Retrato do Padre Antonio Vieira, de autor desconhecido do início do século 18| Foto: Reprodução
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Vieira escreveu o Sermão da Sexagésima para ensinar a fazer sermões. Recomenda a simplicidade e a clareza, e repreende o estilo usual em púlpitos de então: “um estilo tão empeçado, um estilo tão dificultoso, um estilo tão afetado”, que vai na contramão da natureza. As palavras devem ser claras como as estrelas, mas maus pregadores deixavam tudo escuro… como boçais.

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Vieira: “Este desventurado estilo que hoje se usa, os que o querem honrar chamam-lhe culto, os que o condenam chamam-lhe escuro, mas ainda lhe fazem muita honra. O estilo culto não é escuro, é negro, e negro boçal e muito cerrado. É possível que somos portugueses, e havemos de ouvir um pregador em português, e não havemos de entender o que diz?”

Eu, que conheço “boçal” com o significado de pedante, corri ao dicionário para descobrir o significado seiscentista do termo. E o Houaiss aponta quatro significados: o antigo, de escravo recém-chegado da África, que não sabia falar português; e mais três derivados daí: tosco (sem cultura), tapado (sem inteligência) e descomunal. Ganhei uma solução e um mistério. Tornava-se inteligível Vieira, pois à clareza das estrelas opunha a obscuridade na pele dos que não se fazem entender, porque não falam nada sequer parecido com português. Daí se depreende como surgiram outros dois significados: o homem sem fala é o homem sem razão, desprovido da característica que a filosofia usava para separá-lo dos demais animais, irracionais. Os trabalhos que eles executavam eram sempre braçais e muito pesados – deviam, portanto, ser homens de descomunal porte físico, coisa que justifica o quarto sentido do termo.

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E o mistério que ganhei foi este: o único significado de boçal que eu conhecia (pedante) não constava no Houaiss, nem no Aurélio. Regionalismo? Sim. Eu sou baiana, e os lexicógrafos estão concentrados no Rio de Janeiro. Saí perguntando, e verifiquei que para baianos “boçal” significa pedante ou esnobe, e que para cariocas, paulistas, pernambucanos, significa estúpido, tosco, tapado. Ao menos o significado baiano acompanha o do sermão: se os pedantes gostam de falar difícil, não se fazem entender por compatriotas e são boçais. Terá havido uma extensa leitura do Sermão da Sexagésima na Bahia, de modo a fixar o significado peculiar de boçal? Não parece explicação suficiente.

Enfim pude formular uma resposta satisfatória quando li As elites de cor numa cidade brasileira, redigido em 1952 pelo antropólogo Thales de Azevedo. Tomado o Brasil como país exemplar de convivência entre raças, a Unesco encomendara a Roger Bastide trabalhos sobre nós. Dentre outros, ele delegara a três antropólogos de três cidades brasileiras estudos sobre as relações raciais nelas. Daí saíram O negro no Rio de Janeiro, de L. A. Costa Pinto; Brancos e negros em São Paulo, de Florestan Fernandes; e Les élites de couleur dans une ville brésilienne, de Thales de Azevedo, sobre a Cidade da Bahia.

Florestan Fernandes é o uspiano empenhado em demonizar Freyre, e em difundir a ideia de que o Brasil é horrível por não ter um racismo explícito como o do Apartheid, mas um outro, velado por cordialidades. Thales de Azevedo é um egresso da Faculdade de Medicina da Bahia, fundada em 1808 por D. João VI no mesmo prédio em que estudara Vieira. (Os jesuítas abandonaram o seu Colégio ao serem expulsos por Pombal; e Vieira veio criança de Lisboa para o estado do Brasil.) Médico e fino observador, Thales de Azevedo viajara pelos sertões coronelistas e atendera também a índios. Logo refez, com mais intensidade, o movimento de Nina Rodrigues: foi da antropologia física à nascente antropologia cultural.

Suas observações sobre a sociedade baiana são um bocado reveladoras do Brasil. O recorte escolhido para abordar a questão racial foi o da ascensão social. Entrevistou “informantes” pretos e mulatos de classes média e alta para saber o que achavam das relações raciais, do racismo, ou de como é que se ascende socialmente, e combinou as respostas à sua própria experiência na sociedade baiana, à qual pertencia desde o nascimento.

As opiniões mais desencontradas são as relativas ao racismo. Uns negavam enfaticamente a sua existência, e outros a afirmavam, apontando o desapreço por negros como muito mais predominante entre mulheres – até as de cor – do que entre homens. Um dos informantes ouvira do próprio Juliano Moreira que um homem branco e um homem escuro de igual talento são como duas bolas, uma metálica e outra de madeira, com o mesmo peso: as pessoas são levadas a crer, sem nem perceber, que a bola de metal é mais pesada que a de madeira. Do mesmo jeito, veem os dois homens de cores diferentes e creem que o branco seja o melhor. A saída do homem escuro é redobrar os esforços e se sobressair da maneira mais evidente.

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Ao cabo, era imoral ser racista, mas era feio ser negro – ninguém queria se misturar muito com eles para não parecer pobre. Dessa contradição, seguia-se todo um balé social para permitir a ascensão de uns enquanto se preservava a boa reputação dos habitantes do andar de cima.

E qual o valor supremo para a ascensão? Em uníssono, os informantes apontavam as boas maneiras. Houve até quem especificasse que os negros cariocas não iam para lugar nenhum, porque seguiam falando muita gíria e achavam que comprar roupas caras bastava. Não bastava: a sociedade baiana era regida por finura e boa educação.

Isso acontecia porque a Bahia podia ser descrita mais como uma sociedade de Ancien Régime do que como capitalista. “O conceito de status”, afirma Thales de Azevedo, “contrasta com o de classes, que não são hereditárias e têm como referência as aptidões e realizações individuais especialmente de ordem econômica […]. As classes são estratificadas de acordo com suas relações com o produto e aquisição de bens, enquanto que os grupos de status estratificam-se segundo padrões de consumo representados por especiais ‘estilos de vida’.” O Brasil colonial esteve muito mais próximo desse sistema social medieval do que do capitalista – e não basta comprar roupas caras para ser um fidalgo.

Os homens de cor, para ascender, em geral se tornavam profissionais liberais, com anel de doutor no dedo que lhes permitia apresentar-se como um fidalgo ibérico. O comércio era desprezado por baianos de todas as cores como atividade indigna, à qual se votavam somente os que não cursavam mais que o primário. O resultado disso foi que os poucos imigrantes que se estabeleceram na Bahia no séc. XX dedicaram-se ao comércio e desbancaram os nativos.

A maior colônia de imigrantes tornou-se a de espanhóis da Galícia especializados em padarias e mercearias; e, segundo Thales de Azevedo, eram culpados pela população por explorar o povo. Enfrentaram, portanto, uma xenofobia que se assemelha ao antissemitismo medieval: era como se os galegos fossem uma conspiração que deliberava sobre gêneros alimentícios; mas, na verdade, eles se tornaram monopolistas endinheirados porque a população desprezava a atividade que eles exerciam. A padaria estava para os galegos mais ou menos como a agiotagem para os judeus.

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Com a grande quantidade de negros e a escassez de imigrantes, a Bahia terminou por ter muitos negros e mulatos nas condições sociais mais elevadas – chegou mesmo a eleger um deputado mulato no Império, em plena vigência da escravidão. (Antônio Rebouças, pai dos Irmãos Rebouças, abolicionistas.)

A ascensão de mulatos gerava reação, e Thales de Azevedo observava que, no seu tempo, só mulatos eram xingados de pacholas, isto é, de pedantes ou esnobes. Ou seja: numa sociedade pautada por boas maneiras e status, a sinalização de que alguém passara do ponto na afirmação de sua própria elegância era um dedo na ferida de quem estivesse inseguro por causa das origens humildes. De alguém que, como Juliano Moreira, se esforçava para tornar seus méritos muito visíveis.

Provavelmente, havia pacholas de todas as cores, mas somente os escuros eram vulneráveis. E a condenação dos pedantes como negros boçais, no Sermão da Sexagésima, caía como uma luva para humilhar o homem de cor que quisesse exibir seus dotes oratórios.

Os brasileiros de origem africana têm mais gerações de Brasil do que tantos brasileiros brancos que se concentram nas regiões de maior IDH. Decerto não há causa única para isto; mas pensar as distintas bagagens culturais ajuda. Vejamos, por exemplo, o estado de Santa Catarina: é o mais alemão do Brasil, e o seu maior homem de letras é Cruz e Souza, preto filho de escravos. O Brasil tem um belo rol de intelectuais mulatos para nos orgulhar. Se tudo fosse tão simples quanto pretendem os defensores do fantasmagórico racismo estrutural, o vale catarinense seria um prodígio acadêmico e artístico.

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