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A palavra “cultura” é usada em muitos sentidos. Os defensores do currículo multicultural pressupõem alegremente que eles e seus leitores sabem exatamente o que significa tal coisa, e que todos concordariam em reconhecer a natureza “monocultural” de nossa educação tradicional. Um currículo “multicultural” típico se concentraria na história, linguagem e literatura do proletariado moderno; na história e nas “lutas” das minorias; e nas formas mais baixas e mais populares de música, arte e entretenimento.
Esse tedioso estudo do efêmero pode ser encontrado em todos os lugares dos Estados Unidos, Canadá, Grã-Bretanha, Austrália e Escandinávia. Eu ficaria tentado a descrevê-lo como “monocultural”, se estivesse convencido de que ele é capaz de transmitir qualquer cultura. Por outro lado, nossos avós estudavam os idiomas, religiões e literatura da Antiga Palestina, Grécia e Roma, eram criados lendo as histórias das Mil e Uma Noites, ouvindo o folclore e a música da Alemanha, vendo a arte e arquitetura do Mediterrâneo e absorvendo a história do mundo. Se a palavra “multicultural” significa alguma coisa, então certamente deve ser aplicada ao seu currículo. A essência da civilização europeia está precisamente nessa abertura para a cultura em todas as suas formas.
Em seu livro “America's British Culture” [A cultura britânica dos Estados Unidos], o dr. Russell Kirk faz algumas críticas eficazes aos “multiculturalistas”, cujo programa, como ele justamente aponta, deriva menos do amor a outras culturas do que da rejeição de suas próprias. Mas seu principal objetivo neste livro sábio e interessante é mostrar que, em qualquer sentido comum do termo, os Estados Unidos têm uma cultura única, que essa cultura é britânica, e que o caráter multifacetado e diverso da sociedade americana dificilmente seria concebível sem as virtudes da cultura britânica que nela prevalece.
Kirk identifica uma cultura de forma antropológica, como um conjunto de “folkways” — formas herdadas, procedimentos, expectativas e costumes que, juntos, definem um modo de vida comum (como o costume de aguardar em fila a sua vez de ser atendido). Quatro folkways principais definem a herança britânica dos Estados Unidos: a língua inglesa e sua literatura; o Estado de Direito; o governo representativo; e os hábitos e crenças morais que Tocqueville identificou como sendo os “mœurs” do povo americano. Kirk detalha cada um desses elementos e mostra como esses hábitos deram origem aos Estados Unidos moderno, uma sociedade tolerante, livre e acolhedora para os recém-chegados e ao mesmo tempo orgulhosa de suas tradições e consciente de seu passado.
Claro, há fenômenos comparáveis também em outras partes do mundo. A América Latina tem em, sua maior parte, um idioma, e flashes (ainda que breves) de governos com legitimidade e representativos. Os costumes dos britânicos são compartilhados, em parte, pelos noruegueses e dinamarqueses; enquanto o Estado de Direito é comum a países europeus fora do antigo império comunista e ao norte da linha de corrupção que se estende de Lisboa a Atenas, via Madri e Roma. O interesse da análise do Dr. Kirk reside em dois fatos: primeiro, a tentativa de descrever o que é distinto em nossa herança moral e política; depois, a defesa explícita dessas coisas como a base da liberdade e estabilidade dos Estados Unidos.
Como ele corretamente diz, nosso Estado de Direito é distinto em privilegiar o direito comum em vez do estatutário. A lei inglesa está acima e além de todos os soberanos, todos os parlamentos, todos os usurpadores e poderes militares. Sua autoridade deriva dos costumes e dos precedentes e, mesmo a decisão legal mais consagrada pode não ter um princípio estável na forma de um estatuto ou lei. Eu daria muito mais ênfase a este ponto do que o dr. Kirk, pois ele mostra a concretização inerente da lei inglesa. Um caso pode ser visto como decidido corretamente, mesmo que ninguém saiba exatamente por que — mesmo que ninguém possa encontrar o princípio abstrato do qual se originou a decisão. Uma vez que os seres humanos são melhores em decidir disputas individuais do que em formular princípios abstratos de justiça, isso significa que a objetividade e persuasão da lei inglesa é superior a qualquer coisa existente nas jurisdições civis (ou seja, na lei romana).
A lei básica da Inglaterra, e de qualquer Estado que adote a lei comum, é uma questão de costumes e precedentes, e não de regras escritas. Os americanos imaginam com carinho que têm uma Constituição escrita da qual todas as decisões legítimas derivam — e o Dr. Kirk considera até mesmo bela essa ilusão. Na verdade, a Constituição americana está contida em cerca de 400 volumes gordos de jurisprudência legal, cujos princípios são difíceis de se expressar em termos abstratos, assim como os detalhes são imediatos e compreensíveis. O documento escrito não tem nenhum significado independente.
O dr. Kirk se refere à cultura britânica dos Estados Unidos. Mas vale salientar que a lei comum é a lei inglesa — os escoceses têm um sistema civil e é por causa da soberania inglesa que as outras etnias celtas passaram a adotar a nossa lei. Além disso, nossa língua é o inglês, nossa literatura é a inglesa (mesmo quando escrita por um irlandês ou um escocês) e nosso Parlamento é o de Westminster, sede da coroa inglesa. Somente na religião distinguimos as nações — admitindo uma Igreja da Irlanda e uma Igreja da Escócia, além das igrejas da Inglaterra e do País de Gales. Mesmo assim, não há igreja britânica e nenhum inglês se sente confortável com a sugestão de que sua cultura seja britânica. Isto, acredito, é o que está por trás da análise perspicaz do dr. Kirk sobre o alicerce americano que surgiu de uma lei e de um idioma que já haviam se libertado das fronteiras nacionais e se abriram para um mundo maior.
Há tanta história e tanta sabedoria nas 115 páginas da obra do dr. Kirk que seu livro serviria como um bom resumo dos Estados Unidos e sua cultura para um estudante ocupado demais — mesmo para aquele que tanto sofre com as exigências de um currículo multicultural. Mas duvido que o livro apareça em tal currículo, uma vez que qualquer aluno que o lesse estaria tão imediatamente ciente da superioridade de sua herança cultural, a ponto de as “culturas” rivais promovidas por seus professores lhe pareceriam bastante bárbaras. Na verdade, é bem provável que elas sejam mesmo.
Sir Roger Scruton foi filósofo e escritor especializado em estética e filosofia política.