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Os intelectuais do pós-guerra herdaram dois grandes sistemas de pensamento político para satisfazer seu desejo doutrinário: o liberalismo e o socialismo. O fato de que mesmo na Europa Oriental o “conflito mundial” que durou setenta anos era visto em termos de antagonismo entre esses sistemas é uma prova da persistência da mentalidade dicotômica. E, como são sistemas, supõe-se que sejam organicamente unidos – você não pode adotar parte de um deles sem adotar o todo.

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Mas vale dizer desde já que, do ponto de vista do presente, não há nada de mais óbvio nesses sistemas do que o fato de eles serem, em seus pressupostos, substancialmente a mesma coisa. Os dois se propõem a descrever nossa condição e a dar uma solução ideal a ela, em termos seculares, abstratos, universais e igualitários. Os dois veem o mundo em termos “dessacralizados”, em termos que, na verdade, não têm correspondência a nenhuma experiência humana duradoura, e sim apenas a paradigmas frios que assombram a mente dos intelectuais. Os dois são abstratos, mesmo quando se pretendem a uma visão da história humana. Sua história, assim como sua filosofia, não tem ligação com a circunstância concreta da ação humana e, no caso do marxismo, chega a negar a eficiência da ação humana, preferindo ver o mundo como uma confluência de forças impessoais.

As ideias pelas quais os homens vivem e encontram sua identidade local — ideias de aliança, de país ou nação, de religião e obrigação – são, para o socialista, mera ideologia e, para o liberal, uma questão de “escolha privada” a ser respeitada pelo Estado somente porque não importa realmente ao Estado. Somente em poucos lugares da Amércia e Europa uma pessoa pode se dizer conservadora e esperar ser levada a sério.

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A primeira função do conservadorismo, pois, é criar uma linguagem na qual a palavra “conservador” não seja motivo de chacota. Essa função faz parte de um empreendimento maior: o de purificar a linguagem da sloganização que dela se apoderou. Não é uma tarefa fácil. Na verdade, em certo sentido é a isso que se resume a política. Como os comunistas perceberam desde o começo, o controle da linguagem é o controle do pensamento – não do pensamento real, mas das possibilidades de pensamento.

Em parte, foi graças aos esforços dos comunistas – ajudados, claro, por uma guerra mundial que eles não se furtaram a precipitar – que nossos pais passaram a pensar em termos de dicotomias elementares. Direita-esquerda, comunismo-fascismo, socialismo-capitalismo, e assim por diante. Esses são as “regras do debate” que herdamos. A tal ponto que, se você “não é de esquerda”, isso quer dizer que você “é de direita”. Se você não é comunista, então está próximo do fascismo. Se você não é socialista, então defende o capitalismo como sistema econômico e político.

Se há uma dicotomia básica que atualmente nos confronta, é a dicotomia entre nós – os herdeiros do que resta da Civilização Ocidental e do pensamento político ocidental – e dos propagadores de dicotomias. Não existe antagonismo igual entre direita e esquerda, entre comunismo e fascismo. Há simplesmente uma aliança eterna – ainda que uma “aliança dos injustiçados” que estão sempre dispostos a violar as regras que os unem – entre os pensam em termos de dicotomias e rótulos.

A eles pertence o novo estilo da política, a ciência que, na verdade, substituiu a “política” como entendida desde sempre. A eles pertence o mundo das “forças” e “movimentos”; o mundo visto por essas mentes infantis está num estado constante de convulsão e conflito, progredindo ora à esquerda, ora à direita, de acordo com previsões aleatórias desse ou daquele teórico do destino social do homem. Mais importante do que isso, a mente dicotômica precisa de um sistema. Ela busca a proposição teórica da condição social e política do homem a fim de criar uma doutrina que se aplicará a todas as circunstâncias materiais.

Todo sistema também é universal. Um socialismo internacional é o ideal declarado da maioria dos socialistas; um liberalismo internacional é a tendência oculta do liberal. Nenhum dos sistemas pressupõe que os homens não vivem para realizar sonhos universais, e sim para viver suas relações locais; eles não vivem por uma “solidariedade” que se propaga pelo globo, e sim por obrigações que são compreendidas em termos que distinguem os homens da maioria de seus semelhantes – termos como história nacional, religião, linguagem e costumes que criam as bases da legitimidade.

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Por fim – e a importância disso não deve ser subestimada – tanto o socialismo quanto o liberalismo são, em última análise, igualitários. Ambos supõem que todos os homens são iguais em todos os aspectos relevantes para sua vantagem política. Para um socialista, os homens são iguais em suas necessidades e, portanto, deveriam ser iguais em tudo o que lhes é dado para que satisfaçam suas necessidades. Para o liberal, os homens são iguais em seus direitos e, portanto, deveriam ser iguais em tudo o que afeta seu posicionamento político e social.

Devo dizer de uma vez que nutro uma simpatia muito maior pela postura liberal do que pela socialista. Ao menos o liberalismo se baseia numa filosofia que não só respeita a realidade como também tenta conciliar nossa existência política e as liberdades fundamentais que estão sendo constantemente ameaçadas. Mas (e, seja qual for o valor dele como sistema filosófico, o sistema liberal, para mim, continua sendo apenas isso) é apenas um corretivo constante de determinada realidade, não da realidade em si. É uma sombra criada pela luz da razão, cuja existência depende de um corpo enorme que oculta essa luz, o corpo da existência política do homem.

Essa existência política desafia os quatro axiomas do liberalismo e do socialismo. Ela não é secular, e sim espiritual, não é abstrata, e sim concreta, não é universal, e sim específica, não é igualitária, e sim cheia de diversidade, desigualdade, privilégio e poder. E que seja assim.

Digo que ela é espiritual porque acredito que o mundo, como compreendido pelo homem — o Lebenswelt — foi lhe cedido em termos que exibem o selo inegável das obrigações que escapam à compreensão. O homem nasce num mundo que lhe pede um sacrifício e que lhe promete recompensas obscuras. Esse mundo é concreto — ele não pode ser descrito o idioma não-histórico abstrato dos teóricos socialistas ou liberais sem que se tire a camada de sentido que o torna perceptível. O mundo dos socialistas e liberais são como esqueletos mortos dos quais foram retiradas as peles. Mas ele mundo real, vivo e social é uma coisa específica, uma coisa vital e deve, se pretende prosperar, disseminar a vida das formas mais variadas e desiguais entre as partes. A igualdade abstrata do socialismo e do liberalismo não tem lugar neste mundo, e só pode ser concretizada por um controle tão opressivo que se autodestrói.

A fim de justificar e vencer essa guerra com a realidade, a mentalidade intelectual desenvolveu uma linguagem aniquiladora para descrevê-la. Todas as realidades políticas são descritas sem que se dê atenção à história, como se elas surgissem em qualquer lugar, a qualquer hora. Assim, o fenômeno peculiarmente polonês do “Solidariedade” é espremido para se enquadrar em formas abstratas criadas pela teoria da “democracia liberal”. Ele é visto até mesmo como uma espécie de socialismo, sobretudo pelos intelectuais franceses para os quais é possível chamar tudo o que existe de bom de socialista. O exemplo é assustador. Se voltarmos à realidade, temos de procurar uma linguagem que seja compassiva em relação ao mundo humano.

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A generalização, contudo, nos é útil justamente porque, por trás dela, há milhares de especificidades ocultas. Refiro-me à ideia de legitimidade. Para o bem da verdade, os liberais tentaram oferecer uma alternativa à ideia de legitimidade – uma alternativa para desafiar os direitos históricos que haveriam de ser extintos pela vitória do sistema liberal. O maior problema do comunismo é que ele ignora toda a ideia de legitimidade, desprezando-a com uma gargalhada ameaçadora. Não é da minha vontade discutir com o liberal, cujas ideias devem acabar por ser incorporadas a qualquer teoria filosófica do governo legítimo. Queria apenas sugerir uma alternativa não-liberal que seja livre da teorização.

Entre as muitas dicotomias que pulverizaram a inteligência contemporânea, a que se estabeleceu entre legitimidade e legalidade (acho que por causa de Weber), entre a autoridade “tradicional” e “racional-jurídica”, é a mais danosa. Somente se a lei for compreendida como um sistema abstrato é que a legalidade pode ser considerada uma legitimidade alternativa – e não uma percepção específica. Mas a lei abstrata, de acordo com esse raciocínio, não tem força duradoura.

A legitimidade é simplesmente o direito ao exercício do poder político. E esse direito inclui o exercício da lei. O que confere tal direito sobre o povo? Alguns responderão “a escolha desse povo”. Mas essa ideia ignora o fato de que dispomos de instrumentos primitivos para mensurar as escolhas, e essas escolhas tratam apenas das coisas fortuitas. Além disso, o que leva as pessoas a aceitarem a “escolha” que lhes é imposta por seus semelhantes se não uma sensação anterior de que eles estão unidos por uma ordem legítima?

O trabalho do conservador é encontrar concretamente as bases da existência política e trabalhar pelo restabelecimento do governo legítimo num mundo que foi varrido por abstrações intelectuais. Nosso melhor modelo de ordem legítima é aquele historicamente criado por pessoas unidas por uma sensação de destino, cultura e valores comuns que governam suas vidas.

A intelligentsia liberal no Ocidente, assim como a intelligentsia comunista no Oriente, se recusa a aceitar que dádiva da existência humana. Elas transformaram a vida, sobretudo a vida política, numa espécie de experimento intelectual. Ao ver a infelicidade humana, elas perguntam “o que houve de errado?” E sonham com um mundo no qual um ideal abstrato de justiça se tornará realidade. Elas procuram em todos os cantos por uma solução única que resolverá os conflitos e restaurará a harmonia desde o Polo Norte até o Equador. Daí a incapacidade do liberalismo de dar uma solução para os que sofrem com a ilegitimidade totalitária.

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O liberal começa com o mesmo pressuposto do totalitário, isto é, o de que a política é um meio para se alcançar um fim e este fim é a igualdade – não a igualdade material, mas a igualdade moral, a igualdade “de direitos”. A democracia é o resultado necessário desse ideal liberal, uma vez que a democracia é a concretização da igualdade política. Para o liberal, a única forma de se opor ao totalitarismo é por meio de uma democratização lenta e regular da ordem social.

E quem há de duvidar sobre o apelo dessa ideia? Mas ela ignora um ato inescapável. Não posso ver minha vida como o liberal deseja ver a vida política. Não posso ver minha vida como um experimento. Não posso dizer que minhas obrigações são criadas totalmente por minhas ações livres e responsáveis. Nasci numa situação que não criei e desde o nascimento tenho obrigações que não criei para mim. Minha dívida para com o mundo não é de justiça, e sim de compaixão, e só quando reconheço isso é que posso ser eu mesmo. Porque só em relação à minha situação específica é que posso formar os valores e percepções sociais que me dão força, ao menos, para experimentar a liberdade.

Qualquer narrativa sincera sobre nossa sensação de legitimidade deve começar reconhecendo que a misericórdia precede a justiça, tanto em nossa vida quanto em nosso pensamento, e que, enquanto nos sentirmos unidos a um lugar e povo que consideramos “nosso lugar e nosso povo”, as ideias de justiça e a superstição da igualdade não significam nada para nós. Mas esse apego a um lugar e povo não é fruto da escolha: não é resultado de uma reflexão liberal qualquer sobre os direitos do homem, tampouco é concebido com o espírito científico tão caro ao programa socialista. Ele nos é dado no próprio tecido de nossa existência social.

Nascemos com obrigações para com a família e nos vendo como parte de um todo maior. Não reconhecer a prioridade dessa experiência é ceder à maior premissa do pensamento totalitário: a de que a existência política é uma experiência de longo prazo. Há uma visão de mundo específica, e ainda popular entre os intelectuais de esquerda do Ocidente, de que o sistema soviético foi “o socialismo que deu errado”. Esse pensamento expressa o maior perigo político do nosso tempo, que é a crença de que a política envolve uma escolha entre dois sistemas, como meios para se alcançar um fim, de modo que um sistema “dá errado” e outro “dá certo”. A verdade é que o socialismo é errado justamente porque ele pode dar certo – justamente porque ele vê a política como meio de se alcançar um fim. A política é uma questão de existência social cuja base são as obrigações de acordo com as quais nossas identidades sociais são formadas. A política é uma forma de associação que não é um meio de se alcançar um fim, e sim um fim em si mesma. Ela se baseia na legitimidade e a legitimidade reside na sensação de que somos produtos de tudo o que herdamos.

Daí porque, se pretendemos redescobrir as raízes da ordem político, temos de tentar endossar as obrigações não-escolhidas que nos conferem nossa identidade política e que busca um Polo que não pode ser governado por Moscou ou por um morador das ilhas Falkland que não pode ser legitimidade governado por Buenos Aires.

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Vale parar para mencionar outra generalização que tem servido aos intelectuais progressistas de esquerda em seu intento de eliminar o passado e de encontrar uma base para a obrigação política que olhe apenas para o presente e o futuro. Trata-se da ideia de “povo” como fonte da ordem legítima. A ideia geralmente vem acompanhada pela fantasia de que o intelectual tem uma capacidade especial de audição capaz de articular “a voz do povo”. Essa automentira, que persiste inalterada desde a Revolução Francesa, expressar a vontade do intelectual de se reunir à ordem social da qual seu pensamento tragicamente o separou. Ele quer se redimir da sua “marginalização”. Infelizmente, contudo, ele consegue se unir não à sociedade, e sim a outra abstração intelectual – o “povo” – criado de acordo com predicados teóricos impecáveis, justamente para esconder a verdade intolerável da realidade cotidiana. “O povo” não existe. E, mesmo que existisse, ele não teria autoridade sobre nada, já que não há uma base concreta a lhe conferir legitimidade. Ninguém pode falar pelo povo. Ninguém pode falar por todos. A verdade, contudo, sofre para ser dita e pode se expressar por meio dessa ou daquela voz.

Ao contrário do “povo”, a nação não é uma abstração. É uma realidade histórica. Ela se reflete no idioma, costumes, religião e cultura. Ela contém em si a vocação de uma ordem legítima. Isso, acredito, deveria ser lembrado até mesmo por aqueles – entre os quais a maioria de nós está incluída – que hesitam em adotar o nacionalismo explícito que emergiu do Congresso de Viena e que primeiro pacificou e depois destruiu nosso continente.

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Mas por acaso, perguntará você, existe outra fonte de legitimidade – uma que não exija o apoio das obrigações que parecem fazer com que nos comprometamos com tanto tendo por base tão pouco? Será que não há legitimidade a ser encontrada na democracia, legitimidade essa que um dia substituirá o apelo da misericórdia?

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É uma pergunta que existe uma resposta ampla. Mas duas coisas precisam ser ditas a respeito dela. Primeiro, “democracia” é um termo impreciso e ninguém sabe ao certo o que ele significa e como garanti-lo. Devemos esperar até que todos os paradoxos das escolhas sociais sejam resolvidos antes de formularmos nossos compromissos políticos?

Depois, aquilo que as pessoas admiram na democracia não é a escolha coletiva periódica – afinal, o que há de admirável no fato de que uma maioria ignorante de vez em quando opta por ser guiada por um novo partido, rumo a objetivos que ela não entende bem, assim como não entendia os objetivos do partido anterior? As pessoas admiram são certas virtudes políticas associadas às democracias britânica e norte-americana, mas que existiam antes da democracia e podiam se estabelecer em qualquer lugar sem ajuda dela. Essas virtudes são as seguintes:

(i) Poder limitado: ninguém pode exercer o poder ilimitado se seus projetos podem ser extintos por uma eleição.

(ii) Governo constitucional: mas o que sustenta a constituição?

(iii) Justificação por consentimento.

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(iv) A existência de instituições autônomas e da livre associação que as torna possíveis.

(v) O Estado de direito ou, em outras palavras, a possibilidade de judicialização de todos os atos, mesmo quando um ato é oficial – mesmo quando se age em nome de um poder soberano.

(vi) Oposição legítima: em outras palavras, o direito de criar partidos, de publicar opiniões que se opõem ao governo e o direito de disputar abertamente o poder.

Os teóricos políticos, claro, conhecem essas características e aqui não é lugar para discuti-las detalhadamente. Mas vale resumir a importância delas. Juntas, essas seis características do governo significam não democracia, e sim limitação constitucional. Sendo mais explícito, elas significam a separação do Estado (que é o locus da autoridade legítima) e daqueles que detêm o poder por virtude do Estado. Os que exercem o poder podem ser julgados pelas próprias instituições que ocupam.

Essa é uma parte fundamental da verdadeira ordem política. E também é uma parte indispensável de qualquer legitimidade totalmente elaborada. Na verdade, podemos ver a legitimidade do Estado contemporâneo como algo composto de duas partes: uma raiz que é o que une as pessoas numa única entidade política; e uma árvore que cresce a partir dessa raiz, que é o Estado soberano, organizado de acordo com os princípios que defendi. Nesse Estado, o poder é exercido sob condições que o limitam e de uma forma que o torna responsável por aqueles que talvez sofram sob seu exercício. Esse Estado revela a verdadeira prosperidade de uma “sociedade civil” – uma vida pública aberta, digna e marcada por uma legalidade instintiva. Tal legalidade nasce da legitimidade acumulada na raiz, e a expressa. É essa parte visível da pólis legítima que acabou evidentemente destruída pelas doutrinas políticas do nosso tempo. Mas sua destruição foi possível nem tanto pela eliminação da democracia, e sim pelo enrijecimento da fonte espontânea do sentimento legitimo do qual ela se alimenta.

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A democracia pode, claro, sustentar as seis virtudes políticas que mencionei. Mas ela também pode destruí-las. Porque todas dependem de uma coisa que a democracia não pode dar e que está sugerida na questão que acrescentei ao item (ii): autoridade. O que leva as pessoas a aceitarem e acatarem os resultados de uma eleição democrática, de uma lei ou das limitações personificadas num cargo? O que, em resumo, dá origem ao “espírito público” que curiosamente desapareceu das instituições governamentais em boa parte da Europa contemporânea? O respeito, claro – no caso de instituições, processos, poderes e privilégios de que se goza. Esse respeito nasce de uma sensação de que esses poderes, privilégios e processos refletem algo que é realmente “nosso”, algo que surge do laço social que define nossa condição. Aqui está a autoridade do real que conteria em si um resquício da aliança que define meu lugar.

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Mas o que é a legalidade real? Já sugeri a existência de uma diferença entre a lei abstrata e concreta, e indiquei que apenas a última pode preencher o vácuo de legitimidade que atualmente se apresenta diante de nós. A lei concreta encontra seu melhor exemplo na tradição inglesa do direito comum – a lei criada por juízes em reação a problemas concretos que surgem diante deles e na qual os princípios surgem lentamente, sujeita à disciplina dura da realidade. Qualquer lei que seja o ponto mais alto do raciocínio jurídico, baseada em precedentes e autoridades, exibe o selo de um decreto histórico; ela também continua capaz de reagir à realidade dos conflitos humanos e constitui uma tentativa sincera de resolvê-los, e não de ditar uma solução intelectualmente satisfatória que talvez seja considerada inaceitável às partes. Esse tipo de lei resume a fonte real da autoridade legal, que é a crença do querelante de que a justiça será feita não abstratamente, e sim seu caso específico, à luz das circunstâncias específicas dele e talvez unicamente dele. Para que a lei concreta exista, é preciso que haja independência judicial. E uma vez que haja independência judicial, temos tudo o que se pode desejar da bandeira dos “direitos do homem”. Porque assim o que temos é a segurança de que a justiça pode ser feita, independentemente do poder que busque extingui-la.

Há duas grandes ameaças à lei concreta. Uma é a abolição da independência judicial. Isso é conseguido pelo Partido Comunista, no interesse de uma “justiça abstrata” – uma “igualdade” de recompensas – que necessariamente entra em conflito com as circunstâncias concretas da existência humana. A segunda ameaça é a proliferação da lei estatutária – lei que nasce de decretos, criada e recriada em reação à ideia dos políticos e seus conselheiros. Essas leis têm defeitos incorrigíveis: o Partido Comunista se baseia toda a sua ideia de legalidade na criação de tais leis, ao mesmo tempo em que tira o único instrumento – a independência judicial – que poderia transformá-las em leis de verdade, e não em instruções militares.

O liberalismo sempre admirou a importância da legalidade. Mas a legalidade liberal é uma legalidade abstrata, preocupada com a defesa de uma ideia puramente filosófica de “direitos humanos”. De que valem os direitos humanos sem o processo judicial que o sustentará? Além disso, ao apoiar sua fé numa abstração, será que não se dá ao inimigo um bastião contra o reconhecimento de sua ilegitimidade? Não é possível para ele dizer que defende os direitos humanos – só que direitos diferentes? (O direito ao trabalho, por exemplo, ou o direito a uma parte da produção). Quando se vê a Revolução Francesa, nota-se como foi fácil para a doutrina dos “direitos humanos” se transformar num instrumento da mais reprovável tirania. Basta que se faça como os jacobinos – abolindo o judiciário e o substituindo por “tribunais populares”. Daí qualquer coisa pode ser feita a qualquer um, em nome dos Direitos dos Homens.

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Em reação ao liberalismo, portanto, é necessário buscar a restauração das circunstâncias concretas da justiça. Mas a lei concreta que venho defendendo não é algo que um socialista ou liberal aprovariam. Ela preserva desigualdades, confere privilégios e justifica o poder. Isso, contudo, também é seu ponto forte. Porque sempre haverá desigualdades: sempre haverá privilégios e poder. Essas coisas nada mais são do que características de toda ordem política real. Como desigualdades, privilégios e poderes existem, o certo é que eles deveriam coexistir com a lei que os justifique. De outro modo, eles passam a existir sem justificação, e são incontroláveis.

Sir Roger Scruton era filósofo e escritor.

© 2020 The Imaginative Conservative. Publicado com permissão. Original em inglês