Criado em 2008, o Prêmio São Paulo de Literatura é um dos concursos literários mais relevantes do país. E, este ano, o mero anúncio dos jurados escolhidos para conceder o prêmio de “Melhor Romance de Ficção do Ano de 2020” e “Melhor Romance de Ficção de Estreia do Ano de 2020” gerou controvérsias nas redes sociais.
Autor de “Diário da catástrofe brasileira”, o escritor Ricardo Lísias retirou sua obra da premiação por causa da presença do filósofo Eduardo Wolf e do escritor Martim Vasques da Cunha no júri, figuras que, para ele, pertencem à “extrema direita”. “Não aceito dialogar com gente do nível dos dois citados”, escreveu o autor.
Em resposta às críticas, Lísias dobrou a aposta: afirmou que “qualquer pessoa que elogia Roger Scruton é de extrema direita” e que o filósofo britânico morto em 2020, bem como figuras como Ludwig von Mises, Friedrich Hayek e Michael Oakeshott são “ideólogos extremistas” que sequer merecem ser estudados nas universidades, enquanto o dramaturgo Nelson Rodrigues e o filósofo Martin Heidegger seriam “aceitáveis”.
Considerando que o alemão existencialista “aprovado” pelo escritor foi, declaradamente, nazista, enquanto os jurados rechaçados tecem críticas constantes ao presidente Jair Bolsonaro, ao filósofo Olavo de Carvalho e outras figuras da direita brasileira (leia, aqui, o ensaio O mínimo você precisa saber sobre Olavo de Carvalho, de Martim Vasques), o critério de Lísias para a classificação de “extrema direita” já se mostra questionável. Vale ressaltar, contudo, que nenhum nome apontado pelo autor está perto de merecer o adjetivo.
Leia, abaixo, alguns trechos de suas obras:
Roger Scruton
Em seu best-seller “Como ser um conservador”, Roger Scruton, já aclamado como o “guru da nova direita brasileira”, dedica capítulos inteiros à descrição do que considera ser verdadeiro no socialismo, no liberalismo, no multiculturalismo e no ambientalismo.
A respeito do socialismo, por exemplo, o filósofo avalia que, embora a maior parte de seus adeptos compre o discurso de que toda forma de desigualdade é fruto de uma injustiça, a busca pelo bem comum é coerente com as ideias conservadoras - e vai na contramão do individualismo ganancioso:
“Defendi que o processo político, o que herdamos das democracias ocidentais, depende da cidadania, que, por sua vez, depende de uma primeira pessoa do plural viável. (...) É por cooperar na vida em sociedade que desfrutamos da segurança, da prosperidade e da longevidade (...). E, quanto mais nos beneficiarmos desse arranjo, mais temos de dar em troca. (...) Essa é, em minha perspectiva, a verdade no socialismo, a verdade da nossa dependência mútua e da necessidade de fazer o que pudermos para expandir os benefícios de pertencer a uma sociedade para aqueles cujos esforços não são suficientes para obtê-los”.
Sobre os esforços para preservar o meio ambiente, Scruton não deixa de ressaltar a arbitrariedade e ineficácia de ações centralizadas por parte de grandes instituições como as Nações Unidas e a União Europeia, que, não raramente, implicam na perda de soberania dos países. Mas está longe, muito longe, de diminuir a relevância da causa ou de eximir os conservadores deste compromisso.
“Oikiphilia, o amor pelo lar, serve à causa dos ambientalistas, e é extraordinário que muitos partidos conservadores no mundo de língua inglesa não tenham se apoderado dessa causa (...). Esse, parece-me, é o objetivo a ser perseguido pelo ambientalismo sério e pelo conservadorismo sério - isto é, o lar, o lugar onde estamos e compartilhamos, o lugar que nos define, do qual somos depositários para nossos descendentes e que não queremos que deteriore. Ninguém parece ter identificado um motivo mais plausível do que esse para servir à causa do meio ambiente”.
Ludwig von Mises
Se o nazismo é classificável como um regime de extrema-direita, é evidente que o homem sobre o qual a Gestapo reuniu mais de 10 mil documentos, por ser considerado um “um arqui-inimigo do nacional-socialismo e de qualquer outro tipo de socialismo”, não pode estar do mesmo lado. É verdade que a personalidade do fundador da Escola Austríaca nunca foi fácil, bem como a compreensão de sua recusa intransigente de qualquer mínima intervenção do Estado na economia. Ludwig von Mises, “o último cavaleiro do liberalismo”, contudo, foi crucial para uma geração de defensores de um dos direitos humanos mais elementares: a liberdade.
“É inútil lutar contra o totalitarismo adotando métodos totalitários. A liberdade só pode ser conquistada por homens incondicionalmente comprometidos com os princípios da liberdade. O primeiro requisito para uma ordem social melhor é o retorno à liberdade irrestrita de pensamento e expressão.”
Friedrich Hayek
Parceiro de Mises na fundação do Instituto Austríaco de Economia, Hayek é considerado um dos maiores filósofos políticos do século XX. Sua principal obra, “O Caminho da Servidão”, registra seu descontentamento com muitos colegas entusiasmados pelo nazismo e fascismo, vistos à época como reações capitalistas ao marxismo. No livro, Hayek acusa o nacional-socialismo de cometer precisamente os mesmos erros, e insiste na descentralização do poder como antídoto aos abusos totalitários de qualquer lado:
“Descentralizar o poder corresponde, forçosamente, a menor soma absoluta de poder, e o sistema de concorrência é o único capaz de reduzir ao mínimo, através da descentralização, o poder exercido pelo homem sobre o homem. (…) Se fracassamos na primeira tentativa de criar um mundo de homens livres, devemos tentar novamente. O princípio orientador de que uma política de liberdade para o indivíduo é a única que de fato conduz ao progresso permanece tão verdadeiro hoje como foi no XIX”.
Michael Oakeshott
É de surpreender que Oakeshott, o conservador rebelde, esteja na infame lista de “ideólogos extremistas”. De largada, não é fácil atribuir o título de “conservador” ao britânico que perdeu seu título de Lord ao ser flagrado em ato sexual na praia com uma dama. Mas nem só de “desvios” foi feita a vida de Michael Oakeshott: o autor ficou conhecido, sobretudo, por defender que o conservadorismo é, sobretudo, uma disposição de espírito - e não uma cartilha ideológica:
"Ser conservador é, pois, preferir o familiar ao estranho, preferir o que já foi tentado a experimentar, o fato ao mistério, o concreto ao possível, o limitado ao infinito, o que está perto ao distante, o suficiente ao abundante, o conveniente ao perfeito, a risada momentânea à felicidade eterna. Relações familiares e lealdade têm preferência sobre o fascínio pelas alianças de momento; comprar e aumentar é menos importante do que manter, cultivar e aproveitar; a tristeza da perda é mais aguda do que a empolgação pela novidade e pela promessa. Significa viver dentro dos limites do patrimônio, usufruir dos meios possíveis à riqueza, contentar-se com a necessidade de maior perfeição que é exigida a cada um em dada circunstância."