Falta de informação e de contato com outras famílias geram um preconceito em relação a pessoas com deficiência, pautado na ideia de que essa vida vale menos| Foto:

Mãe de Laura, na época com quase três anos, a fisioterapeuta Raquel Cimi descobriu, em 2017, que seria mãe de mais duas outras crianças. “No primeiro ultrassom que fiz, com nove semanas, veio a notícia de que teríamos gêmeos. Levamos um susto. Queríamos mais um bebê, mas não imaginávamos que fossem dois”, conta. O susto inicial logo daria lugar a uma gestação de apreensão. Ao realizar o exame de translucência nucal, Raquel recebeu a informação de que havia alguma alteração em um dos bebês.

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Em um período de dois dias, com especialistas e em cidades diferentes, a mãe fez três outros exames para ter a confirmação. “Eu entrei em desespero, a gente não tinha certeza de nada. Só teria se fizéssemos um exame genético. Meu medo era de uma síndrome não compatível com a vida. Eu não aceitava o fato de uma estar bem e a outra não. Eu queria que as duas estivessem bem”, diz.

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A angústia da fisioterapeuta só se converteu em alívio no parto. “A gente só foi descobrir mesmo quando a Luiza e a Lívia nasceram. A Luiza foi a primeira que nasceu. Quando eu a vi, já percebi as características da síndrome de Down. Naquele momento, senti como se tivessem tirado o mundo de cima de mim. Para mim, foi a maior felicidade do mundo”, afirma Raquel, que mora em Sorriso, no Mato Grosso.

Alguns exames poderiam ter confirmado a chamada trissomia do cromossomo 21, causada pela presença de uma terceira cópia deste cromossomo, e espantado o único medo da mãe – de que a alteração genética fosse incompatível com a vida. Contudo, a opção pela amniocentese, levantada pelo médico, poderia perfurar o útero e levar a um aborto.

“Ele me perguntou se, tendo uma resposta do que seria [a síndrome], eu interromperia a gestação. Eu disse que não, que independentemente do que fosse, eu não ia interromper. O médico então me aconselhou a não fazer. Ele falou que eu colocaria minhas filhas em risco. Ele foi bem humano na hora de falar. Eu e meu marido optamos por não fazer o exame.”

A história de Raquel vai na contramão do que tem se observado, nos últimos anos, como uma queda no nascimento de pessoas com a síndrome em alguns países como Islândia e Inglaterra. Uma reportagem da rede CBS, de 2017, chamou atenção ao afirmar que na Islândia, desde a introdução de exames que detectam alterações cromossômicas, no início dos anos 2000, quase a totalidade das mulheres que recebem o diagnóstico optam pelo aborto. Em dezembro do mesmo ano, uma nota do Ministério do Bem-Estar Social do país considerou as informações “incorretas e enganosas”.

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Ainda segundo a CBS, a estimativa é de que 67% das mulheres nos Estados Unidos, por exemplo, abortam ao receber o diagnóstico (a estatística compreende o período 1995-2011). Já em janeiro do ano passado, fenômeno parecido gerou debate na Inglaterra quando o jornal britânico The Guardian noticiou a chegada de um novo exame, o NIPT, à rede pública de saúde. O chamado Teste Pré-Natal Não-Invasivo ainda não é oferecido pelo Sistema Único de Saúde (SUS) brasileiro.

Diagnóstico

Grande avanço na medicina pré-natal, segundo a Fiocruz, o NIPT obtém 99% de acerto no diagnóstico de algumas síndromes, uma delas a de Down. Ele é chamado de “não-invasivo” por ser realizado a partir de uma amostra de sangue da mãe. Já a amniocentese cogitada para o caso de Raquel retira, por meio de uma agulha, o líquido amniótico que envolve o bebê.

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Para a pediatra Ana Claudia Brandão, responsável pelo programa de síndrome de Down do Hospital Israelita Albert Einstein, em São Paulo, o NIPT é o que tem gerado uma “turbulência” em alguns países.

“O NIPT, que é um exame mais recente, é uma pesquisa do DNA fetal. Acho que ele está causando maior turbulência nesses países porque trata-se de um exame não-invasivo, que pode ser feito em idade gestacional bem precoce, por volta da décima semana. Só que ele ainda não é considerado um exame diagnóstico – e, sim, um teste de triagem –, apesar de ter uma sensibilidade muito grande. Quando ele determina uma chance de a mulher estar gestando um bebê com alguma alteração genética, normalmente isso é verdadeiro - ele tem um percentual de falso positivo muito pequeno. Então, é esse exame que está cada vez mais sendo disseminado e que aqui ainda é muito caro”, explica.

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Além da síndrome de Down, o exame, que chega a custar até R$ 3 mil, é capaz de detectar com precisão as síndromes de Turner, Klinefelter, Triplo X, Edwards e Patau. O que tem fomentado o debate em outros países, no entanto, é um cenário singular que reúne alguns elementos: a realização do exame, a opinião do médico e, é claro, a possibilidade de se fazer um aborto. Na visão de Ana Claudia, no entanto, falta de informação para a população.

“Penso que muitos abortos acontecem por pura falta de informação dessas famílias do quão plena pode ser a vida de uma pessoa com síndrome de Down. Eu acho que existe muita fantasia, muita coisa do imaginário mesmo, de que ter um filho com Down seria um sofrimento para pais, irmãos e para a própria pessoa”, afirma.

A pediatra não fala apenas como profissional. Mãe de Pedro, 24, Georgia, 22, e Rafael, 14, Ana Claudia se viu mãe de uma criança com a síndrome em um momento em que o diagnóstico pré-natal ainda não era tão disseminado. Quando Pedro nasceu, seu primeiro filho, a mãe não conhecia nenhuma outra família que tivesse um bebê com a trissomia do 21. “Não tínhamos a convivência. E quando a gente não convive é tudo muito misterioso. A gente foi saber, ter informações do que era necessário fazer, se tinha algo diferente a se fazer com esse bebê. E, na verdade, com o passar do tempo o que descobrimos é que o Pedro é muito semelhante aos outros dois filhos também.” Pedro cursou gastronomia e se formou em 2016. Dos cinco vestibulares que prestou, passou em dois.

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“O que foi diferente mesmo foi a questão de saúde, porque ele nasceu com uma cardiopatia, que é bem frequente nos bebês com Down, e teve que ser operado aos sete meses. Essas intercorrências em relação à saúde é o que diferenciou. E, claro, o desenvolvimento, na maioria das vezes, acontece num estágio um pouquinho mais para frente em relação à idade cronológica. De resto, foi muito semelhante. Então ele teve um percurso na escola muito semelhante aos irmãos.”

Ana Claudia afirma que é preciso refletir um pouco a respeito do que se quer com exames de diagnóstico. “A discussão que eu acho que a gente tem que ter com a sociedade e com as entidades médicas é sobre qual é o objetivo do diagnóstico pré-natal. O objetivo é dar uma oportunidade para os pais saberem antes as condições de seus bebês, se preparem? Se houver alguma condição de saúde, escolher nascer em uma maternidade que tenha mais recursos? Ou já entrar em contato com algum especialista que será necessário quando o bebê nascer? Isso eu acho maravilhoso porque facilita muito a vida dessa família nesse planejamento. Agora, se os testes pré-natais vieram para a gente fazer juízo de valor, de quem nasce e de quem não nasce, a coisa fica muito complexa”, pontua.

Capacitismo

Na visão de Patricia Almeida, cofundadora do Movimento Down, trata-se de uma questão ética, social e econômica. Ela explica que a falta de informação e de contato com outras famílias geram um preconceito em relação a pessoas com deficiência, pautado na ideia de que essa vida vale menos, discriminação conhecida como “capacitismo”.

“Os testes vão chegar e serão cada vez mais avançados. A nossa campanha, vamos dizer assim, é de valorização da pessoa com síndrome de Down. Eles vão ter limitações, assim como a gente não sabe quem amanhã vai ter alguma limitação. O problema está na sociedade que não se adapta para equalizar as oportunidades para todo mundo. Se eu sou cadeirante e tiver acesso a tudo, a minha deficiência física vira algo menos relevante. O que cabe é uma mudança de valores, você achar que uma pessoa que não tem uma perna é tão valorosa quanto você”, diz.

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“O que acontece muitas vezes é que o próprio médico que dá o resultado também não consegue falar nada de positivo para essas famílias. Claro que você vai falar sobre questões que preocupam, mas é obvio que você tem que falar sobre todas as possibilidades de vida dessa criança”, diz Ana Claudia, que já atendeu em seu consultório, neste ano, cinco casais grávidos de bebês com a síndrome.

Hoje, as gêmeas Lívia e Luiza têm um ano e cinco meses. Raquel, quando não está imersa na rotina do dia a dia, com três pequenas meninas em casa, conversa em grupos dedicados à maternidade. Além de buscar informações, Raquel também é procurada por outras mães.

“Eu até conversei com uma mãezinha que descobriu [a gestação de um bebê com Down], viu algumas matérias falando sobre a gente e me chamou no Facebook. Ela mora em Portugal ou na Itália, não me recordo. Como lá o índice de crianças com Down é mínimo, ela tem muito medo de ter o bebê e não ter condições de criar e inserir. Eu falei que independentemente de onde eu estivesse, eu jamais cogitaria [abortar]”, conta.