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Como o sentimentalismo tóxico contaminou a discussão sobre a Covid-19

Escolhas fazem parte da vida. Somente um sentimental irresponsável imagina poder viver num mundo sem escolhas. (Foto: AFP)

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Na coletiva de imprensa de sexta-feira (20), na qual anunciava o isolamento de Nova York por causa do coronavírus, o governador Andrew Cuomo disse: “Quero poder dizer ao povo de Nova York que fiz tudo o que podia. E se tudo o que estamos fazendo salvar apenas uma vida, ficarei feliz”.

Essa frase reflete um sentimentalismo desastroso. Tudo pelo bem da vida física? E quanto à justiça, beleza e honra? Há muitas coisas mais preciosas do que a vida. E ainda assim vivemos num frenesi tão grande em Nova York que muitos parentes abdicam de visitar os familiares doentes. Os clérigos não visitam os doentes nem consolam aqueles que estão de luto. A própria Eucaristia hoje está subordinada ao falso deus da “salvação”.

A verdade é outra vítima do sentimentalismo. A imprensa bombardeia o público com alertas sobre os perigos do coronavírus, quando a verdade é que apenas uma porcentagem pequena da população de Nova York corre perigo. Num acordo tácito, líderes, autoridades de saúde pública e formadores de opinião conspiram para fomentar uma atmosfera de crise a fim de que obedeçamos a suas medidas radicais.

Vários amigos discordam de mim. Eles apoiam as medidas atuais, insistindo no argumento de que cristãos devem defender a vida. Mas a causa pró-vida deles trata da batalha contra o assassinato, não uma cruzada malfadada contra a finitude humana e a realidade dolorosa da morte.

Outros falam como se escolhas fossem um sinal de fracasso moral. Mentira. Estamos sempre fazendo escolhas. Somente a abundância extraordinária da nossa sociedade nos permite fingirmos que não. Não gastamos 100% do PIB em saúde. Mesmo em tempos normais, escalonamos a saúde em termos de preço, tempo de espera e qualidade dos médicos. Não fazemos transplantes de órgãos a esmo. Nossa finitude sempre exige o duro esforço moral da escolha. Essa demanda é hoje ainda mais evidente porque o poderoso vírus exerce uma pressão enorme sobre nosso sistema imunológico e sistema de saúde. Mas a escolha sempre existe.

Em outras palavras, somente um sentimental irresponsável imagina poder viver num mundo sem escolhas. Jamais devemos fazer o mal do que possa vir o bem. Neste sentido, São Paulo é bem claro. E temos sempre de decidir que bem podemos e devemos fazer, uma decisão que quase sempre exige não fazer outro bem, não curar outra ferida e não salvar uma vida diferente.

Há um lado demoníaco no sentimentalismo de salvar vidas a qualquer custo. O diabo governa um mundo no qual o poder da morte é alardeado pela manhã, tarde e noite. Mas o diabo não pode governar diretamente. Só Deus tem poder de vida e morte e, assim, o diabo só pode governar indiretamente. Para isso ele precisa contar com nosso medo da morte.

Na imagem simples que fazemos da situação, imaginamos que o medo da morte surge apenas por causa da brutalidade de ditadores cruéis e carrascos sedentos de sangue. Mas a verdade é que o diabo prefere humanistas sentimentais. Não gostamos de sentir o coturno da opressão em nossos pescoços e, quando temos a oportunidade, a maioria de nós resiste. É muito melhor, então, disseminar o medo da morte sob pretextos moralistas.

Isso é o que está acontecendo em Nova York enquanto escrevo. A imprensa continua com seus alertas. E a mensagem não é apenas a de que eu ou você podemos acabar numa sala de emergência, buscando o ar. Ela nos diz mais que podemos transmitir o vírus aos outros e provocar a morte deles.

Assim, o isolamento em massa da sociedade para enfrentar a disseminação da Covid-19 gera uma atmosfera demoníaca de perversidade. O governador Cuomo e outras autoridades insistem em dizer que o poder da morte deve orientar nossas ações. Líderes religiosos obedeceram a esse decreto, interrompendo a proclamação do Evangelho e a distribuição do Pão da Vida. Assim eles sinalizam que também aceitam o domínio da morte.

O homem é feito de vida, não de morte

Há mais de cem anos, os norte-americanos enfrentaram uma pandemia terrível de gripe que afetou todo o mundo. A reação deles foi bem diferente da nossa. Eles continuaram a ir aos cultos e apresentações musicais, a disputarem partidas de futebol americanos e a se reunir com os amigos.

Interpretamos essa reação como se ela fosse um conto de fadas: aquelas pessoas de antigamente eram supersticiosas e não conheciam a ciência médica. Eles abandonaram os fracos para que eles fossem exterminados pela doença sem motivo. Nós, ao contrário, somos científicos e proativos, enfrentando a ameaça da morte com mais inteligência e retidão moral. Interrompemos os cultos religiosos e adiamos os shows. Tenho certeza de que cancelaremos reuniões familiares também. Sabemos o que é mais importante — salvar vidas!

Os antigos que enfrentaram a Gripe Espanhola, há muito mortos, não eram mal informados. As pessoas daquela época eram atendidas por médicos que entendiam bem a disseminação da doença e os métodos de quarentena. Ao contrário de nós, contudo, aquela geração optou por não viver sob o domínio da morte. Eles insistiam em dizer que o homem era feito de vida, não de morte. Eles abaixaram a cabeça diante da tempestade e enfrentaram suas rajadas, mas se mantiveram firmes e continuaram a trabalhar, rezar e brincar, insistindo em mostrar que o medo da morte não determinaria a sociedade e suas vidas.

De nós, ao contrário, exigem que nos acovardemos no medo de que morremos, redobrado pelo medo de que provocaremos a morte dos outros. Tiram de nós a coragem. Se eu desse um jantar hoje à noite para resistir à paranoia e histeria, seria denunciado. Ontem, o governador Cuomo viu alguns jovens jogando basquete num parque de Nova York. “Isso tem que acabar – e para já!”, ordenou ele. Todos têm de viver sob o domínio da morte.

Alexander Solzhenitsyn rejeitava o princípio materialista da “sobrevivência a qualquer preço”. Isso tira de nós nosso caráter humano. Isso serve para analisarmos tanto o destino dos outros quanto o nosso. Temos de rejeitar o moralismo excepcional que considera o medo da morte o centro da vida.

O medo de morrer e causar mortes é onipresente – alimentado por uma ideia materialista de sobrevivência a qualquer preço que líderes cristãos aceitam sem contestar, provavelmente porque eles provavelmente aceitam em segredo as ideias materialistas de nossa época. Enquanto permitirmos que o medo reine, ele fará com que os fiéis deixem de seguir o que Cristo orienta em Mateus 25. Já está acontecendo.

R. R. Reno é editor da First Things.

© 2020 First Things. Publicado com permissão. Original em inglês

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