Para a maioria das mães, o anúncio da gravidez é algo reservado apenas para o marido e parentes próximos. Nenhum tipo de publicidade está envolvida. Algumas celebridades brasileiras estão mudando isso, transformando a gravidez em uma oportunidade de lucrar — às vezes centenas de milhares de reais. O que levanta a dúvida: é ético submeter crianças que ainda nem nasceram a esse espetáculo?
No dia 30 de abril, a apresentadora de TV Sabrina Sato anunciou no Instagram que estava grávida. Poderia ser apenas uma comemoração comum, compartilhada com os amigos e fãs, mas não aconteceu por acaso. Ela negociou o anúncio com uma marca de testes de gravidez e faturou R$ 150 mil, segundo o site Notícias da TV. Seu noivo, o ator Duda Nagle, também apareceu no vídeo publicitário, que já teve mais de 4,9 milhões de visualizações.
Não parou por aí. Internada no Hospital Albert Einstein por causa de uma situação de risco na gravidez, Sabrina decidiu capitalizar em outra frente. Por isso, o seu programa na TV Record no último sábado (5) foi gravado no hospital, em uma entrevista com o apresentador Rodrigo Faro.
Os dois fizeram suspense para anunciar o sexo do bebê — é uma menina — e garantiram a sua maior audiência em São Paulo desde a estreia do programa, em abril de 2014. O programa, que antes perdia para o SBT, foi vice-líder, e teve praticamente o dobro da sua média de audiência.
Repercussão
Algumas pessoas criticaram o excesso de exposição. O apresentador Britto Jr. fez duras críticas à ex-colega de TV Record: "Tudo por dinheiro! Nem que seja preciso passar vergonha e correr o risco de revelar ao público que não há neurônios na caixola", disparou no Twitter, no dia 6 de maio.
O colunista Maurício Stycer considerou a exposição da gravidez de Sabrina Sato um “reality constrangedor”.
“Ninguém tem mais vergonha de nada. O recato se tornou mercadoria rara. Apresentadores de televisão parecem considerar que têm a obrigação de dividir com o público tudo que acontece em suas vidas privadas. Tudo mesmo.”, disse Stycer em seu blog.
Os pioneiros
Sabrina Sato não foi a primeira a revelar a gravidez com posts patrocinados. Em fevereiro de 2017, outro casal famoso dividiu a opinião dos seguidores ao anunciar a gravidez em uma campanha publicitária. O cantor Michel Teló e a atriz Thaís Fersoza revelaram a espera do segundo filho pelo Instagram.
Há 20 anos, era a vez da apresentadora Xuxa ir ao programa do Faustão para anunciar a gravidez. Atualmente, de forma irônica, Xuxa está na TV Record, assim como Sabrina Sato.
Para Ivan Paganotti, pesquisador da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, a estratégia de Sabrina Sato é fruto de uma escolha legítima. "Com os dois pais sendo consultados para fazer parte da campanha publicitária, não vejo problema. Provavelmente ela revelou a informação antes para as pessoas próximas, e escolheu essa maneira para informar o público", disse.
Paganotti acredita que o maior problema é o da exposição de crianças já nascidas, já que sobre o bebê que ainda está por nascer não se tem muitos detalhes e informações a serem expostas.
A polêmica em torno de uma campanha publicitária como essa pode ser muito boa para a empresa que a utiliza. Se a campanha ficasse restrita à rede social da apresentadora, mesmo com seus muitos seguidores, ou se fosse discutida apenas em notícias sobre celebridades, teria tido menos sucesso. Com a discussão se ampliando para outros círculos da sociedade, a marca tem mais chances de ficar na memória de potenciais consumidores. “Às vezes, fomentar a polêmica é benéfico à marca”, afirmou Paganotti.
Mas se elas ganharam dinheiro e não prejudicaram ninguém, qual o problema com os anúncios de algo que, em teoria, deveria ser apenas pessoal?
Ao mesmo tempo, por que tanta gente sente um desconforto genuíno com esses casos — e outros similares?
Tudo à venda
Talvez o filósofo americano Michael Sandel, famoso por ministrar o curso “Justiça”, na Universidade Harvard, tenha a resposta. E a resposta tem a ver com o fato de que, segundo ele, todas as relações, sejam emocionais, sejam cívicas, estão cada vez mais sendo tratadas pela lógica da economia de mercado.
Não se trata evidentemente de demonizar a economia de mercado. Sandel nunca deixou dúvidas sobre como, com todos os seus defeitos, o mercado ainda é a forma mais eficiente de organizar a produção e distribuir bens. As economias de mercado levaram a prosperidade a países que viviam na miséria.
Os riscos apontados por ele são de outra natureza. Ele alerta para o fato de que, por ser tão eficiente na economia, a lógica econômica está invadindo todos os outros domínios da vida em sociedade.
“Vivemos numa época em que quase tudo pode ser comprado e vendido. Nas três últimas décadas, os mercados — e os valores de mercado — passaram a governar nossa vida como nunca. Não chegamos a essa situação por escolha deliberada. É quase como se a coisa tivesse se abatido sobre nós”, escreveu Sandel em seu livro “O que o dinheiro não compra”, Ed. Civilização Brasileira.
Por exemplo, qual o mal em alunos do primário serem pagos para lerem mais? Nos EUA, mais especificamente em Dallas, uma escola resolveu pagar aos alunos US$ 2 por livro finalizado, como forma de estimular a leitura. Todos saem ganhando, como no caso de Sabrina Sato, certo?
Não é bem assim. Existem motivos para ficarmos preocupados com o fato de estarmos caminhando para uma sociedade em que tudo está à venda.
Sandel explica:
“Numa sociedade em que tudo está à venda, a vida fica mais difícil para os que dispõem de recursos modestos. Quanto mais o dinheiro pode comprar, mais importante é a afluência (ou a sua falta). Se a única vantagem da afluência fosse a capacidade de comprar iates, carros esportivos e férias no exterior, as desigualdades de renda e riqueza não teriam grande importância. Mas, à medida que o dinheiro passa a comprar cada vez mais — influência política, bom atendimento médico, uma casa num bairro seguro, e não numa zona de alto índice de criminalidade, acesso a escolas de elite, e não às que apresentam maus resultados —, a questão da distribuição da renda e da riqueza adquire importância muito maior. Quando todas as coisas boas podem ser compradas e vendidas, ter dinheiro passa a fazer toda a diferença do mundo.”
O problema do dinheiro envolvido em questões onde teoricamente não deveria estar é o relaxamento dos princípios. Se tudo está à venda, do anúncio da gravidez que rejeita a privacidade pessoal ao prazer da leitura, o que impede que princípios e valores que nos são mais caros sejam negociados?
Como diz Sandel, “algumas das boas coisas da vida são corrompidas ou degradadas quando transformadas em mercadoria. Saúde, educação, família, natureza, arte, deveres cívicos e assim por diante. São questões de ordem moral e política, e não apenas econômicas. Para resolvê-las, precisamos debater, caso a caso, o significado moral desses bens e sua correta valorização.”
Justiça do Trabalho desafia STF e manda aplicativos contratarem trabalhadores
Parlamento da Coreia do Sul tem tumulto após votação contra lei marcial decretada pelo presidente
Correios adotam “medidas urgentes” para evitar “insolvência” após prejuízo recorde
Milei divulga ranking que mostra peso argentino como “melhor moeda do mundo” e real como a pior
Deixe sua opinião