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Em um país onde metade da população segue sem saneamento básico — ou seja, não tem coleta de esgoto em casa — e o assunto de toda semana é a corrupção endêmica, pode ser considerado auspicioso que uma exposição cultural esteja em pauta. O brasileiro não é muito chegado a um museu: segundo o IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), 15% da população vai a uma ampla categoria que engloba “eventos/centro culturais/museus”.
Então, boa parte dos 85% que não vão a museus estão indignados com parte do conteúdo da exposição "Queermuseu - Cartografias da Diferença na Arte Brasileira", do Santander por justas razões e outras nem tanto. Vamos a elas:
1 - Crianças
Conforme a Gazeta do Povo apurou, crianças visitaram a exposição que continha obras claramente pornográficas e com cenas de zoofilia. Não se trata aqui nem de fazer uma censura às obras. Existe, porém, uma classificação indicativa para qualquer produto cultural, por mais prosaico que seja: de filmes a videogames. A televisão não pode, com razão, exibir determinados programas em horários, justamente por causa das crianças. Qualquer TV por assinatura ou por streaming, como é o caso da Netflix, possui controles parentais.
Se os museus querem atrair mais público, precisam estar atentos a isso. O Santander não só desprezou algo básico, como a produtora do evento, a Rainmaker Consultoria de Imagem, Projetos e Produções, incluiu no projeto que peticionava dinheiro à Lei Rouanet cartilhas e catálogos da exposição para estudantes de escolas públicas.
2 - Dinheiro público
A renúncia fiscal é um instrumento legítimo para fomentar a produção cultural — se tem dado certo ou contemplado os produtos certos é outra história. Mas chega a ser imoral um banco que lucrou R$ 2,3 bilhões nos últimos três meses pleitear dinheiro do contribuinte — pediu R$903.560, teve aprovado o valor de R$850.560 e captou efetivamente R$800.000.
Um banco que tem 23.252 reclamações no site Reclame Aqui, a maioria por cobrança indevida de tarifas e mau atendimento. E no ranking de reclamações do Banco Central só perde para a Caixa Econômica Federal. Os problemas: (falta de) integridade, confiabilidade, segurança, sigilo ou legitimidade das operações e serviços.
3 - Religião
Existe uma tendência a relativizar qualquer ataque à religião cristã no Brasil, já que o país é composto em sua maioria por católicos e evangélicos. Se é maioria, por que deveriam se preocupar com algumas obras arte de arte, devem pensar alguns artistas. De fato, as obras expostas no Santander Cultural não foram as primeiras e nem serão as últimas a usar a religião como trampolim para a polêmica.
Nossa opinião: Tolerância e liberdade de expressão
No meio artístico, isso pode render bastante: a fama de perseguido por “fundamentalistas religiosos” e “mártir da cultura”. Na falta de talento, os dois predicados anteriores podem sustentar uma carreira longeva à base de controvérsias vazias. Os religiosos, é claro, têm todo o direito de se sentirem ofendidos e proporem o boicote. O que nos leva ao próximo tópico.
4 - Boicote vs Censura
Embora muita gente tenha se apressado para gritar “censura”, não é caso. O boicote promovido por grupos religiosos e civis contra o Santander tem toda a validade e mostra a maturidade de uma democracia na qual as pessoas podem se manifestar pelo que acreditam. Além disso, o Santander, por sua vez, tinha a possibilidade plena de continuar com a exposição, se assim quisesse. Já contra a censura promovida pelo Estado não há nada a ser feito.
Existe outro ponto que diferencia a censura do boicote. Quando o estado censura, é arbitrário. Quando qualquer grupo promove um boicote, sabe que pode dar errado, não existe garantia prévia de que o boicote funcionará. Há vários exemplos do lado oposto ter se movimentado e ter sido bem-sucedido no contra-ataque.
5 - Cultura do repúdio e o politicamente correto
Os conservadores precisam tomar cuidado para não enxergarem o mundo com um viés proibitivo. A arte muitas vezes aborda temas sensíveis ou nos apresenta a diferentes pontos de vista, muitas vezes desconfortáveis. Já houve grupos de esquerda querendo banir livros e obras de arte não adequadamente alinhadas com seu modo de pensar. Até o livro “Lolita”, de Vladmir Nobokov, uma obra-prima da literatura mundial, já caiu em certos index ideológicos.
Por isso mesmo, o grande pensador conservador Roger Scruton escreveu um libelo ao livre pensamento em seu livro “Como ser um conservador” (Editora Record):
“A cultura do repúdio marca, de outros modos, a desintegração do Iluminismo. Como é frequentemente comentado, o espírito do livre exame está, agora, desparecendo das escolas e universidades no Ocidente. Livros são inseridos ou retirados do currículo com base no politicamente correto; códigos de fala e serviços públicos de aconselhamento policiam a linguagem e a conduta de estudantes e de professores; muitos cursos são elaborados para transmitir uma conformidade ideológica em vez de estimular a livre investigação, e os alunos muitas vezes são penalizados por chegarem a alguma conclusão considerada herética sobre os principais assuntos do dia. Em áreas delicadas, como o estudo de raça e sexo, a censura é dirigida de modo patente não só aos estudantes, mas também a qualquer professor, por mais imparcial e escrupuloso, que chegue às conclusões equivocadas.”
O trecho acima não quer dizer que uma exposição como a Queer Museu não possa ser debatida, pelo contrário. Aliás, parte da reação de “luminares da esquerda”, como Luciana Genro, que acusou os críticos da exposição de serem “fascistas”, é típica de quem deseja calar qualquer dissensão. É preciso ser melhor que isso.
6 - Arte é arte
Definir o que é arte pode ser extremamente difícil. Ou fácil, depende. Desde que a Marcel Duchamp pendurou um urinol em um museu há cem anos, os limites se expandiram. Basicamente o que ele quis enfatizar foi a prevalência da ideia sobre a técnica. Por isso a discussão sobre se o que compõe a exposição do Santander é arte ou não pode ser bastante infrutífera. A partir do momento que um curador decidiu colocar aquilo dentro de um museu, pode-se dizer que é arte. Cabe discutir se é arte boa ou ruim.
Havia ali obras de Cândido Portinari e Ligia Clark — reconhecidas internacionalmente e que não estão envolvidas na polêmica. Mas, em se tratando das obras que despertaram todo o ultraje, o expediente é antiquíssimo, até reacionário. Nada mais velho que obras que atacam a religião, o capitalismo, a “sociedade”, o “homem médio”, a “normatividade”. Chegaram com um atraso de alguns séculos.
A pintura “A origem do mundo”, do francês Gustave Coubert, “famosa por sua representação rude, livre de quaisquer restrições, de um torso de mulher nu do seio à coxa, com as pernas bem abertas e o pelo cortado rente para lhe proporcionar o máximo efeito (porno)gráfico”, como descreve Will Gompertz no livro “Isso é arte?: 150 anos de arte moderna. Do impressionismo até hoje” (Editora Zahar), conseguiu ser proibido por mais de cem anos — de 1866 a 1988. Coubert era brigão, gostava de encher a cara e trocar socos, e lutava contra o establishment. Ao contrário dos colegas de Porto Alegre, que desejam, mais que tudo, pertencer ao establishment cultural tupiniquim, que luta contra inimigos inexistentes (como eles veem a Igreja Católica, os cristãos em geral e o perigoso homem médio).