Você considera as pessoas ao seu redor confiáveis? Você confia na maioria das pessoas na maior parte do tempo? Se respondeu “não”, você faz parte da ampla maioria dos brasileiros – de acordo com a última medição do Instituto Latinobarômetro, só 7% dos brasileiros confiam na maioria das pessoas. Isso apresenta desafios específicos para nossa democracia, pois os níveis de confiança de uma sociedade são uma espécie de óleo lubrificante do bom funcionamento das instituições formais e informais. Nesta quarta-feira (6), o Brasil ganhou uma nova fonte de dados sobre o tema, com a divulgação dos dados da primeira aplicação, em Curitiba, do Índice de Democracia Local, uma ferramenta desenvolvida pelo Instituto Atuação com o propósito de gerar informações para orientar políticas e melhorar a qualidade da vida democrática a partir das cidades.
De acordo com os dados, 15% das pessoas consideram confiável a maioria das outras – o dobro da média nacional –, 37% acham que apenas pessoas da família e amigos são confiáveis e 46% respondem que a maioria das pessoas não é confiável. Nos resultados do Índice, isso dá uma pontuação de 34,7, entre 0 e 100, no quesito confiança interpessoal.
“Essa nota agrega uma pontuação máxima para aqueles que dizem que confiam na maioria das pessoas e uma pontuação parcial para aqueles que dizem que confiam apenas na família e em amigos”, explica Jamil Assis, gestor do projeto Cidade Modelo, do Instituto Atuação, responsável pelo Índice. “Curitiba, comparada ao Brasil inteiro, tende a ser mais homogênea e vários estudos apontam que isso gera níveis de confiança maiores”, afirma.
Além dos baixos índices de confiança, segundo a pesquisa, mais de 90% dos moradores da cidade nunca participam de eventos ou reuniões promovidas por clubes sociais, associações esportivas, de bairro ou profissionais, nem de grupos de arte, ONGs ou grupos de autoajuda, e 87% nunca participam de encontros promovidos por entidades de caridade. O cenário só melhora um pouco quando se consideram os grupos religiosos: 10% dos moradores sempre frequentam esse tipo de reunião, 10% com frequência e 7% “às vezes”, mas 67% responderam que nunca participam de reuniões religiosas.
Inúmeras pesquisas têm apontado uma queda generalizada nos índices de confiança há décadas, tanto entre as pessoas (ou “nível interpessoal”) quanto nas instituições (“nível institucional”). Em alguns países, a situação é melhor do que em outros. Dados da Pesquisa Mundial de Valores (World Values Survey, ou WVS) apontam que, nos países nórdicos, como Noruega e Suécia, a confiança ainda é relativamente alta: 60% dos entrevistados acreditam que as pessoas em geral são confiáveis. Não por acaso, os países nórdicos estão nas primeiras colocações do Índice de Democracia da revista Economist, que a cada ano analisa a qualidade da democracia em mais de 160 países.
No outro lado da balança, em países como o Brasil e Colômbia, esse número fica abaixo de 10%. Isso não é um fenômeno recente. No caso do Brasil, desde a primeira edição da WVS, em 1993, a confiança nunca chegou sequer a 10%. De acordo com outro indicador, o Latinobarômetro, conduzido desde 1995, o brasileiro é o povo mais desconfiado da América Latina, e a pouca confiança que havia despencou nos últimos anos, de 11% em 1996, para 7% em 2017 (com uma queda pontual para 3% em 2016). Com a queda da confiança em geral, tem caído também a confiança nas instituições e, de forma geral, na democracia como princípio.
Confiança nas instituições
Toda essa desconfiança se reflete em outros índices. A última edição do ICJ Brasil, organizada pela Fundação Getúlio Vargas (FGV-SP) e divulgada em outubro de 2017, destacou uma queda importante na credibilidade no Judiciário, mas também um declínio acentuado para praticamente todas as instituições pesquisadas, incluindo Governo Federal, Ministério Público e mesmo grandes empresas.
Vale destacar que o Governo Federal (6%), o Congresso Nacional (7%) e os partidos políticos (também 7%) são as instituições em que os brasileiros menos confiam, enquanto as Forças Armadas (56%) e a Igreja Católica (53%) são as que desfrutam de mais confiança. As redes sociais, como Facebook e Twitter, ficam em terceiro, com espantosos 37%, logo à frente da imprensa escrita com 35%.
Sem entrar nas causas da confiança nas Forças Armadas, na Igreja ou nas redes sociais, a desconfiança com a política possui forte relação com os escândalos e episódios sem fim de polêmicas que a classe política protagoniza há anos. Isso sem falar na permanente percepção de corrupção no país. A Transparência Internacional, ONG focada no combate à corrupção, publica anualmente um ranking sobre a percepção da corrupção, baseado em pesquisa em 180 países, e os resultados no Brasil têm piorado nos últimos anos.
Na pesquisa, é atribuída uma nota, de 0 a 100, sendo que zero indica que a população percebe muita corrupção, enquanto 100 indica que percebe quase nenhuma corrupção. A nota do Brasil caiu de 43 em 2012 para 37, de acordo com o ranking divulgado em fevereiro de 2018. Isso colocou o país na 96ª posição, abaixo de países como o Timor-Leste e o Sri-Lanka, que têm 38 pontos. Vale lembrar que, no topo do ranking com as nações com a menor percepção de corrupção, estão a Nova Zelândia (89 pontos) e a Dinamarca (88 pontos), que têm índices altos de confiança interpessoal, 53% e 83% respectivamente, de acordo com o WVS. A organização sugere que, no Brasil, apesar de destacadas ações de combate à corrupção, inclusive de âmbito internacional, como nos casos da Odebrecht e da Petrobras, a população não percebe mudanças estruturais que possam acabar com a corrupção no país.
A democracia não passa incólume dessa desconfiança toda. De acordo com os últimos dados do Latinobarômetro, embora 62% dos brasileiros concordem com a afirmação “a democracia pode ter problemas, mas é o melhor sistema de governo”, só 13% respondem estar satisfeitos com a democracia – na América Latina, a média é de 30% –, 3% acreditam que se governa para o bem do povo e apenas 1% dos brasileiros acredita viver em uma democracia plena.
Como gerar confiança?
Não há fórmula mágica, nem caminho simples e direto para fomentar a confiança. Alguns pesquisadores, como o norte-americano Robert Putnam, consideram a confiança um elemento básico do capital social, que ele define como “as características da organização social, como redes, normas e confiança social, que facilitam coordenação e cooperação para mútuo benefício” no artigo de 1995 “Bowling Alone: America´s Declining Social Capital”, que daria origem a seu livro Jogando Boliche Sozinho, um grande estudo sobre o declínio do capital social nos Estados Unidos.
Putnam propõe que confiança pode ser criada, em nível individual, quando as pessoas se unem: quando entram em associações de bairro, se juntam a times esportivos, se tornam voluntários na igreja, entre muitas opções possíveis. Segundo ele, ao trabalhar em conjunto, as pessoas aprendem a confiar mais umas nas outras. Isso teria um efeito positivo no grupo como um todo, e cada um dos participantes passaria progressivamente a ter uma tendência a confiar e colaborar mais com outras pessoas.
O cientista político ficou conhecido justamente pelo destaque que deu à confiança em seus estudos da democracia italiana entre as décadas de 1970 e 1990. Segundo Putnam, seriam as diferenças culturais entre o norte (onde associações comunitárias e culturais são mais comuns) e o sul (onde tais associações são menos comuns) da Itália que explicariam a discrepância entre o nível de desenvolvimento das regiões.
“Pesquisas sistemáticas mostraram que a qualidade da governança era determinada por antigas tradições (ou falta delas) de engajamento cívico. Comparecimento em eleições, número de leitores de jornais, participantes em corais e clubes de futebol – estas eram as marcas de uma região bem-sucedida. De fato, análises históricas sugerem que estas redes de reciprocidade organizada e solidariedade cívica, longe de serem um epifenômeno [consequência acidental] da modernização socioeconômica, são uma pré-condição para isso”, escreve Putnam.
Mas nem todo mundo entende assim. “São os agentes que já confiam em outros cidadãos que se junta a muitas organizações, ou é a atividade nas organizações que aumenta a confiança?”, questiona o pesquisador sueco Bo Rothstein no artigo de 2000 “Trust, Social Dilemmas and Colective Memories”, que aponta que pessoas com o hábito de se associar a outras já possuem de antemão a tendência a confiar mais nos outros. Rothstein diz que “embora pareça haver apoio empírico para a tese de que, de quanto mais organizações as pessoas participam, mais provável que elas confiem em outros cidadãos, é difícil de compreender como funciona esta relação causal”.
Rothstein sugere outra forma de construir confiança, que seria “de cima para baixo”: “instituições políticas e jurídicas que são vistas como equilibradas, justas e (razoavelmente) eficientes aumentam a possibilidade de que cidadãos vão colaborar para solucionar dilemas sociais”, escreve. Para isso, seriam prioritárias as instituições de segurança: a polícia e o Judiciário. Isso porque são essas as instituições responsáveis por garantir segurança, a paz social e o cumprimento da lei.
Na lógica proposta por Rothstein, “em sociedades civilizadas, instituições da lei e da ordem têm uma função particularmente importante: identificar e punir pessoas que quebram contratos, roubam, matam e agem de modo não cooperativo e que, portanto, não merecem confiança. Assim, se você acha que estas instituições fazem o que deveriam fazer de forma justa e efetiva, então você também tem razão para crer que a chance de alguém sair impune quando age de maneira traiçoeira é pequena. Se é o caso, você entenderá que as pessoas têm boas razões para não agir de forma traiçoeira, e portanto você entenderá que ‘se pode confiar na maioria das pessoas’”, escreve.
Círculo virtuoso
Quando as instituições de segurança não funcionam, são parciais ou injustas, elas perdem a confiança das pessoas, que também passam a confiar menos umas nas outras, dado que não há uma instituição acima delas para garantir segurança. É um círculo vicioso que não se rompe facilmente. Mesmo que, subitamente, a polícia, por exemplo, se torne 100% eficiente, vai demorar muito a reconquistar a “confiança perdida”.
Estabelecer um “círculo virtuoso”, ligando a eficiência das instituições e a confiança da população, é um grande desafio, não só para as instituições de segurança, mas para os governos de forma geral. É necessário, segundo Rothstein, qualidade de governo: “que os serviços públicos sejam geridos de forma imparcial, sejam de alta qualidade e livres de corrupção” e que existam canais efetivos para ouvir e atender às demandas de seus cidadãos.
Esse é justamente o propósito da Open Government Partnership (OGP), ou Parceria para Governo Aberto, uma iniciativa multilateral, atualmente composta por 75 países, com o objetivo de promover práticas de governo aberto: transparência, participação do cidadão, prestação de contas (accountability), combate a corrupção e uso das novas tecnologias para melhorar a governança. O Brasil é um dos oito países que participou do lançamento da OGP, em 2011, e a coordenação da parceria é feita por representantes dos governos e da sociedade civil. Uma das obrigações dos países participantes é propor e executar planos de ação bienais, em conjunto com a sociedade civil nacional, para implementar as propostas da OGP. Como escrevem os embaixadores da OGP Winnie Byanyima e Mo Ibrahim, “as soluções e processos para reconquistar confiança devem se imbuir dos valores da verdade, abertura, justiça, inclusão e participação”.
Sociedade Civil
De fato, o governo é um grande responsável pela manutenção dos níveis de confiança por meio da aplicação imparcial da lei e do funcionamento eficiente das instituições formais, mas a sociedade civil também tem um peso considerável nessa equação. Uma forma simples e interativa de entender isso é com o jogo “A Evolução da Confiança” – formulado com base nos livros A Evolução da Cooperação e A Complexidade da Cooperação, de Robert Axelrod, e Jogando Boliche Sozinho, de Robert Putnam, e a partir de insights da Teoria dos Jogos.
A Teoria dos Jogos é uma área de conhecimento que, por meio de modelos matemáticos, analisa a forma como pessoas tomam decisões, especialmente nas circunstâncias em que há colaboração ou conflito. É uma ferramenta amplamente utilizada por cientistas políticos, sociólogos, psicólogos e economistas para estudar o comportamento das pessoas, e coloca em evidência como a confiança (ou falta dela) é um elemento-chave para definir quando há cooperação, explicando como nem sempre uma decisão individual é exatamente racional, nem necessariamente benéfica para o grupo ou sociedade como um todo.
Comparando os ganhos individuais na interação ao longo de diferentes períodos de tempo entre diferentes perfis de pessoas – mais ou menos trapaceiras, por exemplo –, o jogo chega a três condições básicas para a manutenção da confiança nas relações sociais: interações frequentes, para que as pessoas possam saber o que esperar das outras, em diferentes contextos; cenários de ganha-ganha, em que as regras do jogo recompensem mais a cooperação que o comportamento egoísta; e baixos níveis de falha de comunicação, para que equívocos pontuais ou comportamentos não conhecidos não sejam interpretados como quebra da cooperação.
A sociedade civil desempenha um papel importante para a vitalidade dessas condições. Para ficar em apenas dois exemplos, basta pensar no papel que as associações civis têm de possibilitar a interação entre pessoas e grupos sociais e na responsabilidade que os meios de comunicação têm de garantir a qualidade da informação que circula no espaço público. Não por acaso, o Jogo da Confiança conclui que “no curto prazo, o jogo define os jogadores. Mas, no longo prazo, somos nós, os jogadores, que definimos o jogo” e que cada um deve fazer “o que puder para criar condições onde a confiança possa evoluir”.
Para aqueles que têm dúvidas sobre como fazer isso, o próprio Robert Putnam organizou por muitos anos um seminário na Universidade de Harvard sobre como criar capital social e elaborou uma lista com 150 atitudes simples que, coletivamente, têm imenso potencial de impacto(em inglês). A Gazeta do Povo escolheu dez delas para compartilhar com o leitor:
- Organize um encontro para receber um novo vizinho
- Doe sangue com um amigo
- Vá a reuniões de conselhos municipais
- Candidate-se a um cargo público
- Vote
- Ouça histórias dos mais velhos
- Evite fofocas
- Faça trabalho voluntário
- Empresários: incentivem grupos voluntários a fazer reuniões em sua empresa
- Diga “olá” para pessoas desconhecidas