Junho de 1994. Um astro do futebol americano é preso acusado de matar a ex-mulher e um amigo dela. Os 16 meses que se seguiram foram algo que o mundo jamais havia presenciado e talvez nem as mentes mais criativas de Hollywood poderiam imaginar. Não foi apenas um julgamento cheio de reviravoltas que colocou um país inteiro em frente à televisão, acompanhando como uma final de campeonato. Primeiro, a saga de O.J. Simpson foi, possivelmente, o prenúncio da chamada “sociedade do espetáculo” que vivemos hoje. E, segundo, mostrou como, séculos depois, a divisão racial segue incrustada na cultura dos americanos.
Foram necessários 22 anos para que o episódio fosse devidamente assimilado pela indústria do entretenimento. Tamanha espera não foi em vão. Duas das melhores produções lançadas no ano passado dissecam aquele que foi chamado de “o julgamento do século”: “O.J.: Made in America”, um documentário de mais de sete horas produzido pela ESPN que levou o Oscar da categoria no fim de fevereiro; e “American Crime Story: The People vs. O.J. Simpson”, série de ficção produzida pelo canal FX e disponibilizada no mês passado pela Netflix, após faturar os principais prêmios Emmy e Globo de Ouro.
Para quem não acompanhou ou não se recorda, um breve resumo da história: O.J. Simpson era um dos maiores astros do futebol americano à época, estrelando comerciais e participando da comédia “Corra que a Polícia Vem Aí”. Em junho de 94, a ex-mulher Nicole Brown Simpson e um amigo dela, Ron Goldman, foram encontrados mortos a facadas. Marcas de sangue foram encontradas no carro e na casa de O.J., o que levou a polícia a prendê-lo. Para se defender, o atleta contratou um time de advogados da pesada, que protagonizou um embate com promotores acompanhado passo a passo pela mídia. Em outubro de 95 veio o veredito, que absolveu o atleta.
Produções complementares
As duas produções se complementam. “American Crime Story” é a versão romanceada e, como tal, dá todos os contornos dramáticos ao caso (que já eram intensos na vida real). Em dez capítulos e uma narrativa impecável, dá conta de todos os lances do julgamento: a fuga de O.J. (interpretado por Cuba Gooding Jr.), a formação e os conflitos do time dos sonhos de advogados (John Travolta, Courtney B. Vance e David Schwimmer, o Ross de “Friends”), a luta profissional e pessoal dos promotores (Sarah Paulson e Sterling K. Brown, brilhantes), o jogo de bastidores, as trapalhadas, a espetacularização da Justiça, o barril de pólvora do conflito racial.
Já “O.J.: Made in America” é um trabalho de investigação dos mais brilhantes. Apesar de produzido por um canal esportivo, está muito longe de se resumir à história do O.J. atleta. Esse é apenas o ponto de partida do documentário dirigido por Ezra Edelman, que primeiro apresenta quem foi e como O.J. Simpson foi parar em um tribunal. A partir disso, são perpassadas décadas de história americana, analisando conflitos raciais e uma cultura acostumada a endeusar celebridades.
Lançados quase que simultaneamente, “People vs O.J. Simpson” e “O.J.: Made in America” contam a mesma história, ocorrida há distantes 22 anos. O que poderia soar como datado dialoga com a realidade da maneira mais impactante possível. Vendo hoje, o “julgamento do século” funciona como um espelho da sociedade atual, com suas condenações dentro e, especialmente, fora dos tribunais. E não estamos falando apenas dos EUA. Não à toa, é no Judiciário, com seus heróis e vilões, que está a grande trama da vida real acompanhada pelos brasileiros nos últimos anos.
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