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Opinião

Siga o prestígio: o que há por trás do fetiche pelo impeachment de Bolsonaro

Jair Bolsonaro faz gesto de coração com as mãos em solenidade em 20 de fevereiro de 2020. Lançamento de crédito imobiliário com taxa fixa da Caixa
Toda vez que um tuiteiro puxa as calçolas pela cabeça porque um tuíte de Bolsonaro vai acabar com a democracia, o que ele quer é prestígio. (Foto: Marcos Correa/PR)

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Ultimamente o Brasil tem assistido a uma coqueluche de “motivos de impeachment” para Bolsonaro. Os motivos vão desde golden shower a briga com jornalista, e toda semana aparece um. Seria um erro dizer que todos os que embarcam na onda são lulistas. Afinal, há muitos antipetistas entre eles. E, embora seja possível enxergar um movimento tucano nesse sentido, a filiação partidária é insuficiente enquanto explicação geral. Ou alguém crê que toda criatura que fala sem parar de impeachment de Bolsonaro é lulista ou tucana? Para entender o fenômeno, é preciso analisar o funcionamento geral da sociedade.

A moeda do prestígio

Pessoas de evidente e inegável utilidade para as suas comunidades são premiadas com uma moeda invisível chamada prestígio. Como qualquer moeda, as pessoas podem tê-la em variadas proporções. E, como em qualquer sistema de preço, a cotação em prestígio varia conforme a lei da oferta. Médicos e enfermeiros são ambos úteis à sociedade, mas médicos são mais raros do que enfermeiros – logo, são mais prestigiados.

Que o prestígio cresça conforme a raridade, em vez de ser algo intrínseco a uma profissão, podemos comprovar olhando para um país onde há abundância artificial de médicos: Cuba. E que o prestígio está atrelado à utilidade para a sociedade, vemos com o fato de a profissão do ladrão não se tornar respeitável à medida que caia a criminalidade.

O prestígio, portanto, se origina do bem comum – que é uma noção lentamente trabalhada pela sociedade.

Tal como as moedas financeiras, a moeda do prestígio pode ser falsificada. Um médico normal e um médico homeopata podem ser igualmente prestigiados por se presumir que ambos, igualmente, sejam muito benéficos à sociedade. Mas só um deles tem, de fato, conhecimento eficaz. Economistas que defenderam o congelamento de preços para resolver o problema da “inflação inercial” nos anos 1980 eram, todos eles, muito prestigiados – porque se estimava que o seu raro conhecimento econômico fosse importante para o bem comum.

Passar-se por inteligência benéfica implica cunhar moeda falsa de prestígio e é algo que perturba esse incessante processo social de decidir o que é bom.

Outra semelhança entre a moeda do prestígio e as moedas financeiras é que ambas podem ter validade em ambientes restritos. Um homem que chegue à Turquia com os bolsos cheios de reais se considerará pobre. Do mesmo jeito, um dervixe turco no Brasil é um Zé Ninguém porque entre nós não se prestigiam dervixes.

As moedas financeiras podem ser criadas em comunidades ainda menores que países: até bairros e escolas podem criar moedas internas. No caso do prestígio, isso é ainda mais comum do que entre as moedas financeiras. Com o Brasil tão inflamado em tribalismos políticos, isso é bem visível. Um homem pode pretender cuspir em cem “fascistas” para obter prestígio e respeito, mas esse prestígio obviamente estará restrito à sua facção. Afinal, o brasileiro comum acha reprovável sair cuspindo nos outros, pois suas mães ensinaram que isso é muito feio.

A moeda dos nichos

Podemos futucar os bolsos de um viajante estrangeiro para descobrir a moeda que ele carrega e, assim, descobrir sua nacionalidade. Do mesmo jeito, se encontramos alguém que parece se orgulhar de uma conduta estranha, devemos considerar isso a moeda do seu nicho, da sua facção. Uma jovem vereadora é assassinada no meio da rua, seus fãs colocam uma placa em sua homenagem e um homem se orgulha de arrancar essa placa e quebrá-la perante a turba. Essa é uma atitude da qual o comum dos brasileiros se orgulharia?

Não. Logo, para descobrir por que ele se orgulha disso, é preciso encontrar a sua turma. Encontrando-a, entendemos que essa turma acredita que contra uma psolista vale qualquer coisa, que ela é incapaz de pensar na deputada apenas como um ser humano assassinado, uma pessoa que até tem uma família e pessoas que gostam dela por razões não-políticas. Quebrar um símbolo daquela pessoa é algo benigno dentro dos estreitos limites daquela facção, que entende a destruição do Inimigo como o bem da sua diminuta e facciosa comunidade. O mesmo raciocínio vale para a conduta dos cuspidores de “fascistas”.

No entanto, as facções políticas às vezes convencem a sociedade de que elas lhe são benignas e de que tudo o que fazem tem em vista o bem comum. Esse, definitivamente, não é o caso da direita que surgiu após o PT.

Por mais que, com razão, se afirme que a democracia se faz de pluralidade, o máximo que a direita conseguiu foi o reconhecimento de sua legitimidade. E ninguém de fora da facção a reconhece como benéfica em si mesma. Trocando em miúdos, nunca deu muito prestígio ser de direita — nem mesmo quando Bolsonaro se elegeu.

Já a esquerda, ao contrário, teve a cotação em prestígio altíssima desde quando os militares, movidos pelo anticomunismo, decretaram o AI-5. A partir daí, opor-se a opressões arbitrárias passou a ser algo identificado com a esquerda. A esquerda descobriu junto com os militares que, por alguma razão, o Brasil gosta de democracia. Ela largou as diatribes contra a democracia burguesa. Munida de muitos professores em suas fileiras, a esquerda pôde fraudar a história e passar-se por defensora perene da democracia brasileira, mesmo que tenha conspirado contra Jango para implantar uma ditadura totalitária.

Felizmente, a esquerda perdeu esse prestígio. O processo começou com a descoberta do Mensalão e culminou com a redução da esquerda ao culto da personalidade de Lula. O politicamente correto lançou a pá de cal e a esquerda deixou de ser identificada com a defesa da democracia ou mesmo com a defesa dos pobres para se tornar fiscal de fantasia carnavalesca.

Hoje, a esquerda nada mais é que um catecismo dogmático que inclui a fé inabalável na Inocência de Lula e na malignidade de todos os homens brancos que não são Lula, Ciro Gomes, Freixo, etc. A esquerda está se tornando aquilo que a direita mais xucra nunca deixou de ser: uma facção de malcriados, sem nenhum respeito fora do nicho.

A moeda comum

Transformar a esquerda em passado seria mais fácil se o Anti-Esquerda que venceu o PT nas eleições não fosse um simplório. É verdade que ele defende ditadura, mas, infelizmente, é só mais um político brasileiro a fazer isto. Homenagens a Cuba infestam a vida escolar dos alunos há décadas e a catástrofe da Venezuela, sob o nosso nariz, também encontra defensores perenes. Uma coisa, porém, é um elegante Professor Doutor da USP defender ditaduras que outros intelectuais também defendem – outra, completamente diferente, é um simplório defender uma ditadura que não conta com simpatia de intelectuais.

A universidade e o mundo das artes funcionam como Casas da Moeda de prestígio da sociedade brasileira. Desde a última ditadura, elas passaram pelo mesmo processo de esquerdização que a classe média. Mas, durante o petismo, seguiram o rumo contrário do grosso da classe média e se aprofundaram na partidarização. (Explicar isto envolveria um estudo do Reuni e dos editais para artista). Gostemos ou não, queiramos ou não, o Brasil não tem uma vida intelectual independente de agentes estatais.

Essa emissora de moeda franca passou a se colocar a favor do item mais bem-aceito no Brasil fora de nichos: a democracia. Defenda a democracia e encontrará no Brasil um apoio de setores amplos.

Agora, definir democracia é outra história. Nessa operação, joga-se a água junto com o bebê. A democracia virou, na cabeça de gente aspirante a prestígio, coisa refinada e chique. Dizer “sou democrático” está se tornando o novo análogo de dizer algo como “leio um tratado filosófico por semana”. Aí é muito fácil chamar o atual chefe do Executivo de antidemocrático. O chefe do Executivo, os taxistas mal-humorados, os tiozões do zap-zap, o pai de Tati Bernardi e todos os merecedores das cusparadas de Zé de Abreu.

Democracia, mesmo, só quando todos os votantes e votados beberem chá com o mindinho esticado.

A cunhagem falsa

Toda vez que um tuiteiro puxa as calçolas pela cabeça porque uma declaração, tuíte ou compartilhamento de Bolsonaro vai acabar de vez com a democracia, o que ele quer, com essa ação extravagante, é o prestígio. “Olhem como sou democrático e chique!” é o subtexto. Assim o antipetista de outrora mostra a todos que sua própria imagem é muito diferente daquele simplório do Planalto. Serve unicamente ao propósito de cuidar de sua própria imagem.

Isso prejudica a sociedade porque passa a falsa impressão de que há uma vigilância sobre o presidente e um incansável zelo pelas liberdades democráticas (que nem dependem só do presidente). Se há muita gente fazendo estardalhaço a cada coisa dita ou não dita por Bolsonaro, parece difícil crer que este governo não esteja sob vigilância de liberais autênticos.

Mas não está. O maior exemplo disso talvez seja o fato de Weintraub ter criado em 12 de dezembro, numa única canetada, nada menos que 5 universidades federais: “a Universidade Federal de Jataí (UFJ), Universidade Federal do Agreste de Pernambuco (Ufape), Universidade Federal de Rondonópolis (UFR), Universidade Federal do Delta do Parnaíba (UFDPar) e Universidade Federal de Catalão (UFCat).” Nem Dilma fez isso! Lula passou 8 anos no poder, e criou 14 federais; Bolsonaro, em apenas 1 ano, criou 5!

Então o estado de coisas é o seguinte: a esquerda grita que Bolsonaro é um novo Pinochet (um ditador com Chicago boys), e os antibolsonaristas egressos do antipetismo, que se dizem liberais, engolem a lorota. Como cobrir declaração e inventar teoria conspiratória é mais divertido do que ler diário oficial, ficamos, em meio a essa gritaria, achando que narcisistas simulando pânico são vigias da democracia. Mas quem vigia?

O Brasil não tem um ditador. Tem apenas mais um presidente democrático. Nossos presidentes, democráticos ou não, são patrimonialistas e fazem demagogia com empregos públicos. Bolsonaro, porém, é o primeiro presidente brasileiro a contar com fiscais de declarações em vez de fiscais de ações. Se a imprensa e a opinião pública fossem assim em 1967, Costa e Silva não precisaria de um AI-5.

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