oportunidade de “se mostrarem ofendidos”, exibindo toda a sua vulnerabilidade. A educação tradicional tem muito a dizer sobre a arte de não se ofender.
A educação moderna tem muito a dizer sobre a arte de se sentir ofendido. Isso, para mim, é uma das realizações dos estudos de gênero, que ensinam aos alunos como se ofenderem com comportamentos, palavras, instituições e costumes, e até com fatos quando a “identidade de gênero” está em questão. Não é preciso muita educação para fazer com que uma mulher à moda antiga se ofenda com a presença de um homem no banheiro feminino. Mas é preciso muita educação para ensinar uma mulher a se ofender com banheiros femininos que um homem biológico que se declara mulher não tem liberdade para usar. Mas a educação está aí e por meros US$200 mil você consegue um diploma numa universidade de elite.
Da mesma forma, os alunos hoje são estimulados — e, mais uma vez, os estudos de gênero estão na linha de frente do movimento — a exigir “espaços seguros” onde suas vulnerabilidades cuidadosamente exaltadas não correrão o risco de dar origem a uma crise. A reação correta a isso, que seria convidar o aluno a procurar um lugar seguro na esquina, não é a que as universidades cogitam, já que todo aluno é, além disso, uma fonte de renda, e a censura não tem custo algum.
Salvando a universidade como instituição
O que me traz, finalmente, ao lugar da universidade no exercício da liberdade de expressão. Parece-me que a guerra entre os que ofendem sem querer e os especialistas em se ofender pode se dar na rua, no restaurante, no bar e na família (se é que famílias ainda podem existir) sem que percamos aquela coisa preciosa que a Civilização nos legou, que é o amor à verdade e a capacidade de buscá-la ainda que ela não nos traga consolo.
Acredito – de uma forma difícil de justificar e que é produto tanto da minha experiência pessoal quanto de qualquer argumento filosófico — que uma instituição na qual a verdade pode ser buscada imparcialmente, sem censura e sem os castigos impostos aos que discordam da ortodoxia prevalente é um bem social maior do que qualquer coisa que se possa obter por meio do controle da opinião. Aceito que talvez possa haver leis, convenções e modos limitando a expressão da opinião no mundo como um todo, naqueles lugares onde um ou outro grupo precisam reafirmar sua identidade. Aceito que é preciso tomar cuidado quando se trata de religião, moral sexual e lealdades que entram em conflito com a sua própria.
Mas se a universidade renunciar à sua vocação no que diz respeito ao debate que busca a verdade perderemos não só algo de bom com o qual todos podemos lucrar; perderemos a universidade enquanto instituição. Ela se transformar em outra coisa – um centro de doutrinação sem doutrina, uma forma de fechar sua mente sem o benefício dado pela religião, que também fecha sua mente, mas a fecha em torno de uma narrativa que dá origem a comunidades.
Deveríamos lembrar que, quando os movimentos totalitários do século XX começaram suas guerras e genocídios, as universidades estiveram entre seus primeiros alvos – lugares onde as discussões tinham de ser controladas com mais urgência. O comportamento das células estudantis anarquistas e comunistas na Rússia e os Camisas Marrons na Alemanha foi repetido por muitos dos estudantes revolucionários de Maio de 1968, na França, e são repetidos por muitos ativistas estudantis hoje.
Na verdade, minha experiência quanto a isso nas universidades não é nada animadora. Não acho que exista censura em nossas universidades além da imposta por impulso pelos alunos e que conta com o endosso de autoridades cada vez mais fracas. Mas há muito tempo há ortodoxias na universidade das quais não se pode discordar sem castigo imposto não com bases acadêmicas, e sim imposto com base em algo que pode muito bem ser descrito como ideológico.
O fato é que uma doutrina pública sempre tem peso em qualquer comunidade civilizada e espera-se que as universidades se conformem a ela, ainda que tangencialmente. No nosso caso, contudo, as universidades é que criaram a ortodoxia. A visão de mundo da esquerda progressista dentro das humanidades, da forma como ela é ensinada hoje, como uma premissa inquestionável e irreconhecível, não é, como percebemos em questões como o Brexit e a eleição de Donald Trump, uma ortodoxia na comunidade que a cerca.
Mas é uma estratégia profissional astuta se conformar com ela, concorde você ou não. Além do mais, essa visão de mundo endossa e é endossada pela comunidade de marginalizados que surge entre os alunos. A visão de mundo da esquerda progressista não está, no todo, preocupada com a situação do mundo, a despeito de suas pretensões. Ela está preocupada com a gente, com a herança ocidental. É um exercício de autoflagelação criado para mostrar em todas as disciplinas — história, literatura, arte e religião — as exuberantes deficiências morais de uma civilização que se baseia em distinções de sexo, raça, classe e orientação para fabricar uma imagem falsa de superioridade.
Ao mesmo tempo, a ortodoxia atual toma cuidado para evitar quaisquer avaliações comparativas: os estudos de gênero falarão mal do tratamento dado às mulheres e homossexuais nas sociedades ocidentais, mas nada dirão sobre o tratamento dado às mulheres e homossexuais no islamismo. Afinal, o mais importante é não ser acusado de islamofobia. A universidade deve se tornar um “espaço seguro” para muçulmanos e outros grupos marginalizados e vulneráveis — daí a campanha bem-sucedida para obrigar a Brandeis University a revogar o título honorário dado à [ativista feminista] Ayaan Hirsi Ali. Ela disse verdades sobre o Islã e, portanto, era uma ameaça aos alunos muçulmanos e ao “espaço seguro” que a universidade tem a obrigação de oferecer a eles.
Ora, eu também gostaria que a universidade fosse um espaço seguro, mas um espaço seguro para a argumentação racional sobre os temas importantes da nossa era. Em nosso mundo atual, mentiras grotescas são repetidas por medo de se ofender os vigilantes do islamismo ou a polícia do pensamento da correção política. Não podemos discutir livremente a natureza do Islã, seus textos sagrados e mitos, e seu caráter legal numa sociedade secular. A acusação de islamofobia foi criada justamente para calar o debate sobre os assuntos que mais precisam ser debatidos — por exemplo, se a apostasia, para um muçulmano, significa mesmo morte, se o adultério significa apedrejamento ou se a lei secular e o Estado-nação significam, como disse Sayyid Qutb, blasfêmia contra o Corão.
Ao não discutirmos essas coisas, fazemos um grande desserviço aos nossos compatriotas muçulmanos por não abrirmos caminhos para a integração na única comunidade que eles realmente têm. Tampouco podemos discutir quaisquer dos temas icônicos do politicamente correto — como sexo, gênero, orientação sexual. Vagamos por um mundo de profunda relatividade, mas unido por ordens absolutas — a ordem de não mencionar isso, não rir daquilo e, na presença do incerto, permanecer em silêncio. Em tudo isso estamos perdendo a noção de que algumas coisas são realmente importantes, e são importantes porque são verdadeiras, e não apenas porque um grupo de iluminados acredita nelas ou outro grupo decidiu impô-las sobre os demais. Se uma universidade defende algo, ela com certeza o defende pela ideia da verdade como luz a nos guiar na escuridão e como fonte de conhecimento.
(O texto foi originalmente publicado em 2017; Roger Scruton faleceu em janeiro de 2020)