Encontre matérias e conteúdos da Gazeta do Povo
consumo

Saiba por que o canudinho, vilão ecológico da vez, não merece a má reputação

O número de 500 milhões de canudos produzidos e descartados diariamente nos EUA surgiu em 2011, quando Milo Cress, então com 9 anos, fez uma pesquisa por telefone com três fabricantes de canudos | Pixabay
O número de 500 milhões de canudos produzidos e descartados diariamente nos EUA surgiu em 2011, quando Milo Cress, então com 9 anos, fez uma pesquisa por telefone com três fabricantes de canudos (Foto: Pixabay)

O canudo de plástico é o vilão da vez. Em defesa do meio ambiente, alguns restaurantes estão substituindo o objeto por opções duráveis, ou até mesmo retirando-os de circulação. No Legislativo, porém, estão surgindo propostas sem meio-termo: querem banir o objeto de cidades inteiras, com sanções a estabelecimentos que desrespeitarem a norma, como em Curitiba e no Rio de Janeiro. Essas iniciativas que começam a se multiplicar no Brasil fazem parte de uma onda global contra o pequeno artefato, que ganhou impulso após as imagens chocantes de uma tartaruga marinha com um canudo preso no nariz, em um vídeo que circula desde 2015. 

A quantidade de plásticos que vai parar nos oceanos é um problema ambiental mundial, e o canudo é um dos principais itens jogados na costa litorânea, mas a guerra declarada contra um único produto está banalizando o debate e escondendo o principal: o responsável pela poluição não é um objeto e nem o conjunto deles, mas sim o ser humano, que não sabe dar a destinação correta aos seus resíduos. 

O canudinho é, de fato, desnecessário na maioria dos casos, e por isso sua demonização ganhou terreno tão facilmente. Mas a campanha contra é tão forte que já foi contaminada até por fake news, como as que dizem que o objeto não é fácil de se reciclar e que, mesmo quando ele é corretamente jogado fora, pode ser levado pelo vento, sem dados que embasem essas afirmações. Mas o canudo, formado basicamente por polipropileno, um derivado do petróleo, é um item reciclável, e na economia circular serve de matéria-prima para vários outros itens de plástico. 

Segundo o economista Christian Luiz da Silva, professor da Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR), campanhas como a essa contra o canudo são movimentadas por um interesse comercial que tem respaldo na defesa do meio ambiente. “Um bar que deixa de usar canudo passa a ter redução de custos, e isso cabe bem dentro de um discurso ambiental. Não que esteja errado, mas é uma gota no oceano”, observa ele, que realiza pesquisas referentes à gestão dos resíduos sólidos. 

O biólogo Cláudio Gonçalves Tiago, professor do Centro de Biologia Marinha (Cebimar) da Universidade de São Paulo (USP), acompanha de perto os danos causados pelo plástico na fauna e flora do oceano. Mas nem por isso aderiu à campanha contra o canudo.

“É muito ruim a gente fazer de algum objeto um vilão. Em primeiro lugar, o culpado é quem descuidou com o lixo. Além disso, se dizem que o material utilizado não pode ser reciclado, então teria que mudar a matéria-prima, porque é esse o problema, não o objeto em si. E outro ponto importante: crianças, tetraplégicos, pessoas com limitações, dependem do canudo. Eu mesmo, quando me dão uma lata de bebida e eu não tenho a menor ideia do quanto ela foi higienizada, vou sempre usar o canudo”, afirma. 

A substituição do artefato de plástico por outro reutilizável não é tão simples, observa ele. Se um estabelecimento ofertar um de aço inox, por exemplo, a cada uso ele terá de ser lavado e esterilizado. O que implica em gasto de água e detergente. “Se fizer a conta, reciclagem ou esterilização de um objeto, qual será mais vantajoso? O plástico tem como característica ser um instrumento estéril, e esse atributo é fundamental para a humanidade”, acrescenta o biólogo. Uma possibilidade seria que cada pessoa tivesse seu próprio canudo, mas, se ela esquecer, ficará sem opção caso bares e restaurantes sejam proibidos de ofertá-lo. 

Em maio passado, o jornalista e historiador David M. Perry escreveu no site do Pacific Standard sobre a guerra ao canudo mundial e as opções equivalentes para o filho dele, portador da síndrome de Down. “Para meu filho, assim como muitos outros, os canudos de plástico oferecem uma combinação notável de preço acessível, resistência à tração e flexibilidade”. Ele destaca que canudos em metal, madeira ou vidro podem ser perigosos para algumas pessoas. Perry também observou as incongruências na campanha contra o canudo, como a informação de que os Estados Unidos produzem e descartam diariamente 500 milhões de canudos. Se o dado estivesse correto, significaria que cada um dos 327,9 milhões de norte-americanos usa 1,5 canudo ao dia. Segundo reportagem publicada em 25 de janeiro de 2018 no site Reason, o número superestimado surgiu em 2011, quando Milo Cress, um garoto de então 9 anos, fez uma pesquisa por telefone com três fabricantes de canudo e estimou o tamanho do mercado norte-americano. Cress sustentou que o número foi referendado pela Associação Nacional de Restaurantes, mas não há dados probatórios. A consultoria Technomics, que acompanha a indústria de alimentação, estimou que os norte-americanos usam 172 milhões de canudos por dia, segundo o Reason. 

Biodegradável 

Outro mito a ser quebrado é o de que um canudo biodegradável seria menos nocivo ao meio ambiente. Segundo Silvia Rolim, assessora técnica da Plastivida, instituto socioambiental do setor de plásticos brasileiro, a biodegradação é eficaz em produtos que serão descartados na água ou outros efluentes líquidos. Nesse caso entram o xampu, o detergente e outros produtos de limpeza.

No caso dos resíduos sólidos biodegradáveis, só há vantagem para o meio ambiente quando a compostagem é feita em usinas, que conseguem captar o metano gerado no processo. “Mas a maioria do lixo vai para aterros, e aí a solução é queimar o resíduo, porque pelo menos assim a molécula de metano vira gás carbônico, menos poluente, ou então teríamos um efeito estufa muito acelerado. E não faz sentido aumentar o número de produtos biodegradáveis. Basta que sejam reciclados, dessa forma não irão para o mar”, opina. 

Tiago, do Cebimar, considera que há muita propaganda enganosa nessa área: “Inventaram as sacolinhas de mercado biodegradáveis que na verdade são ‘bioquebráveis’. Aquilo se desmancha e você não vê mais, mas na verdade ela vira um microplástico, só sai da nossa visão, mas continua existindo na natureza. E pode ser ingerido por peixes que viram alimento humano”. 

No mar 

Em relação aos dados disponíveis, o canudo de plástico é um dos objetos mais encontrados na costa. Segundo o relatório de 2017 da The Ocean Conservancy, uma organização mundial de preservação e recuperação dos mares, a mais recente limpeza realizada nas faixas litorâneas, que percorreu 24,1 mil km em todos os continentes, coletou 13,8 milhões de itens, dos quais os canudos e misturadores de bebidas totalizaram 409.807, ou 3% do total. No Brasil, que teve a coleta em 55,5 km de costa, os canudos representaram 4,3% do lixo. O problema, de fato, é que há muito lixo: pontas de cigarro, papel de bala, garrafas, copos, sacolas etc. 

Um artigo publicado em fevereiro de 2015 na Science Magazine, com base em dados de 2010, mostrou que de 4,8 milhões a 12,7 milhões de toneladas de lixo plástico foram descartados nos oceanos.

A China foi a principal geradora de lixo, seguido por Indonésia, Filipinas, Vietnã e Sri Lanka; o Brasil apareceu em 16.º. Segundo a publicação, o tamanho da população, a faixa litorânea e a efetividade dos serviços de gerenciamento de lixo explicam a maior ou menor participação de cada país. Os Estados Unidos, por exemplo, ficaram em 20.º. 

Todo esse lixo contribui para a formação de “ilhas de plástico” nos mares e uma série de problemas ambientais. Mas há alguns produtos mais perigosos do que outros. Um estudo publicado pela revista Marine Policy em março de 2016 considerou a poluição causada por esse tipo de material e os reflexos na vida de pássaros, tartarugas marinhas e mamíferos aquáticos. Os mais impactantes são: boias, armadilhas, potes; monofilamentos (linhas de pesca); redes de pesca; e sacolas plásticas. O canudo plástico ficou em 13.º lugar em uma lista com 20 itens. Para a vida marinha, são mais prejudiciais os utensílios plásticos em geral, balões, botões, cápsulas, embalagem de comida e tampas plásticas de copo para viagem. 

Os dados todos comprovam que uma iniciativa global contra um único produto é pouco eficaz: é preciso trabalhar de forma a reduzir o lixo gerado e descartado incorretamente. Segundo a publicação A Nova Economia do Plástico, divulgada em janeiro de 2016 pelo Fórum Econômico Mundial (WEF), se mantido o ritmo atual, a produção global de plásticos chegará a 1,1 bilhão de toneladas em 2050, e os peso daqueles descartados irregularmente nos mares será igual ao dos peixes. 

Um dos grandes problemas é que apenas uma pequena parcela dos plásticos é reutilizada. Segundo o estudo do WEF, de 78 milhões de toneladas de plásticos produzidos em 2013, apenas 14% foram para a reciclagem, dos quais 4% foram perdidos; 40% vão para aterros e 32% poluem o meio ambiente, seja em terra ou no mar. 

Caminhos 

Para mudar esse cenário, Silva, da UTFPR, sugere várias frentes de atuação, como a discussão da logística reversa, para que a indústria participe e seja responsabilizada pela coleta de lixo gerado a partir de seus produtos; e a reorganização de cadeias produtivas a partir da economia circular, que tem como foco transformar resíduos em recursos para que retornem aos sistemas de produção e de consumo.

“Mas, para um resultado concreto, é preciso se planejar para o médio e longo prazo. A China, apesar de seus problemas ambientais, lançou uma política nacional com foco na economia circular, porque viram aí também a vantagem pelo lado econômico”, explica.

Uma mudança que poderia ocorrer nesse prazo seriam novas formas de embalar alimento. “Em alguns produtos, 40% do peso é só embalagem. Nos alimentos congelados, vem uma embalagem dentro de outra. Isso tem como ser repensado”, acrescenta. No curto prazo, Silva diz que os municípios precisam ampliar as ações da Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS), de forma a elevar a quantidade de produtos que vão para a reciclagem. 

Silvia Rolim, da Plastivida, diz que a indústria está fazendo sua parte. Ela destaca que a legislação sobre resíduos sólidos no Brasil é recente, e que aos poucos está sendo implementada. “A PNRS, que ficou sendo gestada por 20 anos, foi sancionada em 2010. O acordo setorial de embalagens é de novembro de 2015. Demorou, mas saiu. Foram passos importante cujos resultados reais só conseguiremos ver a médio e longo prazo”, afirma.

Ela destaca ainda as mudanças culturais e empresariais que precisam ocorrer. “Vamos reduzir, reciclar para reintroduzir no ciclo produtivo. Na economia circular, a biodegradação não retorna. E é preciso ter esse retorno, que é o que garante a sustentabilidade dos recursos naturais para as próximas gerações. Não estou dizendo que o plástico é lindo, mas há uma dimensão correta de como ele deve ser usado”, observa. 

De todo modo, o uso consciente do canudo e de qualquer plástico é defendido pelos especialistas. “Precisamos replicar o comportamento. Se não fixarmos, vira moda, e só voltaremos a nos preocupar com isso até que apareça outra tartaruga que nos choque”, opina Cláudio Gonçalves Tiago, do Cebimar. Ele diz que a educação é fundamental, no seu sentido amplo, não só nas questões ambientais. Para Silvia Rolim, o canudo é um símbolo emblemático, mas só ele não resolve. “Você pode reduzir o uso de todos os produtos, e com isso sim, se todos tivermos essa consciência, vai ter menos lixo no mundo”. Mas todos criticam a proibição e as penalidades impostas. 

Ciclo do canudinho 

Silva, da UTFPR, aponta os prejuízos que podem ocorrer com a proibição do uso do canudinho. “Quem produz e quem trabalha com plástico pode ter um prejuízo importante, o qual pode impactar também na reciclagem do plástico. O plástico reciclado vira matéria-prima de outra indústria, e, sem algum produto, há menos material reciclado a ser utilizado”, observa. 

O ciclo do canudinho é complexo: depois de utilizado e devidamente descartado, ele chega nas cooperativas de reciclagem. Muitas vezes ele está misturando com outros tipos de resíduos, e a separação é trabalhosa, conta Paola Cristina Sales, cooperada da Catamare, em Curitiba. De lá, o produto é embalado e segue para a Reciclagem Capital, uma aparista, que compra o material de cooperativas e revende em grande volume para indústrias transformarem o canudinho em novos produtos. 

A Reciclagem Capital, uma das maiores aparistas de Curitiba, com 35 funcionários, vende os fardos de canudinho junto com outros plásticos do tipo polipropileno (PP), como potes de margarina e alguns tipos de copos plásticos. Segundo Cleiton da Silva, um dos sócios da empresa, não há nenhuma dificuldade em reciclar o canudinho. “A única coisa é que o plástico deve estar bem separado por tipo, para não haver contaminação”, explica.

Ele lamenta a possibilidade de proibição de uso de um produto reciclável, como o canudinho. “É uma pena, porque na hora de ter alguma ajuda, quase não há, mas na hora de atrapalhar, surgem ideias de todo o tipo”, observa. 

De lá o material é vendido para indústrias no Paraná, Santa Catarina e São Paulo. A Nutriplan, fabricante de vasos de jardinagem de Cascavel, compra os fardos de PP da Reciclagem Capital e de outros fornecedores do Brasil. Segundo Silas Tiburcio, responsável pelo setor de compras, cerca de 95% dos produtos da empresa, que tem um parque fabril de 47 mil metros quadrados, são feitos a partir do plástico reciclado.

“A carga chega aqui, fazemos uma separação mecânica e depois o plástico é moído e lavado com água. Depois vai para a secagem, e daí para uma máquina onde é derretido e passa por uma moagem. Se houver necessidade, misturamos com pigmento para dar cor. A fase seguinte é em uma banheira para dar um choque térmico, para o plástico recuperar a dureza. O plástico sai tipo um macarrão comprido, e uma máquina chicoteia e o corta do tamanho de feijões, quando fica pronto para qualquer processo de fabricação de um novo plástico”, descreve Tiburcio. 

A vantagem para a empresa é grande: o quilo da sucata de PP sai por R$1,30. O material virgem, que viria da indústria petroquímica, custa R$ 8,50 cada quilo. Além disso, esses vasos, quando têm a destinação correta, também entram para o ciclo da reciclagem, conta Tiburcio. Para manter a longevidade do processo, são usados aditivos para ativar os polímeros. Outros fabricantes compram o material reciclado para fazer baldes, bacias, vassouras, rodos e escovas. Tudo isso a partir de um canudinho e outros plásticos que foram descartados de forma correta.

Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Principais Manchetes

Receba nossas notícias NO CELULAR

WhatsappTelegram

WHATSAPP: As regras de privacidade dos grupos são definidas pelo WhatsApp. Ao entrar, seu número pode ser visto por outros integrantes do grupo.