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Samuel Johnson, o maior intelectual inglês da modernidade

Samuel Johnson: conhecê-lo é conhecer o conservadorismo raiz
Samuel Johnson: conhecê-lo é conhecer o conservadorismo raiz (Foto: BigStock)

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Escrever, nem que seja uma já confessa “breve biografia” do pensador e poeta inglês Samuel Johnson, é uma árdua, ingrata, ainda que revigorante e tentadora, tarefa para mim. É assim, pois é notória a compreensão de que James Boswell tenha escrito, em 1791, a biografia definitiva do literato conservador britânico.

Em Life of Samuel Johnson, sucesso de crítica e vendas desde o lançamento e, até hoje, considerada a primeira biografia ao estilo moderno, Boswell logo destaca que seria praticamente unanimidade – até mesmo entre os críticos às ideias de Johnson – que o poeta de Lichfield teria sido a mente mais fenomenal de sua época, talvez o homem mais culto em séculos naqueles cantos e ilhas. Soa quase como uma heresia não termos escutado nas universidades e nas grandes mídias brasileiras, nem que fossem, breves resumos dos feitos, ideias e vida de Samuel Johnson.

De onde veio

Samuel foi filho de Michael Johnson, livreiro de Lichfield, e de Sarah Ford; casal que desde o início gozou de alta estima comunitária devido à função de Michael e origem de Sarah. Eles se casaram em idade já avançada, sendo a gravidez de Sarah, segundo os registros familiares, difícil e penosa naqueles dias que antecederam a chegada de seu filho. Quase que profeticamente, Samuel Johnson – que no início receberá o nome de Samuel Ford, dado pelo seu tio, irmão de sua mãe – nasceu em cima da livraria de seu pai, algo muito propício à profissão e vocação que demonstraria mais tarde, vocês verão.

Devemos pontuar, para uma clara compreensão, que Michael Johnson não era apenas livreiro, era igualmente dono de uma espécie de gráfica própria, o que fazia dele também um editor habilidoso e um profundo conhecedor de livros em toda a sua extensão de produção e armazenamento. Não é lá muito difícil supor o quanto isso tenha influenciado a vida futura de seu filho, bem como agregado status à vida pública dos Jonhson em Lichfield. Seja como for, o que é unanimidade entre os biógrafos, curiosos e admiradores de Samuel Johnson, é que, desde a mais tenra idade, o menino mostrou extrema habilidade com os estudos literários.

Por volta dos 7 anos, Samuel foi inscrito na Lichfield Grammar School, onde se destacou com proeminência em latim e história; mesma época em que começou a desenvolver aquilo que seus colegas e professores chamavam de “tiques” e “manias estranhas”. Mais tarde, estudiosos diagnosticariam tal mal – por meio das descrições anotadas de observadores e amigos – como sendo a síndrome de Tourette.

Aos 16 anos, Johnson passou uma temporada com os Ford, e com eles desenvolveu uma amizade e parceria profunda, principalmente com seu primo Cornelius Ford. Cornelius era um estudioso independente dos clássicos literários e da vida de seus autores. Um dos grandes que participava de seu seleto círculo de amizade era Alexander Pope, nada mais nada menos do que um dos maiores poetas ingleses de todos os tempos. Os Ford, a partir de Cornelius, identificaram na inteligência de Johnson algo fora do comum, principalmente ante os escritos clássicos do Ocidente que ele lia e analisava. Ainda na adolescência, Samuel já era capaz de criticar com enorme argúcia os escritos clássicos, bem como ministrar pequenas aulas sobre os autores e as peculiaridades que cada obra trazia em seus enredos. A sua capacidade literária naquele instante, apesar dos poucos escritos e rascunhos autorais, já era evidente para todos que o cercava.

Dois anos depois, agora com 18 anos, começou a escrever alguns poemas e a traduzir tantos outros. Seus pais começavam a passar por endividamentos acentuados e, por isso, considerou começar a dar aulas particulares e a trabalhar por meio período na livraria de seu pai. Boswell, todavia, destaca que é muito mais provável que naqueles dias o jovem Samuel mais lia do que efetivamente trabalhava na livraria ou na confecção editorial de seu pai, prova disso é que foi nesse ínterim que fez amizade com Gilbert Walmesley, intelectual, escritor e presidente do Tribunal Eclesiástico de Londres – além de assíduo frequentador da livraria de Michael. Mais tarde, Walmesley viria a relatar para o já referido biógrafo de Johnson, Boswell, que ele passava horas a fio debatendo literatura e filosofia com Samuel Johnson durante tais visitas à livraria.

A família de Johnson vivia, naquele instante, em relativa pobreza. Sua mãe, todavia, conseguiu destinar cerca 40 libras para os estudos do filho. E foi com essa escassa economia, porém suficiente para o início do seu ensino superior à época, que o jovem Johnson começou seus estudos na Pembroke College – uma das muitas instituições pertencentes à universidade de Oxford. Logo no início, os professores e direção perceberam o intelecto diferenciado de Samuel e o aceitaram quase de pronto, sem maiores dificuldades. Na época, o jovem de Lichfield já era capaz de recitar de memória, e traduzir sem problemas, obras clássicas complexas do latim para o inglês. No entanto, os problemas financeiros da família se mantiveram nesse interregno, apesar dos talentos de Johnson e das ajudas financeiras de amigos universitários. Seu pai, Michael, chegou a contrair empréstimos para tentar sustentar seu filho em Oxford; porém, um esforço sem retorno. Em 1731, Michael Johnson acaba falecendo após várias semanas de febre devido a inflamações não especificadas. Johnson teve que retornar para sua terra natal.

Sem diploma, mas com uma vocação evidente

Apesar dos esforços louváveis de muitos biógrafos, existem muitas lacunas biográficas a respeito da vida de Johnson, principalmente sobre os anos que antecederam sua entrada na universidade, e também depois, quando iniciaria sua efetiva vida pública. Sabe-se, no entanto, que o prestígio de que a família Jonhson um dia gozou naquela comunidade, por ocasião da profissão do pai, se esvaiu aos poucos dado ao acentuado endividamento da família.

Após a morte do pai, e da volta inglória de Samuel da universidade, restou ao jovem galgar uma posição de professor auxiliar na Market Bosworth, escola que, naquela altura, não exigia diploma para os professores auxiliares. Não se tem muitos dados sobre a saída de Johnson dessa escola, sabe-se, contudo, que isso se deu após uma briga pública com o mantenedor da instituição, Wolstan Dixie. Esse fato é importante, pois revela uma faceta por vezes escondida de Johnson; apesar do reconhecido recato de Samuel Johnson, bem como da sua defesa sempre audaciosa das posturas morais da sociedade inglesa, é fato que Johnson não parecia declinar de brigas quando julgava necessário tal entreveiro para salvaguardar uma posição política, opinião ou conduta social. Ao longo da sua vida, e continuaria sustentando tal postura, porém, agora, mais comumente, em forma de textos.

Após um tempo desempregado, foi visitar seu amigo Edmund Hector, em cuja casa conheceu o editor Thomas Warren, do jornal recém-lançado, Birmingham Journal. Thomas pede a ajuda de Samuel, e, assim, pode-se afirmar que, nesse momento, o jovem Johnson começa a trabalhar e subsistir através da escrita. Seu primeiro trabalho foi traduzir a obra do padre jesuíta Jerónimo Lobo, enviado da Igreja Católica ao império da Etiópia. A edição e tradução de Samuel de A Voyage to Abyssinia, de Jerónimo, foi por fim publicada, figurando assim como o primeiro trabalho de Johnson de fato publicado ao grande público.

Casamento e empreendimentos

Outro grande amigo do nosso biografado foi Harry Porter, Johnson o acompanhou até a morte, em 3 de setembro de 1734. Porter deixara a esposa Elizabeth Jervis Porter e mais 3 filhos jovens. Não demorou muito para que Elizabeth e Johnson começassem a flertar um com o outro e, apesar da diferença de 21 anos – a mulher tinha 46 anos na ocasião –, Johnson não se importou e logo viria anunciar a intenção de se casar com a viúva do amigo.  Isso de fato aconteceu em 9 de julho de 1735, na Igreja de St. Werburgh, em Derby.

O novo casal viria a fundar, em 1735, a Edial Hall School, uma escola particular que logo faliria. Na verdade, segundo os registros do casal, a escola, em dois anos de funcionamento, teve apenas três alunos matriculados. Tal empreendimento mal-sucedido custou caro às economias herdadas por Elizabeth e frustrou muito o já costumeiramente melancólico Samuel Johnson. Após isso, como deixa entrever Boswell, o erudito se deixou encarar pela missão não mais adiável de se tornar escritor profissional, e, por isso, deu início ao seu primeiro projeto literário, o romance histórico Irene. Na época, o romance foi outro fracasso – agora editorial – do inglês, reconhecido assim por ele e pela crítica especializada londrina da época. Todavia, paradoxalmente, em 1749, um de seus alunos, David Garrick, interpreta o romance no teatro, o que rende ganhos consideráveis a Johnson. Nada do que havia escrito até 1749 chegou perto dos rendimentos dessa peça.

O ano de 1738 é o grande momento de virada para Johnson no que concerne à sua vida pública. Após uma produtiva viagem a Londres, e alguns contatos firmados, Johnson começou a se associar com Edward Cave, proprietário da The Gentleman's Magazine, considerada a primeira revista de grande tiragem nos moldes modernos. Ele logo iniciou a colaboração com poesias e artigos curtos em prosa, e mais tarde se destacou na grande Londres ao biografar Paolo Sarpi. Mas o mais impressionante é que, no ano entre 1738 e 1739, Johnson teve uma produção escrita realmente absurda para qualquer humano de carne e osso. Destacam-se nessa produção os poemas London, Marmor Norfolciense e A Compleat Vindication of the Licensers of the Stage. Tais textos o evidenciaram na grande Londres, colocando-o sob fortes holofotes do mundo erudito e cultural inglês.

Além disso, o agora escritor profissional iniciou uma fina e perspicaz onda de sátiras que criticavam, em especial, o governo de Robert Walpole. Nesse momento, a despeito de sua até então mudez biográfica com relação à política, Johnson começou a ser visto como um conservador de estilo original, isto é, independente do próprio partido Tory – apesar de defendê-lo publicamente em diversas situações.

Apoiou de modo sofisticado aquilo que seu biógrafo da Enciclopédia Britânica, Robert Folkenflik, denominou como “torismo de choque”, algo como um conservadorismo ativo e atuante no meio social. E teria sido por volta de 1739 que ele conheceu efetivamente Edmund Burke, à época um perspicaz irlandês liberal descontente com as linhas gerais de seu partido (Whig); mais tarde Johnson chegaria a dizer que Burke era um liberal com alma Tory, isto é, um liberal com alma conservadora. Cabe-nos, entretanto, pontuar que, naqueles dias, as diferenças ideológicas e princípios filosóficos que norteavam ambos os partidos não eram travas dogmáticas, não era nada difícil encontrar coalizões políticas que uniam conservadores e liberais em torno de certos princípios gerais.

Em 1745, Samuel inicia um projeto de crítica literária à obra de Shakespeare, seu primeiro escrito foi Miscellaneous Observations on the Tragedy of Macbeth, considerada uma crítica inteligente, ousada e mordaz; em 1746, inicia também o projeto que mais lhe daria visibilidade no Reino Unido até os dias atuais, o seu famoso Dicionário de Língua Inglesa. Todavia, devemos dizer, a obra mais aclamada pelo público e crítica na década de 1740 foi seu An Account of the Life of Mr. Richard Savage, Son of the Earl River, uma biografia com elementos de sátira e análise historiográfica. Com relação à sátira – estilo que cada vez mais comporia seus textos – fica clara a influência sofrida, bem como sua admiração, ante o satirista mor Jonathan Swift. Nas décadas subsequentes ele afirmaria isso nas reuniões dos vários grupos de intelectuais que compunha e organizava.

Em 1749, ele publicou o seu poema mais famoso, The Vanity of Human Wishes. Tal poema, muito possivelmente, foi a fonte de inspiração para a sua obra mais importante com relação à crítica social daquele século, A História de Rasselas.

O homem dos tabloides

Apesar da década de 1740 ter sido disruptora para Samuel Johnson, se formos considerar a mais produtiva do escritor, torna-se unanimidade entre seus biógrafos que se trata de 1750 – especialmente a primeira metade. Johnson passou a escrever de forma fixa para a revista The Rambler, entre 1750-1752. A publicação circulava duas vezes por semana na grande Londres e tomou quase que por completo as atuações do erudito; Jonhson chegou a escrever cerca de 200 textos, entre ensaios, críticas curtas e poemas diversos nessa revista.

O mais impressionante é que o The Rambler não era exatamente uma das publicações mais vendidas, mas era com certeza uma das mais buscadas pelos eruditos ingleses, fazendo da visibilidade limitada de Johnson, uma espécie de curadoria dos influentes. Nas últimas publicações de Johnson nessa revista, ele afirmou, com certo pesar, que seus textos não eram os mais apreciados pelo público, e que sabia plenamente disso. Mas não é bem verdade, pois foi nesse periódico que sua fama de inteligência acima da média se espalhou para o grande público londrino, e que seus conselhos políticos passaram a ser constantemente requisitados. Jonhson, afirmava aos amigos: “minhas outras obras são vinho e água; mas meus [textos publicados no] The Rambler são vinho puro”.

Elizabeth, esposa de Johnson, foi uma das maiores admiradoras de seus escritos, dizia publicamente que conhecia as capacidades de seu marido desde quando o conhecera, mas foi somente no The Rambler que ela percebeu a extensão de seu gênio. Elizabeth morreu no dia 17 de março de 1752, apenas três dias após a última publicação do marido na referida revista. Após a morte da esposa, Johnson, segundo algumas correspondências, não se abalou e manteve o forte ritmo de publicação. Porém, foi somente em 1755, após passar brevemente por revistas menores, como The Adventurer, que o escritor conseguiu finalizar o seu Dicionário de Língua Inglesa, publicando-o ainda naquele mesmo ano. Destaque-se que o projeto do dicionário se iniciara nove anos antes, e que o tempo efetivo de trabalho corriqueiro no dicionário tenha sido de apenas seis anos – como mostra suas anotações e diários. Dessa maneira, o talento de Jonhson ficou ainda mais evidente ao público que o acompanhava, e sua fama de “gênio” se espalhou com rapidez.

Para termos uma noção exata de seu feito, era evidente que aquele dicionário era o maior e mais aprofundado da língua inglesa naqueles dias, autores e escritores, de várias linhas políticas, facilmente elogiavam e reconheciam o feito de Jonhson. Até hoje ele é reconhecido quase que automaticamente por ter sido o autor do tal Dicionário. Aquilo que a Academia Francesa demorou 40 anos para concluir, diz patrioticamente a Enciclopédia Britânica, Johnson levou 9 anos.

Fica claro aos leitores que, mais do que um modo de subsistência, escrever, para Johnson, era uma obsessão intelectual bem delineada, seu interesse literário e gramatical pela língua inglesa vai muito além de uma preocupação meramente financeira de momento. Edmund Burke reconheceria essa virtude em reuniões em que ambos estavam presentes. Naqueles dias em que os panfletos políticos se tornaram virais, fazendo de vários escritores menores senhores de rendas relativamente abastadas, Johnson escrevia por amor e vocação – apesar de efetivamente viver do que escrevia.

De 1756 a 1758, ele se dedicou, especialmente, às críticas políticas, principalmente à Guerra dos Sete Anos e à Guerra Americana no The Literary Magazine, revista de média divulgação que ele mesmo editava. Em 1757, publicou uma biografia de Frederico II, conhecido como “O Grande”. Em 1758 ele retorna a outra publicação ao estilo mais livre, como era o The Rambler, o The Idler. Com um estilo mais livre, Johnson publica mais de 100 ensaios, posteriormente lembraria que gostava muito de escrever ali pela liberdade de temas que ele abordava. Ele apareceria também, de 1758 a 1760, no The Universal Chronicle.

Por que Johnson se tornou indispensável ao conservadorismo

No entanto, e aqui vai minha opinião pessoal, a principal obra de Samuel Johnson não se trata de seu aclamado dicionário, e nem mesmo de seus ensaios amados pelos ingleses do século XVIII: o melhor texto de Johnson foi A História de Rasselas, Príncipe da Abissínia. Texto muito negligenciado por liberais e conservadores até os dias atuais, mas que tem em seu cerne uma das críticas mais sofisticadas e arrasadoras ao princípio utópico do modernismo iluminista.

Johnson confessamente escreveu esse romance em uma semana, a fim de pagar o funeral de sua mãe, que morrera em janeiro de 1759. Escreveu a obra de maneira célere, é fato, todavia, quando o manuscrito chegou ao editor, verificou-se que se tratava de uma obra literária assustadoramente profunda. A agudeza filosófica do escrito era magnífica e poucas vezes igualada naqueles dias; a análise construída pelo autor em torno da felicidade sintética da modernidade, através de uma crítica conservadora, talvez fosse realmente inédita naqueles dias. Algo parecido com tal crítica de Johnson só voltou a aparecer – com qualidade e profundidade – em 1932, com Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley.

O romance versa sobre um fictício príncipe Rasselas, de Abissínia, que mora num vale feito para os filhos do Rei, cujas necessidades materiais e psicológicas são todas supridas de imediato, não havendo espaço sequer para as comuns penúrias econômicas e sociais diárias. No entanto, o príncipe logo começa a ficar melancólico em seu cativeiro de felicidades compradas – uma espécie de jaula em que nada falta, somente o que mais importa: a liberdade de poder escolher seu próprio destino. Rasselas começa então a demonstrar um espírito inquieto e questionador ante a sua realidade. Com a ajuda de seu tutor, o poeta Imlac, e sua irmã, Nekayah, foge do vale de Abissínia em busca do melhor modo de viver. Isto é: o caminho real para felicidade plena. Rasselas buscava dissolver a eterna contradição humana: como ter liberdade e não sofrer, e como não sofrer mantendo a liberdade. E dessa busca profundamente filosófica e humana decorre toda a trama.

O escrito de Johnson saiu no mesmo ano de Cândido, ou o Otimismo, de Voltaire, talvez a obra mais aclamada deste autor. Para muitos, essa foi a causa do “escanteamento” da obra do poeta inglês. Entretanto, o itinerário de abordagem de Samuel ao tema da “possibilidade de plena felicidade” foi completamente nova e infinitamente mais sábia que a de Voltaire. Pessimista, ainda que erudita e esclarecedora, a obra de Johnson critica com rara perspicácia o centro norteador da filosofia iluminista francesa, gestando, no segundo plano do romance, uma das críticas mais formidáveis ao iluminismo ideológico que arrastava a Europa no século XVIII. Talvez podemos dizer que aquilo que Burke havia feito em forma de crítica filosófica em Reflexões sobre a Revolução na França, Johnson fez em forma de romance em A História de Rasselas.

Ele – ao contrário do que pregava Rousseau – não inicia a sua narrativa a partir de um homem desenvolto e liberto de amarras sociais, que constrói um caminho filosófico inconteste a partir da uma pretensa razão infinita; e nem explora a condição de penúria da existência humana a fim de alimentar um sentimentalismo orgânico e revolucionário contra algum status quo político. Na realidade, Johnson escreve a obra a fim de explorar o núcleo do problema do homem moderno: se o homem quer ser livre, ele, então, terá que provar integralmente – em algum momento da sua vida – o fracasso e as perdas inevitáveis. Mas se o homem renuncia à sua liberdade em busca de consolos perpétuos, renuncia também à sua razão, e, se renuncia à sua razão, também abre mão de sua consciência, tornando-se assim um vegetal estranho na história, um espectro hediondo e sem substância.

Ante a obra de Voltaire – também muito boa, devo dizer honestamente – o romance de Johnson ganha uma profundidade muito mais visível que aquela, garante ao leitor atento uma crítica muito mais qualificada e edificante. Crítica essa que tem um real poder de modificar e amadurecer as perspectivas do homem moderno, se lida com sinceridade e seriedade.

Os contatinhos e grupos de Johnson

Em 1763, Johnson conheceu o seu mais famoso biógrafo, James Boswell. Boswell era um libertino e estudioso do direito – apesar de amar mesmo a literatura. Ele manteve um diário detalhado de sua vida adulta, e entre confessos romances frustrados, doenças venéreas que o afetavam, vida de estudo, encontro com intelectuais e com prostitutas, Boswell relatou vividamente seus encontros com Johnson. Segundo o próprio Boswell, a retidão moral de Johnson era o que ele mais admirava. Em uma das suas notas, ele relata um dia em que, caminhando com Johnson, uma prostituta se achegou a eles oferecendo seus serviços – talvez conhecendo Boswell de alguma noitada –, segundo o diário de Boswell, Johnson respeitosamente dispensou os ofícios da moça com extrema cordialidade.

Johnson participava efetivamente de vários clubes de literatura, política e demais assuntos que o interessava. Ele foi o fundador do The Club, junto a seu amigo Joshua Reynolds; tratava-se de um clube literário proeminente naqueles dias, dele participavam homens como Edmund Burke, Oliver Goldsmith, o historiador John Hawkins, Edward Gibbon e Adam Smith. Segundo suas cartas, os clubes serviam a ele como uma espécie de refúgio da solidão, ao que tudo indica, o ambiente de sua casa, após a morte da esposa, não parecia ser os dos melhores. Talvez aquele que ele tinha em maior consideração em seu círculo íntimo-familiar era seu servo negro, Francis Barbes, e sua esposa, Betsy. Para compreendermos a extensão dessa amizade, Francis e Betsy foram os únicos herdeiros de Johnson, o qual os fez assim através de um testamento escrito a próprio punho.

Em 1762, Johnson passa a receber uma pensão vitalícia, o que faz a escrita deixar de ser uma necessidade de subsistência. E, com mais tempo para escrever coisas que não necessariamente lhe darão alguma renda, volta à ideia de criticar literariamente as obras de Shakespeare.

Os últimos escritos, os últimos dias

Em 1773 Johnson, viajou, contra as recomendações dos amigos devido à sua já frágil saúde, para as Hébridas, um arquipélago ao Norte da Escócia, conhecido pelos peculiares costumes dos seus habitantes. Lá ele escreveu, em 1775, A Journey to the Western Islands of Scotland, um livro de viagem que só foi publicado um ano após sua morte, em 1785. Na última década de sua vida, ele se dedicou a vários panfletos políticos onde, basicamente, ele comentava e criticava pautas e debates das Câmaras londrinas. Dedicou-se a escrever prefácios, pequenas biografias e resenhas críticas a The Lives of the Poets, livro que pretendia introduzir os jovens ingleses às vidas e obras dos grandes poetas.

Foi também em 1775 ele que recebe duas honrarias universitárias, a primeira se trata de um diploma honorário de Doutor em Direito pelo Trinity College, de Dublin, e a outra trata-se de um título de Doutor em Direito Civil por Oxford. Samuel jamais usou os títulos de Doutor, apesar das prerrogativas serem quase regra na Inglaterra do século XVIII, e, após a biografia de Boswell tratá-lo tão somente como Samuel Johnson – não se sabe se a pedido do próprio erudito –, o nome sem o título honorário pegou popularmente, fazendo com que muitos nem saibam dessas honrarias.

Após finalizar o The Lives of the Poets, sua saúde deteriorou-se rapidamente. O fato é que Johnson nunca teve uma vida realmente saudável, sofria com doenças corriqueiras e com aquilo que ele denominava de “melancolia” – hoje os biógrafos chamam de “depressão”. Em 1783, sofreu um derrame, o que limitou demais suas atuações literárias, além disso sofria de severos inchaços na perna. Boswell, seu fiel amigo, dizia que seus últimos dois anos foram de preocupações religiosas em relação à sua salvação. Ele confessava diuturnamente sua necessidade de conversão, bem como o seu anglicanismo fiel. Após se livrar repentinamente dos inchaços, Boswell afirma que ele encarara o evento como um sinal divino de que de fato ele poderia ser salvo, e terminou os restantes de seus dias num estado de serenidade. Samuel Johnson morreu em 13 de dezembro de 1784, e encontra-se enterrado na Abadia de Westminster.

Um homem a ser descoberto, e um conservador a ser admirado

As ideias de Johnson não são facilmente rastreáveis, apesar de podermos cravar que se tratou de um dos mais genuínos conservadores ingleses. Suas admoestações literárias, filosóficas e políticas partiam do pressuposto da decadência religiosa do homem, mantendo assim ante a vida uma atitude realmente pessimista e sóbria.

Seus últimos escritos políticos pareciam flertar com um antidemocratismo, principalmente porque considerava extremamente cruéis as leis que a Câmara dos Representantes passavam sob os olhares estupefatos e mãos passivas da população. Robert Folkenflik destaca que Johnson foi, por princípio, contrário à escravidão, ao colonialismo e ao tratamento desumano que os europeus davam aos indígenas das Américas. E, apesar de ser um confesso monarquista, não nutriu nenhuma afeição pelos reis que dividiram o ar com ele em seus dias, constantemente dizia em seus círculos íntimos que os freios constitucionais eram uma benção real, apesar de tudo.

Samuel serviu ao conservadorismo através de sua postura, pelo sulco de suas ideias e também por sua dedicação integral à erudição. Sua vida de estudos e escrita constantes alimentou uma espécie de mito fundador na Inglaterra de que os conservadores deveriam figurar nos jornais, emitir opiniões abertas, ainda que controversas. Talvez Samuel esteja mais para pai fundador do conservadorismo do que Burke, pois foi efetivamente Johnson que popularizou a opinião conservadora em dias que o liberalismo extremista dos ideólogos figurava como ideia doce na comunidade intelectual londrina. As ponderações de Johnson nos veículos de imprensa parecem ter recolocado os opinadores conservadores novamente na disputa pelas mentes populares.

Sendo assim, conhecer Samuel Johnson é conhecer o conservadorismo raiz. E para além de lê-lo por obrigação, devemos conhecê-lo, pois ele é ainda hoje um gênio esquecido, um patrimônio mundial burramente deixado de lado por – e para – nós, brasileiros.

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