É possível dizer, a favor de Shulamith Firestone, que ela não foi a primeira pessoa a propor um modelo utópico de sociedade que abolia a família em nome de um suposto bem maior. Platão fez algo parecido em sua República, e foi seguido por outros autores desde então. Mas também é verdade que, quando ela apresentou sua utopia, já estava claro que as utopias não funcionam.
Uma das autoras mais influentes do feminismo radical, Shulamith escreveu “A dialética do sexo”, lançado em 1970. Embora tenha morrido no esquecimento, ela influenciou uma geração de feministas.
Na sua obra mais famosa, ela aplicou o sistema socialista de Karl Marx e Friedrich Engels à dinâmica familiar. Mulheres e crianças seriam, na lógica dela, classes oprimidas pelos homens da mesma forma que os proletários supostamente eram oprimidos pelos burgueses.
O diagnóstico marxista leva a uma conclusão marxista: somente uma “revolução feminista” poderia mudar o estado das coisas.
A revolução, na verdade, é uma revolta contra a natureza, que atribuiu às mulheres o papel de gerar filhos. "A natureza produziu a desigualdade fundamental", lamentou Shulamith. Se as diferenças biológicas são a origem do privilégio masculino, é preciso lutar contra as diferenças biológicas.
Família ortodoxa, militância radical
Shulamith nasceu em Ottawa, Canadá, e morou no estado americano do Missouri antes de se mudar para Chicago e, por fim, Nova York.
Ela foi criada em uma família de judeus ortodoxos e estudou artes antes de se envolver no movimento feminista. Quando publicou seu livro mais influente, ela tinha apenas 25 anos.
A obra apregoa que uma verdadeira revolução feminista se tornaria possível pela primeira vez na história graças à evolução da tecnologia e da cultura. Shulamith não esconde que sua tese se baseia em uma perspectiva marxista — com um pouco de Sigmund Freud.
Não por acaso, o livro começa com uma citação de Friedrich Engels sobre as mudanças constantes na sociedade. Apesar da deferência, Shulamith Firestone critica a análise marxista clássica, que se concentrou na análise econômica e não foi a fundo o suficiente nas raízes "psicossexuais" das classes.
Shulamith revela uma certa revolta com a natureza. “A biologia reprodutiva da mulher foi responsável pela origem e a continuidade da sua opressão, e não alguma revolução patriarcal repentina”, disse ela.
Na visão da autora feminista, não havia nada de errado em deixar a natureza humana para trás. “O ‘natural’ não é necessariamente um valor humano. A humanidade começou a crescer para além da natureza: nós não podemos mais justificar a manutenção de um sistema discriminatório de classes sexuais com justificativa nas suas origens na natureza”, ela argumentou.
Para Shulamith, a mulher não é a única vítima da sociedade tradicional. A criança também é oprimida desde sempre (pelo pai). Ela é criada em um “clima opressivo”, com “hierarquia de poder”. As crianças teriam, até mesmo, uma certa consciência de classe. “Entre os dois [pai e mãe] ela vai certamente preferir a mãe. Ela tem um laço com ela na opressão”, escreveu.
Para Shulamith (que nunca se casou ou teve filhos), a gravidez era uma “barbaridade”. Ela se animou com a perspectiva da reprodução humana sem a participação da mulher. "A reprodução artificial não é inerentemente desumanizadora. No mínimo, o desenvolvimento de uma opção deve tornar possível um reexame honesto do valor antigo da maternidade".
A receita era assustadoramente parecida com a da distopia Admirável Mundo Novo, uma obra de ficção escrita por Aldous Huxley em 1931. A diferença é que a obra de Huxley era um alerta contra aqueles que pretendiam usar a tecnologia para impor uma tirania.
Contra a infância
O capítulo 4 do livro de Shulamith recebeu o título de “Abaixo a Infância”.
Segundo ela, a infância é uma invenção do século 17, fruto da família nuclear e do surgimento do sistema escolar. "Uma ideologia foi desenvolvida para provar isto, tratados sofisticados foram escritos sobre a inocência das crianças e sua proximidade com Deus ('pequenos anjos'), com a crença resultante de que as crianças eram assexuais, as brincadeiras sexuais de crianças uma aberração", assegurou.
Pior: a libertação das crianças também significaria a emancipação sexual delas. “Aqueles que ensinam em escolas no gueto notaram a impossibilidade de restringir a sexualidade das crianças: é algo descolado, as crianças adoram”, escreveu.
Ela também afirmava que a chamada revolução sexual foi insuficiente e atendeu aos interesses dos homens ao convencer as mulheres que a moralidade puritana deveria ser abandonada, o que criou “um novo reservatório de mulheres disponíveis” para serem exploradas sexualmente pelos homens.
Ou seja: ela não trouxe a libertação real das mulheres.
Mas ela estava otimista: a sociedade chegara ao estágio final do patriarcalismo e do capitalismo. As condições para uma revolução nunca foram tão boas.
Quando a revolução chegasse, “a humanidade teria dominado a natureza totalmente” e as categorias culturais de homem e mulher seriam totalmente apagadas em favor de uma perspectiva “andrógina”.
Os quatro pontos da revolução feminista
A revolução, então, precisa passar por quatro mudanças radicais.
A primeira: "A libertação da mulher da tirania da sua biologia reprodutiva por quaisquer meios disponíveis", inclusive a reprodução artificial.
A segunda é a "autodeterminação completa, incluindo a independência econômica, tanto de mulheres quanto de crianças". A formula constitui o "feminismo socialista". Ela vislumbrou a abolição da força de trabalho graças à evolução da tecnologia. Com a mão-de-obra substituída por máquinas, poderia haver uma distribuição de riqueza (pelas mãos do Estado, presume-se).
A terceira mudança é a "a integração total das mulheres e das crianças" em todos os aspectos da sociedade. Todas as instituições que segregam com base no sexo ou na idade (como a escola) "precisam ser destruídas".
O quarto e último item é mais perturbador: "A liberdade de todas as mulheres e crianças de fazer o que quer que desejem sexualmente". "Na nossa nova sociedade, a humanidade poderia finalmente retornar à sua sexualidade polimorfa natural -- todas as formas de sexualidade seriam permitidas e desfrutadas". Para ela, a "sexualidade da criança teve de ser reprimida porque era uma ameaça ao precário equilíbrio interno da família". Mas esse tempo haveria de ficar no passado.
Morte solitária
Shuamith Firestone não viveu o bastante para ver sua revolução acontecer. Ela morreu em 2012, aos 67 anos. O corpo dela foi encontrado em um pequeno apartamento em Nova York. Ninguém notou a falta dela até que, dias depois, o mau cheiro chamou atenção dos vizinhos.
Àquela altura, ela havia desparecido completamente da vida pública. Segundo a revista New Yorker, a autora havia sido diagnosticada com esquizofrenia.
Não havia comida no apartamento, e ela vivia com auxílio do governo. "Uma teoria é que Firestone morreu de fome", escreveu a New Yorker. Por causa das tradições ortodoxas judaicas, a família não quis fazer uma autópsia.
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