Tramitam no Senado dois Projetos de Lei, os PLs 2.331/2022 e o 1.994/2023, dos senadores Nelsinho Trad (PSD-MS) e Humberto Costa (PT-PE), cujo objetivo é regular as plataformas de streaming no Brasil, como Netflix, Amazon Prime e Disney Plus, entre outras.
Mesmo que com diferenças pontuais, ambas as propostas trazem dois pontos controversos: a taxação dos serviços, que chega a até 4% dos rendimentos das empresas, e a quantidade de filmes nacionais que devem ser apresentados em seus catálogos de filmes, a chamada de cota de tela.
O PL 1.994/2023 estabelece que a porcentagem de títulos nacionais nos catálogos das plataformas de streaming seja de, no mínimo, 20%. Especialistas veem a proposta com reservas. “Não podemos criar regras excessivas que punem as empresas que querem investir”, afirma Ricardo Rihan, que foi secretário do audiovisual no governo Bolsonaro e é sócio fundador da Lighthouse produções cinematográficas.
“Conceitualmente, se você tem uma cota de 20% para a produção nacional, esse percentual vai limitar os outros 80%”, alerta Rihan, mostrando que a proposta poderia levar a uma redução no volume total de títulos disponíveis nas plataformas.
Além disso, o ex-secretário afirma que é preciso criar uma legislação para o audiovisual que englobe as plataformas de vídeo sob demanda (VoD), sem impor regulamentação e regras excessivas que possam inibir o desenvolvimento e o crescimento do setor e que, por essa razão, impactem de forma negativa o audiovisual brasileiro.
Audiência Pública
Na semana passada, a Comissão de Educação e Cultura (CE) do Senado Federal organizou uma audiência pública a fim de debater as propostas. De um lado, representantes das plataformas, como Netflix e Amazon, defenderam a adoção de regras equilibradas para manter a viabilidade dos serviços no país.
Por outro lado, representantes de alguns setores do audiovisual defenderam que é preciso haver investimentos no audiovisual nacional de modo a atender demandas regionais e de grupos específicos que, segundo eles, não têm representação ampla no setor, como mulheres e indígenas, entre outros.
A princípio, ambos os PLs propõem uma taxação progressiva de até 4% do faturamento das plataformas com os serviços de streaming a título de Contribuição para o Desenvolvimento da Indústria Cinematográfica Nacional, ou Condecine.
Condecine, FSA e o financiamento do audiovisual
Instituído em 2001, por meio da Medida Provisória 2.228, o Condecine foi criado para taxar a veiculação, a produção, o licenciamento e a distribuição de obras cinematográficas e videofonográficas. Os recursos arrecadados são destinados para o Fundo Setorial do Audiovisual (FSA).
O FSA é o principal e maior mecanismo de incentivo ao audiovisual brasileiro, com investimentos em toda a cadeia produtiva do setor, desde a infraestrutura, capacitação e financiamento de produções. A gestão desses recursos é feita pela Agência Nacional de Cinema (Ancine), criada pela mesma MP.
“O Condecine, o FSA e a Ancine são exemplos de políticas de grande efeito, que contribuíram enormemente para o desenvolvimento da produção audiovisual independente no Brasil”, afirma Rihan, que está prestes a lançar seu último filme, Rodeio Rock, e que detém os direitos para contar a história de Celso Daniel, ex-prefeito de Santo André pelo PT que foi assassinado em 2002.
Para se ter uma ideia da importância e do volume de recursos que o setor arrecada, segundo dados disponibilizados pela Ancine, em 2022, os valores totais foram da ordem de R$ 1,1 bilhão.
Com a Desvinculação de Receitas da União (DRU), mecanismo que permite ao governo federal usar livremente 20% de todos os tributos federais vinculados por lei a fundos ou despesas, o montante cai para cerca de R$ 800 milhões.
Inclusão das plataformas de streaming na contribuição para o audiovisual
Atualmente, as plataformas de streaming estão isentas de contribuir para o Condecine. A última atualização nas normas para a Contribuição ocorreu em 2011, com a tramitação do marco regulatório da TV Paga (Lei 12.485/2011), quando foi estipulada a taxação das TVs por assinatura, entre outras regras.
Para tanto, além das propostas em tramitação no Senado, o Ministério da Cultura (Minc) formou um Grupo de Trabalho (GT) para estabelecer o que chama de Marco Regulatório do VoD. Joelma Gonzaga, secretária do Audiovisual do Minc, levou os resultados do relatório elaborado pelo GT à Audiência Pública.
A proposta do grupo vai bem além da contribuição máxima prevista nos PLs (4%). “A legislação que está sendo construída traz a obrigação de investimento direto, as plataformas VoD devem investir, pelo menos, 10% do seu faturamento bruto anual em conteúdo realizado por produtoras brasileiras independentes”, disse a secretária.
As taxações e o consumidor
Durante a audiência, as conclusões do GT foram contestadas de forma indireta por representantes das plataformas e até por integrantes do Senado. O relator dos projetos na CE, o senador Eduardo Gomes (PL-TO), ofereceu uma emenda substitutiva ao PL 2.331/2022, na qual a contribuição deve ser de até 1% da arrecadação das plataformas.
O senador afirma que o objetivo da nova emenda é “contemplar a visão mais atual das demandas e realidades do setor”. Além da emenda ao PL 2.331, o senador ainda emitiu um parecer pela rejeição do PL 1.994/2023. As plataformas acataram a proposta do senador.
Andressa Pappas, gerente e diretora nacional de relações governamentais da Motion Picture Association of America [Associação de Cinema da América] (MPA), que representa plataformas como Disney, Netflix, Paramount e Universal, saudou a proposta de emenda de Gomes.
“O substitutivo por ele apresentado reflete um modelo que eu chamaria de funcional a ser aplicado ao nosso segmento de vídeo sob demanda, que compreende e atende às particularidades do nosso mercado brasileiro, e que afasta efeitos negativos que minariam o florescimento e a sustentabilidade da nossa indústria”, afirmou.
Falta de uma abordagem sistêmica e oneração de impostos
Ao final de sua apresentação, Andressa ainda chamou atenção para o que chamou de visão pontual do governo, que tem proposto uma série de regulações que impactam o setor de forma desconexa.
Além dos projetos em questão, também pode ser citado o PL 2.370/2019 que discute os direitos autorais. Não é de agora a demanda de atores e demais artistas para que seja estabelecida a cobrança de direitos de autor e de imagem quando obras das quais participam são reexibidas ou colocadas em catálogos de streaming, por exemplo.
A música possui um sistema que pode ser entendido como similar ao pretendido no PL 2.370, o ECAD, que repassa porcentagens a cantores e compositores pelas reproduções de suas obras em rádios, shows, apresentações de teatro, etc.
No caso das plataformas de VoD, a acumulação de taxas como o ECAD e a contribuição ao Condecine, dentre outras, poderia levar a um aumento no valor das assinaturas e, até mesmo, à inviabilização do modelo de negócios no país.
“Qual impacto que esse conjunto todo, se ganha concretude em um curto espaço de tempo, tem na viabilidade operacional e financeira dos provedores de conteúdo? Qual impacto que isso geraria na qualidade e quantidade de obras que são produzidas por esses provedores de conteúdo? Portanto, qual o impacto na criação de emprego, na geração de renda, na própria promoção da cultura brasileira”, questionou Andressa.
As plataformas investem em produções brasileiras
Um ponto levantado tanto por Andressa quanto por representantes de outras plataformas foram os investimentos que já são feitos no audiovisual nacional. A executiva da MPA disse que as empresas que representa são responsáveis por centenas de coproduções com o Brasil.
Carla Comarela, gerente sênior de políticas públicas da Amazon, afirmou que o Prime Video, plataforma de VoD da empresa, em parceria com produtoras nacionais, já realizou 30 produções originais brasileiras, algumas das quais se encontram entre as mais acessadas no Brasil.
“A produção dessas 30 obras já gerou mais de 10 mil empregos diretos e indiretos e movimentou a economia das cidades onde as filmagens foram feitas”, disse Carla. Ela ainda afirmou que os projetos “envolveram mais de 5 mil atores e atrizes em elencos principais e secundários”.
Tanto os PLs originais quanto a emenda do senador Gomes tratam dessas coproduções. O PL 2.331 prevê que tais investimentos proporcionem até 50% de desconto na contribuição das plataformas para o Condecine, enquanto o Substituto propõe um percentual maior, de 70%.
Ainda que esse tipo de investimento gere retornos para as produtoras e distribuidoras brasileiras, também há pontos que merecem atenção por parte dos reguladores. Rihan alerta que certas plataformas concentram as decisões sobre o que as produtoras brasileiras devem produzir em seus escritórios no exterior.
“Todas as plataformas de streaming devem delegar as decisões sobre produções ou coproduções brasileiras para pessoas que estejam presentes e que entendam o audiovisual nacional, aqui no Brasil. Nós temos uma qualidade de conteúdo que pode ajudá-las a ganhar assinantes no mundo inteiro”, afirmou.
A importância do mercado de streaming no Brasil
Atualmente, há 59 plataformas de streaming no país, segundo dados da Ancine. Ao todo, essas empresas movimentam R$ 4 bilhões com os serviços de VoD. Já o setor de audiovisual responde por R$ 56 bilhões, conforme informado por Andressa.
Ela ainda citou dados da Frontier Economics que registraram um crescimento de 70% na receita das plataformas de VoD no Brasil, entre 2012 e 2019. A expectativa é de que chegue a R$ 7,9 bilhões em 2025.
Nos EUA, um relatório da Insider Intelligence demonstrou que, atualmente, as plataformas de streaming concentram mais de 40% do tempo que o público passa na frente da TV, diante de 51% com TV aberta e por assinatura.
No entanto, as estimativas são de que já em 2024 essa tendência seja revertida, com os expectadores passando 2h53 diárias em serviços de vídeo digital, contra 2h48 nas TVs tradicionais.
Os PLs 2.331/2022 e 1.994/2023 tramitam em conjunto no Senado e estão em análise na Comissão de Educação, presidida pelo senador Flávio Arns (PSB-PR).
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