No Senado, na semana passada, o republicano Richard Burr, da Carolina do Norte, perguntou a James Comey se ele tinha alguma dúvida de que a Rússia tentara interferir nas eleições de 2016, ao que o ex-diretor do FBI respondeu, com uma única palavra: "Nenhuma."
De fato, ele prosseguiu, dizendo ao público norte-americano que os russos o fizeram "com determinação, sofisticação e com um suporte tecnológico impressionante". E previu: "Eles vão agir de novo. Os EUA são seu alvo."
Doses de vodca no Kremlin para comemorar, certo? Não exatamente.
Sem dúvida, Vladimir Putin continua satisfeito por ter violado a democracia norte-americana e constrangido Hillary Clinton, mas a prioridade do russo é outra, bem mais urgente: suspender as sanções do Ocidente.
Aprovadas depois da anexação da Crimeia pela Rússia, em 2014, elas estão em vigor para impedir que indivíduos e empresas russos obtenham ajuda financeira e tecnológica essencial externa. E mesmo que Hillary tenha conseguido perder uma eleição relativamente fácil, tudo indica que a Rússia sofrerá uma punição ainda mais drástica, para atingir o círculo de "capos", estatais e criminosos cibernéticos que rodeia o líder.
Putin em desvantagem
Embora os analistas estejam em pânico com a ressurgência russa, a verdade é que Putin não está em vantagem; na verdade, está perdendo terreno. Com a intervenção desonesta que promoveu no leste da Ucrânia, fez com que o nível de apoio daquele país ao Ocidente retomasse os níveis de 1991.
O suporte contínuo da Rússia ao carniceiro sírio, Bashar Assad, resulta em ganhos concretos mínimos para Moscou, enquanto os custos não param de crescer. Segundo uma estimativa, 25% do volume de exportação global de armas russas, em 2015, foi para a Venezuela, em transações quase sempre efetuadas através de empréstimos. Na semana passada, Moscou cortou US$1 bilhão da projeção de receitas orçamentais estatais.
Por isso, não é nada bom, para dizer o mínimo, para Putin a constatação de que não só é pouco provável que os EUA suspendam as sanções à Rússia como devem reforçá-las. Segundo o republicano da Carolina do Sul Lindsey Graham, o projeto de lei nesse sentido deve ser aprovado com folga, inclusive no Congresso, para anular o veto presidencial. Quando foram impostas, em 2014, e reforçadas no final de 2016, elas assumiram a forma de decreto, mas se Graham e seus colegas conseguirem o que querem, a nova versão, mais rígida, será transformada em lei.
Sobrevivência
Os senadores que tomaram a iniciativa estão mais que certos em levar a medida adiante – afinal a Rússia tem que pagar um preço alto pela guerra cibernética que declarou aos EUA e outros adversários têm que ser detidos. O objetivo de Putin é a sobrevivência de seu regime. A grandiosa estratégia em longo prazo da Rússia, pelo que se vê no momento, consiste em esperar que o Ocidente se enfraqueça ou quebre, inclusive ajudando no processo. Há muita coisa em jogo.
Enquanto nossos legisladores tentam pressionar Moscou, o Comitê de Inteligência do Senado, a Comissão de Inteligência da Câmara e o conselho especial de Robert Mueller estão investigando as alegações de que a equipe de campanha de Trump possa ter trabalhado junto com a inteligência russa para hackear e manchar a campanha de Hillary Clinton. Os norte-americanos vão acabar conhecendo a verdade.
Infiltração
Mas não precisamos esperar os relatórios oficiais para saber que a ideia de que os russos tenham pedido ajuda à equipe de Trump é, no mínimo, hilária. É como se LeBron James viesse me pedir dicas de arremesso. Eu bato uma bolinha na rua, com os amigos, mas pera lá.
Quem conhece tipos como Carter Page ou Roger Stone, ou mesmo os mais experientes Paul Manafort e Michael Flynn, morreria de rir com a sugestão de que os russos precisam de sua ajuda. Será que algumas das figuras do círculo de Trump tinham a intenção de reforçar o status ou engordar a poupança grudando nos russos e, conscientemente ou não, se expuseram a agentes secretos estrangeiros? Talvez. No entanto, a história do conluio é só uma atração secundária. Grave mesmo é a possibilidade de a Rússia se infiltrar no mundo de Trump para tentar influenciar a política norte-americana.
Putin pode ser ruim de estratégia – veja o que acontece na Síria, na Ucrânia e na Venezuela –, mas é ágil em termos táticos, principalmente quando se trata de operações secretas. Trump há muitos anos mantém um diálogo com os oligarcas russos e, de acordo com as autoridades de lá, acabou se tornando um instrumento de escuta ambulante do Kremlin. É verdade? Saberemos com o tempo, quando a penetração passar a ter o destaque que merece, em lugar do conluio.
A raiz do fiasco político em que Trump está metido é o fato de que, como candidato e presidente eleito, ele supostamente quis fazer algo mais do que inconsequente e idiota: suspender as sanções à Rússia logo depois de o país ter interferido em uma eleição, em parte, para beneficiá-lo. Não é surpresa que a especulação insista em que ele seja culpado de conluio, ou mesmo de se abrir para a chantagem.
Mas quem precisa de chantagem quando Trump tem uma afeição genuína por homens fortes como Putin (e também os líderes do Egito, das Filipinas, da Arábia Saudita)? E parece desgostar com o mesmo ímpeto de líderes democráticos e mulheres no poder, como Angela Merkel que, por acaso, está limitada pelo Estado de direito.
Conluio
Mais que isso, é possível que o presidente tenha suplicado a vários membros do governo que negassem publicamente qualquer sinal de conluio porque não houve nenhum de sua parte e ele encara o furor com que o assunto é tratado como uma iniciativa generalizada de deslegitimar sua vitória. (O que, até certo ponto, é verdade.) Porém, a atitude decisiva de Comey sob juramento, na quinta, reforçou a possibilidade de que a arbitrariedade de Trump afunde seu governo, acusado de obstruir a justiça.
Mais ainda, uma investigação de conluio no universo trumpiano pode se transformar em algo comparável à busca de bactérias em um monte de esterco. Uma parte considerável do setor imobiliário hipervalorizado envolve lavagem de dinheiro – russo, chinês, árabe e até iraniano.
Isso posto, a ironia é que a Putinofilia de Trump tem razão de ser, ainda que involuntariamente: os EUA precisam da Rússia dentro da ordem internacional para manter a própria segurança e a estabilidade global. A tentativa de isolamento, opção que Obama buscou, falhou espetacularmente.
As eleições de 2016 foram um lembrete dramático de que a Rússia tem cacife e deve sempre ser levada em consideração. A política que defende, a de esperar pelo colapso "inevitável" do regime em consequência de seus fracassos econômicos, prova a ignorância do modus operandi russo. A única opção viável é se engajar com eles – mas para o norte-americano, isso tem que ser feito a partir de uma posição de força.
O que será de Trump? Apesar dos elementos suspeitos que trabalharam em sua campanha, ele reuniu diversos indivíduos excepcionais para seu governo – e quanto mais interajo com eles, mais tenho a impressão de que são personagens de uma tragédia grega, cujo protagonista é dono de uma falha de caráter irreparável.
Na semana passada, apesar dos esforços do presidente de ignorá-lo, Comey voltou ao palco, e sua participação nesse drama não vai terminar tão cedo. Ao contrário de Putin, o destino de Trump será decidido pelas instituições de nossa democracia, que já se provaram mais fortes que os fundadores desta nação jamais imaginaram.
*Stephen Kotkin é professor de História de Princeton e membro da Instituição Hoover da Universidade Stanford, além de autor de inédito "Stalin: Waiting for Hitler, 1929-1941”