Apu Nahasapeemapetilon pode mudar de voz. Os produtores de Os Simpsons estão sendo pressionados a substituir, neste papel, o ator Hank Azaria, que dubla o personagem indiano desde sua primeira aparição na série, em fevereiro de 1990. “O mais importante é que precisamos ouvir as pessoas da Índia e do Sul da Ásia quando elas falam sobre como se sentem e o que pensam desse personagem”, ele declarou, em abril, em entrevista ao The Late Show With Stephen Colbert. “Quero me afastar, ou ajudar na transição para algo novo”.
A acusação de que o personagem é um estereótipo racista não é exatamente nova, mas ganhou peso com o lançamento, em novembro de 2017, do documentário The Problem With Apu. No filme, o comediante Hari Kondabolu, americano de origem indiana, entrevista outros imigrantes da região para discutir os estereótipos em torno, principalmente, da entonação de voz do personagem.
Hank Azaria faz a voz de várias outras figuras da série, incluindo o dono de bar Moe Szyslak, o chefe de polícia Wiggum, o dono da loja de quadrinhos e um dos funcionários da usina nuclear, Carl Carlson. Mas nenhum deles foi alvo da controvérsia que cerca o mais famoso personagem asiático do mais longevo seriado americano ainda em atividade. Apesar de, agora, anunciar que pretende abrir mão do personagem, em 2015 sua declaração foi bem diferente: “Eu interpretei todo tipo possível de nacionalidade no show. Se eu fui ofensivo, foi a todas as etnias”.
Recentemente, os produtores de Os Simpsons deram sua resposta ao documentário de Hari Kondabolu. No episódio “No Good Read Goes Unpunished”, que foi ao ar em abril, colocaram uma fala na boca de Lisa Simpson, logo a personagem mais adepta a bandeiras politicamente corretas: “Algo que começou décadas atrás e era aplaudido, e considerado por muitos inofensivo, agora é politicamente incorreto. O que fazer?”, ela disse, olhando para a câmera. Para a fúria dos críticos da caracterização do personagem indiano, a cena termina com uma imagem de Apu, numa moldura de fotografias, com o texto: “Don’t have a cow” (expressão que em inglês significa “Não fique nervoso”).
Há um contexto para a polêmica. Nos últimos anos, as obras de vários autores clássicos, principalmente da literatura, vêm sendo questionadas. Vamos detalhar quatro exemplos recentes.
Shakespeare era machista?
Pode parecer um tanto absurdo exigir que um autor teatral que nasceu em 1564 fosse um defensor dos direitos das mulheres. Mas interpretar peças do autor em pleno século 21 significa defender o machismo? Uma nova produção britânica da peça de comédia A Megera Domada faz essa pergunta.
“Acho que nós odiamos a ideia de que um escritor genial, que escreve tão brilhantemente sobre a humanidade, que descreveu mulheres tão lindas e versos sobre justiça e igualdade em outras peças, fosse na verdade apenas mais um misógino”, declarou a atriz Danielle King, que participa da montagem no papel de Catarina, a mulher de gênio forte que acaba por ser controlada por Petrúquio, seu pretendente e depois marido.
A expressão “megera domada” ecoou recentemente no Brasil, quando o ator Caio Blat postou uma foto em seu Instagram. A seu lado, uma mulher usava uma camiseta com a inscrição: “bruta não, mal domada”. As atrizes Maria Casadevall e Carolinie Figueiredo reagiram contra a mensagem, enquanto Virginia Cavendish e Guta Stresser defenderam o ator.
Guta disse que a frase lembrou a ela Shakespeare – na verdade, a referência direta era a uma música chamada “Bruta Não, Mal Domada”, composta por Giovane Freitas. A letra da canção diz: Ela é bruta eu sou carrasco/ Aqui nos braços do macho/ Me conhece no olhar”. Na camiseta divulgada por Caio Blat, uma ironia: o texto é acompanhado de uma imagem, de uma mulher, sobre um cavalo, laçando um homem. “Postei sem fazer nenhuma piada machista, mas como provocação, pela contradição da imagem”, o ator explicou.
Em 2016, outra peça, agora Hamlet, dirigida por Katie Mitchell, trouxe o tema à pauta novamente. “Eu me preocupo com a ideia de que Hamlet e a maneira como ele trata as mulheres possa, de alguma forma, dar licença a comportamentos misóginos”, ela argumentou, na época.
Mas afinal, Shakespeare e sua obra podem ser considerados machistas? Não, aponta um levantamento da BBC que concluiu: apesar de haver sete vezes mais homens do que mulheres nas peças do autor, elas costumam ter voz ativa nos enredos.
Lolita estimula a pedofilia?
O clássico do escritor russo Vladimir Nabokov descreve os passos de Humbert Humbert, um homem de 40 anos tão obcecado por uma garota de 12 anos, Dolores Haze, que acaba se casando com a mãe dela e, depois que ela morre, consegue fazer sexo com a adolescente. O livro está em várias das listas de melhores obras das últimas décadas (da revista Time e do jornal The Guardian, por exemplo). Mas o autor defende o ponto de vista de seu personagem? O leitor é estimulado pela obra a praticar – ou defender – atos de pedofilia?
“Não, não acho que o livro faça uma celebração do estupro pedófilo. É precisamente o contrário”, argumenta o professor do departamento de línguas e literaturas eslavas da Universidade da Virgina, Julian Connolly. “O próprio Nabokov chamou Humbert Humbert, em diferentes ocasiões, de ‘uma pessoa odiosa’ e um ‘miserável vil e cruel’, e sua vítima, Dolores, de ‘uma pobre garota indefesa’”, diz o professor, que é autor de A Reader’s Guide to Nabokov’s Lolita.
Para Julian Connolly, Lolita tem qualidades literárias marcantes. “O livro se destaca pela inacreditável riqueza de sua linguagem e pela sutileza com que lida com um tópico controverso, em especial a forma como Nabokov estrutura a novela de forma a criar um protagonista que alguns leitores podem, a princípio, achar atraente, para depois perceber o horror de suas ações”.
Há quem discorde. “Agora, 40 anos depois de sua morte, alguns críticos ousam sugerir que muitas de suas 18 novelas são medíocres, na melhor das hipóteses, e sua obra-prima, Lolita, é uma celebração grotesca de estupro pedófilo”, escreve Alex Beam, escritor e jornalista e autor de The Feud - Vladimir Nabokov, Edmund Wilson, and the End of a Beautiful Friendship. Beam concede que, de fato, Nabokov tinha uma personalidade detestável, mas argumenta: “muitos monstros geraram grande arte, e Vladimir Nabokov foi um deles”.
Não é o que pensam os três russos que, em 2013, provocaram uma concussão no produtor Anton Suslov, de 24 anos, apenas porque ele levou uma encenação de Lolita para São Petersburgo. Uma janela do museu dedicado ao autor, instalado na cidade, foi atingida por uma garrafa de vodca, contendo um bilhete com a acusação: “pedófilo”. A pressão funcionou, e o museu fechou as portas e as livrarias da cidade fizeram desaparecer das prateleiras os livros do autor.
Mark Twain deve ser retirado das escolas?
Nos Estados Unidos, por algumas semanas, duas obras de Mark Twain foram proibidas nas escolas da Virgínia – o estado tomou essa atitude depois da reclamação de um grupo de pais, mas depois a medida foi desfeita. O problema, no caso, é o suposto racismo de duas obras, As Aventuras de Huckleberry Finn e As Aventuras de Tom Sawyer, e o uso da palavra “nigger”, em grande abundância – no caso de Huckeblerry Finn, a expressão se repete 215 vezes. A palavra tinha, e ainda tem, profunda conotação racista entre os americanos.
O editor e pesquisador Alan Gribben, professor da Universidade Auburn, chegou a produzir duas edições destes livros, substituindo a palavra “nigger” por “slave” (escravo). A repercussão foi péssima. “A imprensa distorceu meu trabalho”, ele argumenta, em mensagem enviada por e-mail. O professor lembra que produziu sete edições dos livros, e a palavra foi substituída em três delas, mas não em todas.
“Os volumes que alteram o uso que Twain faz de uma das palavras mais questionáveis do idioma inglês são voltados para o uso em escolas que proíbem quaisquer textos contendo a expressão. De forma que, sem essas edições, as duas obras sequer seriam lidas nesses lugares”, ele argumenta. “Eu permito que meus estudantes escolham a edição que preferem, e assim nós não precisamos perder tempo precioso debatendo o emprego da palavra, o que não é, de forma alguma, um dos elementos mais importantes da obra de Mark Twain”.
Para o pesquisador, as acusações de que ele censurou e distorceu o texto original do autor ignoram um fato mais grave: “tentei fazer esses livros disponíveis nas muitas escolas que os baniram. Elas é que realmente realizaram censura” (Gribben trata do assunto, em detalhes, no site da editora responsável pelas edições polêmicas).
Há quem argumente que o racismo de Huckeblerry Finn vai muito além do uso de uma palavra. “A narrativa é casualmente, mas irremediavelmente, racista”, argumenta, em artigo, o especialista em literatura inglesa moderna John Sutherland, professor da University College London, que diz ter dificuldades em lecionar o livro para alunos afroamericanos, de tão ofensiva que a obra é para eles.
“A narrativa tem o tipo de racismo com que, historicamente, os afroamericanos estão familiarizados”. Para o professor, a obra trata o personagem Jim, um escravo, apenas como um suporte para que o protagonista branco tenha a chance de cometer um gesto de nobreza. “Não importa se um professor retirou uma palavra ofensiva numa edição da obra. O que importa é que nós precisamos ler de forma crítica os textos que costumamos canonizar”.
Monteiro Lobato defende o racismo?
No Brasil, a polêmica sobre a obra de Monteiro Lobato se arrasta há anos. Começou em junho de 2010, quando a Câmara de Educação Básica do Conselho Nacional de Educação acatou uma solicitação, originada por uma denúncia: o especialista em metodologia do ensino de português Antônio Gomes da Costa Neto reclamava da existência, no Programa Nacional Biblioteca na Escola, de uma obra de Monteiro, Caçadas de Pedrinho, que veicularia estereótipos racistas.
Entre os trechos que ele citava estão: “Tia Nastácia, esquecida dos seus numerosos reumatismos, trepou que nem uma macaca de carvão pelo mastro de São Pedro acima, com tal agilidade que parecia nunca ter feito outra coisa na vida senão trepar em mastro”.
A denúncia gerou dois pareceres do Ministério da Educação, recomendando que os professores fossem capacitados para lidar com essas polêmicas em sala de aula e que a editora Globo, que publica o livro, acrescentasse uma nota explicativa.
Na mesma época, cartas privadas de Monteiro Lobato vieram à tona. O escritor foi membro da Sociedade Eugênica de São Paulo e amigo de líderes do movimento eugenista, como o médico Arthur Neiva, para quem Lobato escreveu, em 1928: “Paiz de mestiços onde o branco não tem força para organizar uma Kux-Klan, é paiz perdido para altos destinos. André Siegfried resume numa phrase as duas attitudes. ‘Nós defendemos o front da raça branca – diz o Sul – e é graças a nós que os Estados Unidos não se tornaram um segundo Brazil’. Um dia se fará justiça ao Klux Klan (...) que mantem o negro no seu lugar”.
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Em 2014, o Supremo Tribunal Federal julgou improcedente um pedido de retirada do livro das listas de leituras obrigatórias de todas as escolas públicas do país. Faz sentido colocar estudantes para ler textos como Caçadas de Pedrinho? “Faz sentido sim, podemos aproveitar a polêmica para debater o preconceito com as crianças e explicar que aquela obra foi escrita em outro contexto histórico”, responde Ana Paula de Souza Formighieri, professora há 13 anos e autora de uma tese de mestrado, dentro da Unioeste, campus Cascavel, sobre a obra do autor.
Mesmo nas cartas, diz a professora, Monteiro é contraditório. “Ele estava submetido ao momento histórico, estava em processo de construção. As cartas dele não são todas racistas, em alguns momentos ele se posiciona favorável a pessoas negras.”
Em artigo sobre o tema, os pesquisadores João Feres Júnior, Leonardo Fernandes Nascimento e Zena Winona Eisenberg acreditam que Monteiro Lobato era, sim, racista, e que suas obras, para serem apresentadas em escolas, poderiam muito bem ter a linguagem adaptada.
“Como explicar para crianças de 6, 7, 8 ou 9 anos que Monteiro Lobato, este escritor infantil magnífico, com histórias que nos levam a viajar na imaginação por tempos e espaços tão distantes da nossa realidade, era ao mesmo tempo extremamente racista?”, eles perguntam. “O que fazer com a obra de Lobato? Devemos relegá-la ao esquecimento? A solução é na verdade simples, e já largamente praticada com a obra de outros autores clássicos”, respondem.
“Se a escritora infantil Ruth Rocha simplifica a Odisseia, por que não permitir também que ‘simplifiquem’ Monteiro Lobato, excluindo trechos que estão além de uma compreensão contextualizada para aquele determinado público-alvo? Que preciosidade há nos seus escritos que não podem ser alterados, em nenhuma vírgula, para contribuir para o processo pedagógico e, ao mesmo tempo, evitar que esse mesmo processo sirva de meio para disseminação de preconceitos que hoje repudiamos veementemente?”
A polêmica parece longe de terminar.