Quais critérios objetivos permitem classificar a disforia de gênero como condição mentalmente saudável e a disforia de integridade corporal como condição mental não saudável, sendo ambas condições tão similares?| Foto: BigStock
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Entrará em vigor, no dia 01 de janeiro de 2022, a nova revisão da Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde, a CID-11. A CID é um manual publicado pela Organização Mundial da Saúde e sua utilidade fundamental é guiar serviços de saúde em atividades estatísticas e administrativas, como a construção de bancos de dados epidemiológicos.

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A alteração mais divulgada é a reclassificação da disforia de gênero (também conhecida por outros diversos nomes como transtorno de identidade de gênero, transexualismo, ou incongruência de gênero, como será chamada na CID-11). Na CID-10 a disforia de gênero aparece com o nome de transexualismo e está classificada como sendo um transtorno mental. Em outro importante documento, este usado para fins diagnósticos e publicado pela Associação Americana de Psiquiatria, o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5), a disforia de gênero também aparece como transtorno mental.

De acordo com o Dicionário Médico Farlex, transtornos mentais são quaisquer síndromes comportamentais ou psicológicas clinicamente importantes, caracterizadas por sintomas de angústia, comprometimento significativo das atividades ou aumento significativo do risco de morte, dor ou outra incapacidade; e que são assumidos como resultado de alguma disfunção comportamental, psicológica ou biológica no indivíduo. De acordo com o mesmo dicionário, o conceito não deve ser confundido com o de retardo mental, que é um déficit relativo no domínio de aspectos como capacidade de cálculo ou de comunicação.

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São exemplos de transtornos mentais listados no DSM-5 os transtornos depressivos, as diversas formas de ansiedade patológica (fobias, síndrome do pânico), a esquizofrenia e também as condições patológicas relativas ao ato sexual que não tenham razão na própria anatomia ou fisiologia dos órgãos sexuais, mas em ansiedades ou traumas. Neste sentido — a depender da origem do problema — impotência sexual, ejaculação precoce e vaginismo aparecem como formas de transtorno mental tanto do DSM-5 quanto na CID-10. A CID-10 e o DSM-5 reconhecem hoje a disforia de gênero como patologia mental, ainda que sob nomenclaturas diferentes.

A patologia é caracterizada por um intenso sofrimento do paciente por ter nascido com determinado sexo e pelo profundo desejo de modificar esta condição. O paciente portador de disforia de gênero tem tendência a auto-mutilação sexual — são comuns as tentativas de arrancar o próprio pênis ou os próprios seios, por exemplo. Eles são também mais propensos ao suicídio.

Outra característica comum aos disfóricos de gênero é a busca por se vestir e se portar socialmente de acordo com o arquétipo social do sexo desejado: homens portadores de disforia de gênero tenderão a se vestir com roupas femininas, usar batom e brincos, e buscar adotar para si formas de tratamento, como nomes próprios femininos.

Da mesma forma, mulheres portadoras de disforia de gênero tendem a usar roupas masculinas, tentar esconder os seios sob cintas de compressão, usar cortes de cabelo curtos et cetera. Estudos prévios indicam que pacientes disfóricos de gênero submetidos a cirurgias de retirada dos seios ou do pênis podem apresentar melhora relativa ao quadro psíquico.

É importante salientar que a disforia de gênero não é caracterizada pela mera preferência de uma pessoa em se vestir ou se portar de maneira esperada para o sexo oposto: nem todo travesti, e nem toda lésbica masculinizada é disfórico. A Associação Americana de Psiquiatria especifica que: “É importante esclarecer que a não conformidade de gênero não é em si um transtorno mental. O elemento crítico da disforia de gênero é a presença de um estresse clinicamente significante associado com a condição”, diz.

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Na CID-11, que entrará em vigor em janeiro, a disforia de gênero não estará localizada no capítulo sobre Desordens Mentais, Comportamentais ou do Neurodesenvolvimento — onde estarão agrupadas as diversas formas de ansiedades, depressões e compulsões — e será englobada no capítulo relativo a Condições Relacionadas à Saúde Sexual. Outras patologias foram migradas para o mesmo capítulo, como as já mencionadas impotência sexual e vaginismo.

Os argumentos centrais em favor da mudança dizem respeito aos efeitos hipotéticos sofridos pelo paciente ao ser classificado desta ou daquela maneira e não de uma nova compreensão da natureza da condição clínica.

Em matéria do The New York Times publicada em 2016, Geoffrey Reed, médico da Universidade de Columbia e um dos principais advogados pela reclassificação da patologia faz menção a um artigo de sua própria autoria. No estudo, Reed argumenta que seus achados, resultados de uma investigação com pouco mais de duas centenas de transexuais mexicanos, indicam que os estresses associados à condição transexual no trabalho, escola e vida cotidiana enfrentados por transexuais são mais relacionados a preconceito que a um incômodo intrínseco do paciente com sua condição. O estresse em relação à própria condição física, entretanto, é intrínseco e definidor da própria condição médica.

São duas categorias de sofrimento, portanto: a angústia que o portador de disforia de gênero tem por não se adequar ao sexo com que gostaria de ter nascido, e que é condição intrínseca, não dependendo da forma como será classificada nos manuais médicos. E o sofrimento social adicional por ter sua condição classificada como patologia psiquiátrica.

É bem estabelecido que a classificação de uma doença como sendo uma patologia mental carrega o paciente de certo estigma social. Os pesquisadores Bruce G. Link, Jo C. Phelan e Greer Sullivan indicam, em capítulo do 'The Oxford Handbook of Stigma, Discrimination, and Health' que a mera rotulação de um paciente qualquer como portador de doença mental pode afetar negativamente a saúde física e mental, aumentando os riscos de persistência e agravamento da condição mental, da ocorrência de comorbidades não mentais e da mortalidade precoce.

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Isto não se aplica apenas ao caso dos portadores de disforia de gênero, e Reed concorda: “Um impulso para essa defesa tem sido uma objeção à estigmatização que acompanha a designação de qualquer condição como transtorno mental em muitas culturas e países. O Departamento de Saúde Mental e Abuso de Substâncias da OMS está comprometido com uma variedade de esforços para reduzir a estigmatização dos transtornos mentais. No entanto, a estigmatização dos transtornos mentais em si não seria considerada uma razão suficiente para eliminar ou mover uma categoria de transtorno mental. As condições listadas no capítulo Transtornos Mentais e Comportamentais da CID destinam-se a auxiliar na identificação de pessoas que necessitam de serviços de saúde mental e na seleção dos tratamentos adequados, no cumprimento dos objetivos de saúde pública da OMS.”

Reed então acrescenta que “No entanto, há evidências substanciais de que o nexo atual da estigmatização de pessoas transgênero e de transtornos mentais tem contribuído para uma situação duplamente onerosa para essa população, o que levanta questões legítimas sobre até que ponto a conceituação da identidade transgênero como transtorno mental apoia o objetivo constitucional da OMS de alcançar por todos os povos o mais alto nível de saúde possível. O estigma associado à intersecção entre status de transgênero e transtornos mentais parece ter contribuído para a precariedade do status jurídico, das violações dos direitos humanos e das barreiras à atenção adequada à saúde nessa população”

O cerne do argumento está no grau de estigmatização: a estigmatização sofrida por disfóricos de gênero ao terem sua condição classificada como transtorno mental resultariam, alegadamente, em impactos maiores do que a estigmatização sofrida por portadores de ansiedade patológica, de depressão ou de compulsões alimentares.

Disforia de integridade corporal: Uma "nova" patologia inserida na CID-11

Ao mesmo tempo que retirará a disforia de gênero de seu manual de classificação, a OMS introduzirá uma doença menos prevalente, a disforia de integridade corporal. A semelhança não se resume a presença do termo “disforia” (que, tecnicamente, é um termo amplo para se referir a condições caracterizadas por alterações de humor).

Disforia de integridade corporal (também referida como transtorno de identidade da integridade corporal ou apotenofilia) é um transtorno caracterizado por um intenso sofrimento do paciente por ter nascido fisicamente saudável e pelo profundo desejo de modificar esta condição. O paciente portador de disforia de integridade corporal tem tendência a auto-mutilação (são comuns as tentativas de arrancar os próprios braços ou as próprias pernas, por exemplo). Eles são também mais propensos ao suicídio.

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Outra característica comum aos disfóricos de integridade corporal é a busca por usar aparelhos e se portar socialmente de acordo com o arquétipo social do fenótipo deficiente desejado. Disfóricos de integridade que tenham ideal paraplégico tenderão a usar cadeiras de rodas em seu cotidiano. Já disfóricos de integridade para cegueira poderão usar bengala e óculos escuros. Estudos prévios indicam que pacientes disfóricos de integridade corporal submetidos a cirurgias de retirada das pernas ou dos braços podem apresentar melhora relativa ao quadro psíquico.

De fato, um estudo publicado em 2014 por Alicia Garcia-Falgueras, pesquisadora do Instituto Holandês de Neurociência, descreve assim as semelhanças entre ambas as condições:  “A disforia de integridade corporal e o desejo transexual de gonadectomia podem ser definidos como sensações de profundo desconforto que causa sofrimento clinicamente significativo para o paciente. Em ambas as doenças os pacientes reconhecem a realidade, o que significa que aqueles desconfortos são ilusões, não delírios. Em ambos os casos, após a restauração cirúrgica, o desconforto entre o gênero ou a identidade e o corpo não persiste. Essas pessoas têm em comum o fato de que estão extrema ou excessivamente preocupadas com seu conceito de corpo. Essa preocupação causa sofrimento clinicamente significativo (humor deprimido, ansiedade, vergonha) ou prejuízo em áreas ocupacionais ou outras áreas sociais importantes. A angústia aumenta e intensifica o desejo de modificar o corpo.”

Ao descrever as diferenças, a estudiosa limitou-se a indicar que: “no transtorno da integridade da identidade corporal, os desejos de amputações estão relacionados aos braços e pernas, não aos genitais ou seios.”

A disforia de integridade corporal é mencionada duas vezes no DSM-5, embora o documento da APA não reserve um capítulo específico para ela: “O transtorno de identidade da integridade corporal (apotenofilia) (que não é um transtorno do DSM-5) envolve um desejo de ter um membro amputado para corrigir uma experiência de inadequação entre a noção de identidade corporal de uma pessoa e sua verdadeira anatomia.(...) Indivíduos com desejo de amputar um membro saudável (denominado por alguns de transtorno de identidade da integridade corporal) porque isso os faz sentir-se mais ‘completos’ geralmente não desejam alterar seu gênero, mas viver como amputados ou inválidos.”

Tratam-se – como indicam ambos os documentos – de condições extremamente similares, com manifestações clínicas quase idênticas, à exceção da imagem idealizada pelo paciente (enquanto o paciente disfórico de gênero se idealiza como pessoa do sexo oposto, o paciente disfórico de integridade corporal fisicamente saudável poderá se idealizar como cego ou como amputado). Sendo patologias com manifestações clínicas tão semelhantes, poderia ser de se esperar que ambas fossem classificadas em um mesmo capítulo e sob códigos próximos.

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Entretanto, a OMS decidiu por vias completamente opostas. Uma das condições, que outrora não era registrada oficialmente como patologia, será agora registrada como patologia, e mais especificamente como patologia mental. A outra, que era oficialmente considerada como patologia mental, será migrada para uma categoria de patologias não mentais (sob o fundamental argumento de que a classificação como patologia mental resultou em estigmatização e sofrimento adicional aos pacientes) e com acenos para que seja retirada, futuramente, do própria CID.

Vistos em conjunto, os dois movimentos deixam perguntas. O que significa — objetivamente —  para a OMS, classificar ou não uma determinada condição como patológica, ou como não patológica? Quais critérios objetivos permitem classificar a disforia de gênero como condição mentalmente saudável e a disforia de integridade corporal como condição mental não saudável, sendo ambas condições tão similares? A inclusão da disforia de integridade corporal no rol dos transtornos mentais não tenderia a produzir sobre os portadores desta os mesmos efeitos que a anterior inclusão da disforia de gênero alegadamente produziu nos portadores daquela?

*Daniel Reynaldo é graduado em Ciências Biológicas pela UFRJ e editor do site "Quem?Números". Tem especial interesse em dados estatísticos relacionados a argumentos que dominam o debate público sobre questões identitárias.