O Santander teve lucro líquido de R$ 7,3 bilhões em 2016. Mesmo assim, a instituição recorreu a recursos da Lei Rouanet para investir em cultura – uma das iniciativas foi a exposição Queermuseu em Porto Alegre, fechada após protestos de grupos conservadores. Esse não foi o único questionamento provocado pela exposição, mas o fato é que direcionar o dinheiro de impostos para ações culturais sempre foi uma estratégia usada por empresas bilionárias, como os bancos.
O Itaú Cultural, instituto que gerencia as ações do banco na área, está tentando mudar esse cenário. A meta para o ano de 2017 é não utilizar recursos da Lei Rouanet. Em entrevista ao jornal Valor Econômico no fim de agosto – antes da polêmica em torno do Queermuseu –, o diretor Eduardo Saron explicou a proposta. “Um instituto cultural de uma empresa que é líder no mercado financeiro pode investir no setor sem utilizar a Rouanet”, declarou.
Em 2016, porém, a instituição foi a segunda maior captadora de recursos via Lei Rouanet, segundo dados do Ministério da Cultura. O Instituto Tomie Ohtake foi o primeiro, com R$ 19,3 milhões; o Itaú Cultural captou R$ 14 milhões, de um total de R$ 86,9 milhões aplicados na área. Isso em um ano em que o banco lucrou a cifra impressionante de R$ 22,1 bilhões.
No ano passado, a Lei Rouanet foi posta em xeque com a deflagração da Operação Boca Livre, que investigava fraudes na captação de recursos – milhões teriam sido usados em festas privadas, entre outras irregularidades. Há inquéritos policiais e ações administrativas em curso para reaver parte dos valores, por parte de empresas do setor do entretenimento, principalmente.
Em meio às críticas, o Minc passou a divulgar alguns dados, tentando dar mais transparência à operação. Entre 1992 e 2017, cerca de R$ 16 bilhões foram captados via Lei Rouanet. A maior parte dos grandes apoiadores é composta por estatais, bancos públicos e privados, informou o ministério. A Petrobras aparece com R$ 1,6 bilhão no período, em primeiro lugar; o Banco do Brasil, em 4º, com R$ 439,2 milhões; o Bradesco Vida e Previdência, em 8º; o Banco Itaucard, em 12º, com R$ 115,1 milhões; o Itaú, em 13º (R$ 112 milhões), entre outros.
Os questionamentos recentes à Lei Rouanet podem ter pesado na decisão do Itaú de usar apenas recursos próprios – Saron não estava disponível ao longo da semana para dar mais esclarecimentos – mas essa iniciativa ainda é única, pelo menos entre os grandes bancos. No dia 15 de setembro, a Caixa anunciou que vai aplicar R$ 8 milhões nos desfiles das escolas de samba do Rio de Janeiro, captados via Lei Rouanet. Poucos dias antes disso, foi divulgado o lucro da instituição no primeiro semestre: R$ 4 bilhões, o dobro do que no mesmo período de 2016.
Segundo o professor de Economia Leandro Valiati, coordenador do Núcleo de Estudos em Economia Criativa e da Cultura (Neccult) da UFRGS, a Lei Rouanet permite às empresas fazer a renúncia fiscal e elas se valem disso para apoiar projetos que não contariam com o recurso direto do governo. Nesse caso, os bancos apenas exercem seu direito conforme a lei determina. O problema, diz ele, é que os incentivos dependem muito das grandes empresas. “A lei permite o abatimento para empresas que fazem tributação pelo lucro real. É um contingente pequeno de empresas, e que lucram bastante”, explica.
A Lei Rouanet foi criada em 1991, é cheia de falhas, mas considerada fundamental para financiar uma área sem recursos, defende o meio artístico. A principal ferramenta é o incentivo fiscal, ou mecenato. Dependendo do projeto e como ele se enquadra, é possível abater 100% do valor incentivado no Imposto de Renda, até o limite de 4% para pessoa jurídica e 6% para pessoa física. Ou então dedução de 30% (patrocínio) ou 40% (doação, sem promoção da marca ou do nome), até o limite de 4% do IR de pessoas jurídicas; e dedução de 60% (patrocínio) ou 80% (doação), até o limite de 6% do IR de pessoas físicas.
Para Valiati, o financiamento cultural precisa ser repensado no Brasil. “É preciso criar mecanismos para atrair as pequenas empresas também, e incentivar a doação feita por pessoas físicas”, observa. Ele destaca, porém, que o setor não pode abdicar dos recursos atualmente destinados pelas grandes empresas. “Mas é preciso ter mecanismos justos, que sirvam de estímulo para se usar recursos próprios”, ressalta.
No meio cultural, há um receio muito grande com os desdobramentos da polêmica envolvendo o Queermuseu e o Santander. A instituição não quis se manifestar a respeito; apenas confirmou que está verificando o caminho legal para direcionar à Receita Federal os R$ 800 mil de incentivo fiscal que tinham sido direcionados à exposição, fechada um mês antes do prazo previsto.
“No caso do Santander juntou uma porção de temas delicados, mas quem saiu perdendo foi a cultura de um modo geral”, avalia o consultor Manoel Marcondes Neto, autor de vários livros de marketing cultural. O temor, na área, é que os questionamentos que a instituição sofreu prejudiquem futuros investimentos. “Muita gente que hoje poderia patrocinar projetos não faz nada, porque não quer seu nome vinculado com A ou B”, relata Marcondes, que também é professor na UERJ.
Segundo Valiati, a sociedade precisa lutar para que o atual momento de crise econômica e a polarização política não sirvam de desculpa para redução de investimentos em cultura. “A indústria cultural e criativa representa hoje 1,3% do PIB do Brasil. O país não pode virar as costas para um grande patrimônio do povo. Ao contrário da nossa política e economia, nossa arte é mundialmente reconhecida, e é um caminho para o desenvolvimento econômico sustentável”, defende.
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