Como qualquer um que curte uma boa provocação, me permitam sugerir que a autora de “Precisamos Falar Sobre Kevin”, Lionel Shriver, merecia um lugar especial no hall da fama das provocações ao ter decidido vestir um sombreiro para dar o seu discurso sobre o que ela considerava as bobagens no debate em torno do tema “apropriação cultural”.
“Mas o que isso tem a ver com escrever ficção?”, ela perguntou acerca de sua própria escolha de vestir o chapelão de aba larga, que, ao ter sido usado por alunos numa festa do Bowdoin College, foi motivo de revolta e manchetes nos Estados Unidos. “A moral dos escândalos do sombreiro é clara: você não pode usar o chapéu dos outros. É isso que a gente é paga para fazer, não? Entrar na cabeça dos outros e experimentar os seus chapéus”.
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Essa piada visual ajudou Shriver a transmitir um argumento sério sobre os perigos em exigir que os autores escrevam só sobre os grupos aos quais eles mesmos pertencem, e ajudou também a dar uma forma literal à ideia de que qualquer tipo de escrita, mas sobretudo a escrita de prosa ficcional, é um exercício de empatia, de compreensão.
Apesar de parecer estranho que uma declaração dessas sequer precise ser feita, vivemos em tempos estranhos. Cada vez mais o tempo das discussões nas artes, mais do que nunca, vem sendo consumido por debates sobre “apropriação cultural” – sobre se um dado cantor tem permissão para cantar com um certo sotaque; se um diretor tal tem o direito de contar certas histórias; se uma dançarina tem permissão para fazer certas coreografias. A literatura de ficção não está imune a essas disputas, e Shriver é um dos nomes que já se enfastiou disso.
Tenho a esperança de que o conceito de ‘apropriação cultural’ seja só uma moda passageira: pessoas com origens diferentes passando umas pelas vidas das outras e trocando práticas e ideias é evidentemente um dos aspectos mais produtivos e fascinantes da vida urbana moderna
“Tenho a esperança de que o conceito de ‘apropriação cultural’ seja só uma moda passageira: pessoas com origens diferentes passando umas pelas vidas das outras e trocando práticas e ideias é evidentemente um dos aspectos mais produtivos e fascinantes da vida urbana moderna”, disse Shriver durante a sua fala, numa declaração que nos lembra que “apropriação cultural” é só outro modo de dizer “cultura”. Exceto pelas tribos isoladas dos desertos e florestas tropicais, distantes de qualquer contato externo, todas as culturas humanas tomam coisas emprestadas de outras culturas humanas. Algumas características são absorvidas e outras rejeitadas. O que permanece é, simplesmente, a “cultura”.
Ideias preconcebidas
Infelizmente, é provável que o debate esteja aqui para ficar, como deixaram muito claro já as pessoas que saíram, enfurecidas, durante o discurso de Shriver e os esforços apressados dos organizadores do Brisbane Writers Festival para preparar um novo evento: um “direito de resposta” a fim de combater as opiniões devastadoramente contundentes de Shriver.
Yassmin Abdel-Magied parecia falar em nome de muitos dos ofendidos numa invectiva contra Shriver publicada no site do The Guardian. De fato, ela ficou tão abalada pelas opiniões de Shriver que não pareceu perceber direito a ironia desse trecho em seu texto, escrito logo após o episódio:
“O fato de que Shriver recebeu uma plataforma com tamanho destaque para despejar esse ódio mostra que nós, como sociedade, ainda valorizamos esse tipo de retórica o suficiente para julgá-lo digno do discurso principal. A cerimônia de abertura de um festival de literatura poderia ter sido agraciada com qualquer um de tantos autores e pensadores brilhantes que nos desafiam a sermos mais do que somos. A ficarmos desconfortáveis. A progredirmos”.
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Parece que fica claro que Abdel-Magied não estava procurando nem um desafio, nem alguém para deixá-la desconfortável, mas alguém disposto a reforçar as suas próprias ideias preconcebidas.
Bitolamento
Que o Brisbane Writers Festival não seja um espaço seguro para Magied não significa nada. Mas, por trás da sua reclamação, há uma mentalidade que é muito mais perturbadora, a sugestão de que os escritores só devem escrever sobre suas próprias experiências, que os personagens de origens diferentes devem ser tratados com luva de pelica. Como observou Shriver em seus comentários, todo mundo que escreve está diante de um dilema: é obrigatório incluírem uma porção de personagens não-brancos, do contrário serão acusados de apagamento ou embranquecimento, porém os autores não podem se aprofundar neles, nem fazer deles os protagonistas, do contrário serão acusados de apropriação.
Levada às suas conclusões lógicas, uma tal regra significa o bitolamento dos autores de todas as origens. Imagine sugerir que os escritores de nações africanas deveriam evitar escrever sobre a Europa ou as Américas, ou que os de origens mais pobre deveriam evitar escrever sobre os ricos, ou que uma mulher chinesa só poderia escrever sobre mulheres chinesas. Afinal, o que é que esses autores sabem sobre brancos de classe média, não é?
A grande alegria da ficção é sua capacidade de nos colocar nas mentes e corpos e situações e épocas de personagens que, de outra forma, seriam incognoscíveis para nós. É um modo de compreendermos melhor os outros e, nisso, compreendermos melhor o mundo.
Há autores que, sem dúvidas, trabalham melhor dentro de um espaço com o qual estão familiarizados: basta ver os livros, ao mesmo tempo engraçados e profundos, de Kingsley Amis sobre a classe média-alta inglesa; os retratos de Stephen King do Maine rural; o sul flagelado pela pobreza em William Faulkner. Esses autores trazem à vida um mundo com o qual seus leitores podem não estar familiarizados, expandindo horizontes e gerando empatia no processo.
Cultura pobre
Sugerir que essa seja a única forma adequada de ficção, porém, é de uma miopia desastrosa. Anthony Burgess não foi nenhum sociopata, porém entendemos a natureza do livre arbítrio com maior precisão graças ao seu “Laranja Mecânica”. Adam Johnson nunca foi um órfão norte-coreano fingindo ser um general, mas “The Orphan Master’s Son” nos oferece um olhar fascinante sobre o poder do totalitarismo. Ou, como Shriver coloca, “Eu mesma descrevi um massacre numa escola, e odeio ter que confessar isso para vocês: eu também nunca feri fatalmente, com flechas, sete crianças, uma professora e um funcionário da cantina”. No entanto, ela conseguiu aplausos e elogios por sua representação da mãe perturbada de um menino perturbado.
Exigir que os escritores só escrevam sobre aquilo que conhecem em primeira mão não é a chave para uma maior diversidade nas prateleiras; pior, é provável que isso diminua as possibilidades de representações de personagens pertencentes a minorias. Nosso mundo literário e nossas imaginações acabariam empobrecidos. Nesse aspecto, argumentos contra a “apropriação cultural” são o inimigo da empatia.