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No imaginário coletivo, a música erudita ainda é uma espécie de “reserva de excelência” do mundo das artes. Afinal, o rigor que envolve a realização de óperas e concertos, pelo menos em tese, não dá brechas para truques, embromações ou enganadores. Trata-se, portanto, de um meio norteado pelo refinamento técnico e a preservação de criações centenárias. Ou melhor: tratava-se.
A exemplo do que acontece em quase todas as outras dimensões da vida atual, a música popularmente conhecida como “clássica” também vem sendo contaminada pela cultura do politicamente correto. E os sintomas dessa invasão incluem a deturpação de obras em nome da “correção histórica”, o cancelamento de artistas assumidamente conservadores e a proposta de abolição da meritocracia na seleção de instrumentistas.
O patrulhamento, como sempre, começa com detalhes aparentemente pequenos. Como a revisão e substituição de palavras “problemáticas” do ponto de vista identitário. No ano passado, o celebrado maestro italiano Riccardo Muti, regente da Orquestra Sinfônica de Chicago, denunciou a pressão que recebeu para trocar termos considerados racistas e misóginos do libreto da ópera ‘O Baile de Máscaras’, escrita em meados do século 19 por seu conterrâneo Giuseppe Verdi (1813-1901) – de cuja obra ele é especialista.
Muti se recusou a fazer as alterações, propostas por movimentos sociais e até por integrantes da própria orquestra. Mas foi obrigado a se justificar para a opinião pública, como se estivesse cometendo um ato criminoso ou, no mínimo, de caráter duvidoso. Em entrevista ao jornal italiano Corriere dela Serra, ele afirmou: “Você não pode mudar a História. Ela deve ser mantida em sua essência, para que as próximas gerações possam saber. Não ajudamos os jovens dessa forma, pelo contrário”.
Outro alvo recente dos lacradores eruditos foi a encenação de Franco Zerifelli (1923-2019) para ‘Turandot’, a última ópera composta por Giacomo Puccini (1858-1924). Concebida por Zefirelli nos anos 1980, e sempre um sucesso de bilheteria desde então, a montagem retornou ao lendário palco do Metropolitan Opera de Nova York em 2021 – mas, dessa vez, sem a consagração praticamente unânime de outros tempos.
Para críticos como Gabrielle Ferrari, a produção – cuja história gira em torno de uma princesa chinesa – é um “anacronismo”. “Ela é antiga, cansada e extremamente problemática. Me senti quase doente ao ver aqueles atores brancos usando perucas ‘chinesas’. (...) A ópera é repugnantemente racista, piorada pelo uso consistente de um elenco embranquecido com maquiagem amarela. E seu tratamento das mulheres é absurdamente insultante”, escreveu, em um texto publicado no site especializado Parterre.
Nas universidades, também já existe um questionamento da “música europeia branca do período escravocrata”. O que poderia até ser saudável, por trazer à tona produções relevantes ainda não pesquisadas e analisadas. No entanto, o radicalismo de quem propõe a chamada “descolonização da música e dos estudos musicais” tem tornado o ambiente acadêmico insuportável para os que ainda se interessam pela tradição.
É o caso do conceituado musicólogo e historiador britânico J.P.E. Harper-Scott, que em setembro do ano passado renunciou ao seu cargo de professor na Royal Holloway, uma das faculdades da Universidade de Londres. “As universidades se tornaram ambientes dogmáticos, em vez de críticos. E a retórica da descolonização não admite dúvidas, nem ser desafiada”, disse, na ocasião.
Detalhe: Harper-Scott não pode ser classificado, nem de longe, como um homem conservador, tampouco direitista. Muito pelo contrário. Seus trabalhos acadêmicos estabelecem conexões entre as técnicas de análise musical e o pensamento de intelectuais como Jacques Lacan e Theodor Adorno (cultuados pelos progressistas), além de serem marcados por uma crítica ao neoliberalismo.
Mesmo a Julliard, talvez a escola de artes mais badalada dos Estados Unidos, aderiu aos preceitos do D.E.I. (diversidade, equidade e inclusão). A instituição, voltada para o ensino de música, dança e dramaturgia, há pouco tempo criou um “espaço de cura”, exclusivo para alunos negros. “Já é hora de a brancura da teoria musical ser examinada, criticada e remediada”, diz um documento divulgado pelo conservatório da entidade.
Outra iniciativa de D.E.I. envolvendo a música erudita vem sendo desenvolvida pela Liga das Orquestras dos EUA e a Fundação Mellon – criada em 1969 pelos herdeiros do banqueiro, político e filantropo norte-americano Andrew W. Mellon (1855-1937). Desde 2019, as duas instituições oferecem bolsas, no valor de U$ 75 mil (R$ 378 mil na cotação atual) cada, para sinfônicas dispostas a participar, por um período de três anos, de programas administrados por consultores da área de inclusão e diversidade.
O projeto inclui a adoção de um guia intitulado “Práticas promissoras: ações que as orquestras podem desenvolver para avançar em direção à equidade”. O documento causou polêmica na comunidade musical por não apenas tratar da questão da desigualdade na formação dos elencos, mas também estimular que o repertório dos grupos seja orientado pela consultoria.
Fim da audição às cegas pode representar duro golpe na meritocracia
A grande controvérsia, no entanto, diz respeito à proposta de abolição das audições às cegas, muito utilizadas pelas orquestras para selecionar instrumentistas e cantores. Difundida a partir do final dos anos 1960, para evitar julgamentos subjetivos e preconceituosos, a prática foi comprovadamente responsável pela inclusão de grupos sub-representados no ambiente da música erudita (especialmente mulheres e asiáticos). Os negros, porém, seguem em menor número.
Principal defensor do fim dos “testes com biombos”, como também são chamadas essas avaliações, o crítico Anthony Tommasini, do jornal The New York Times, destaca que a filarmônica da cidade, por exemplo, tem apenas um negro em suas fileiras – quando as audiências às cegas começaram por lá, em 1969, eram dois.
Os defensores desse tipo de avaliação, por sua vez, acreditam que sua extinção representa o fim da meritocracia na música. A solução para corrigir as desigualdades, segundo eles, continua sendo a educação musical em comunidades carentes (um expediente já adotado há décadas e cujo investimento poderia ser maior).
“Houve discriminação no passado, mas já não estamos na década de 1940”, disse o violinista Joseph Striplin para o site City Journal, em uma entrevista para uma matéria sobre o suposto racismo no mundo da música clássica.
Negro e de origem pobre, ele já tocou em várias sinfônicas norte-americanas importantes (incluindo a itinerante do Metropolitan Opera, de Nova York) e atualmente é diretor musical da orquestra comunitária de Grosse Point, no estado do Michigan. E garante: “As orquestras ficariam mais do que felizes em ter mais negros”.
Encenadores brasileiros têm apostado em releituras engajadas de obras clássicas
Questionado sobre o modismo de “corrigir” os textos originais de óperas tradicionais, o maestro Leandro Oliveira – curador do instituto Inhotim, em Minas Gerais, e autor do livro ‘Falando de Música: Oito Lições sobre Música Clássica’ (2020) – cita as ideias do musicólogo americano Richard Tarunskin (1945-2022) para refletir acerca do assunto. De origem judia, Tarunskin teorizou, entre outros temas, sobre a retirada de elementos antissemitas presentes na obra de Johann Sebastian Bach.
“As palavras têm significado, e Taruskin chama a atenção para o fato de que elas podem, sim, ofender parte do público. E, afinal, ele pergunta, para quem se faz música, senão para essas pessoas, que se movem, comovem e afetam por aquilo que está no palco? Que interesse sádico seria esse de, para defender um compositor morto, ofender aqueles que, vivos, pagam pelos ingressos e buscam conforto nas salas de concerto?”, diz Oliveira.
O maestro, no entanto, prefere adotar uma solução equilibrada: acrescentar palestras e textos sobre a performance que ofereçam ao espectador a contextualização das referências ditas ofensivas. “Sempre que sou consultado, sugiro optar pela estratégia de preservar o texto original. Mas também proponho dar luz às questões problemáticas, aproveitando as circunstâncias para promover o letramento sensível do público, e não sua anestesia”, afirma.
O crítico musical, escritor e tradutor literário Irineu Franco Perpétuo também defende a permanência de termos “inadequados” nos libretos dos clássicos. “Não vale a pena deformar essas obras. Em vez de trair os textos originais, quem está incomodado deve investir em óperas contemporâneas, que incorporem os temas atuais. Você não precisa ser escravo do repertório canônico se ele não te satisfaz’’, diz o autor de livros como ‘História Concisa da Música Clássica Brasileira’ (2018) e ‘Populares e Eruditos’ (2001).
Outro caminho, segundo Perpétuo, é “resolver” esses problemas na encenação. Nesse sentido, o cenário brasileiro da ópera tem se mostrado bastante engajado, vide montagens como a de ‘O Guarani’ (de Carlos Gomes), voltada para exaltação das causas indígena, e de ‘O Crepúsculo dos Deuses’ (Richard Wagner), com referências a divindades afro-brasileiras.
“Reinterpretar faz parte da natureza e da história da ópera. É o que faz de um clássico um clássico. As pessoas podem gostar ou não dessas recriações, mas não faz sentido deslegitimar um trabalho por causa disso. É até uma ingenuidade”, afirma o crítico.
Oliveira também recorre à essência do gênero para comentar esse tipo de reinterpretação. “Estou longe de achar que todo gesto artístico é necessariamente político. Mas trazer a política ao palco, em ópera, é uma coisa mais antiga do que andar para frente. Basta lembrar que Giuseppe Verdi foi nomeado senador vitalício pelo engajamento de suas obras no projeto da reunificação italiana, no século 19”, diz.
Questionado sobre a proposta de derrubar os testes com biombo, o maestro acredita que a tendência pode ser positiva. “A questão é que, a partir de certo nível técnico, as distinções para avaliação da alta performance, em música, se estabelecem por parâmetros que dizem mais respeito a gosto do que efetivamente à proficiência. Nos termos da qualidade, portanto, não há motivos para temor. O nível alto pode ser garantido sempre”, afirma.
“As pessoas precisam entender que a música erudita não é um santuário da qualidade, como se pensa. Isso é uma falácia”, diz Irineo Franco Perpétuo. Ele conta que sempre teve uma simpatia pelos testes cegos, mas hoje em dia prefere ouvir a opinião de instrumentistas mulheres ou de cor negra.
Mulher e negra, a clarinetista Luciana Silva é defensora da utilização dos biombos em processos seletivos. “Acabar com essa modalidade pode prejudicar nossas conquistas. Além do mais, o maior problema das orquestras no Brasil não é o machismo ou o racismo. É o favorecimento, o ‘panelismo’, o ‘amiguismo’”, afirma a instrumentista e professora, cujo currículo inclui passagens por diversas orquestras e a fundação da Associação Brasileira de Clarinetistas e Claronistas.
Orquestras e universidades se tornaram ambientes inóspitos para músicos conservadores
A perseguição e o cancelamento de maestros e músicos conservadores ou ligado a ideologias de direita também tem sido frequente no ambiente das sinfônicas e, principalmente, da academia.
Em 2021, por exemplo, o pianista e compositor chinês Bright Sheng acabou se retirando da Universidade de Michigan, onde lecionava, porque exibiu para os alunos o filme ‘Otelo’ (1965), baseado na obra de Shakespeare e que traz o ator Laurence Olivier usando uma maquiagem escurecida para parecer um mouro – a prática, chamada de blackface, é considerada altamente racista.
Sheng queria apenas mostrar as ligações entre a composição musical e as peças do autor inglês, mas sua proposta chocou o campus. E, mesmo se desculpando publicamente, o professor foi tão pressionado por estudantes e outros docentes que preferiu deixar a instituição.
A lista de ocorrências semelhantes só tem crescido nos EUA, berço da cultura woke. Emily Skala, flautista principal da Orquestra Sinfônica de Baltimore, foi demitida porque a administração discordava de seus pensamentos sobre a epidemia da Covid-19. Taxada de negacionista, ela ganhou o bilhete azul graças à “politica de disciplina progressiva” do grupo, que permite encerrar o contrato dos músicos caso desaprove seu comportamento.
Outro caso de repercussão nacional envolveu o maestro Dennis Prager, também conhecido por atuar como radialista e colunista conservador [você pode conferir textos dele aqui na Gazeta do Povo, clicando neste link]. Convidado para reger um concerto da Orquestra Sinfônica de Santa Mônica, na Califórnia, ele foi vítima de uma campanha difamatória por promover opiniões supostamente preconceituosas e intolerantes. Prager, porém, conseguiu usar seus canais de comunicação para reverter a situação e ganhou apoio da sociedade e do meio musical para participar do evento.
No Brasil, uma situação como as descritas acima teve como protagonista a pianista Tatiane Costa, de 27 anos. Em 2018, enquanto cursava o bacharelado em Música na Universidade Estadual Paulista (Unesp), ela passou por maus bocados quando confessou admirar o então candidato a presidente Jair Bolsonaro. Foi o suficiente para que alunos e professores iniciassem uma onda de posts em redes sociais para atacar e silenciar Tatiane.
“Na época eu nem sabia direito o que era direita e esquerda. Mas me incluíram numa lista de músicos neofascistas, criada para envergonhar e expulsar as pessoas do mercado de trabalho”, afirma a instrumentista.
O cancelamento acabou empurrando Tatiane definitivamente para o campo conservador. Hoje ela faz parte da ala jovem do Partido Liberal e até pensa em se candidatar a vereadora nas próximas eleições, na cidade paulista de Sorocaba. Para ela, a era do politicamente correto representa uma ameaça para a continuidade da música erudita – e não somente devido ao fim da meritocracia e a pressão para que as orquestras adotem repertórios engajados.
“Essas pessoas estão dando um tiro no próprio peito, porque a lacração já começou a afastar o público fiel do gênero, que não quer saber de engajamento político. Será que elas não veem que, desse jeito, o meio da música clássica pode um dia acabar?”, diz.