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A onda de ataques terroristas que assola o Rio Grande do Norte voltou a despertar atenção dos brasileiros para uma dura realidade: o domínio das facções criminosas e seu potencial destrutivo para a vida social, política e econômica da nação. Desde o dia 13, foram registrados ataques em mais de 60 cidades do estado, incluindo a destruição de ônibus, comércios, prédios públicos, delegacias, bases policiais e até um equipamento contendo os medicamentos do Sistema Único de Saúde (SUS) de uma cidade inteira. Até o presente momento, uma pessoa morreu e 91 foram presas, juntamente com explosivos, armas de fogo, galões de gasolina, entre outros objetos.
A imprensa não tem noticiado o fato como o que realmente é: terrorismo com objetivo político, praticado por criminosos que agem dentro e fora dos presídios. Ironicamente, a palavra parece ter sido reservada no jornalismo nacional só para idosos e outras pessoas que participaram da invasão dos prédios públicos em Brasília no dia 8 de janeiro. Ao contrário dos manifestantes presos aos borbotões, os bandidos que assolam o Rio Grande do Norte têm objetivo claro: a retomada de regalias que foram abolidas dos presídios do estado desde o massacre de Alcaçuz em 2017, como visitas íntimas e televisores, itens não considerados obrigatórios pela Lei de Execuções Penais.
Ao que se sabe, a ação envolve uma aliança temporária entre grandes facções do estado, incluindo o Sindicato do Crime e o Primeiro Comando da Capital (PCC). Ainda não é possível estimar o prejuízo com a paralisação do estado, mas já se sabe que ultrapassa a casa das dezenas de milhões de reais. A atuação mais intensiva das forças de segurança deve produzir efeito positivos nos próximos dias, mas a apreensão provocada pela onda de violência não vai sair da memória dos brasileiros, principalmente dos potiguares.
Em que pese o esforço da imprensa de evitar notícias ruins para não melar de vez o clima do novo governo, o sentimento é de que vai se cumprindo mais uma profecia feita pelos críticos de Lula: a de que o retorno do PT à Presidência da República iria resultar no recrudescimento das atividades do crime organizado no país.
É verdade que não se pode dizer que a ação dessas organizações tenha propriamente se tornado irrelevante nos últimos anos. Os recordes sucessivos de apreensão de drogas, o endurecimento do tratamento de líderes de facções, algumas mudanças positivas na legislação penal, bem como a redução histórica dos homicídios e de outros crimes durante os quatro últimos anos, que chegaram ao menor número de toda a série histórica desde 2007, podem ter dado uma sensação de que o problema estava finalmente sob controle. Porém, a onda crescente de crimes de domínio de cidades, com bandos armados aterrorizando populações inteiras em ações espetaculares, já vinha chamando a atenção de muitos agentes de segurança e especialistas para a necessidade de intensificar ainda mais a repressão contra essas organizações.
Infelizmente, os números positivos dos últimos anos não foram acompanhados de pesquisas estatísticas que avaliassem o fenômeno em todas as suas dimensões, talvez pelo fato que a redução dos crimes se chocava diretamente com teses longamente defendidas na academia, visto que ocorreu junto com o aumento crescente do número de armas legais de posse de civis. Nesse cenário, ao progressismo dominante nas ciências sociais brasileiras sobrou a defesa de teses esdruxulas, como a de uma suposta profissionalização do crime, que teria inexplicavelmente ocorrido a partir de 2018, quando a redução se iniciou, impactando nas disputas territoriais e na redução de crimes violentos associados com o mercado ilegal de drogas.
É verdade que não se sabe ao certo o que propriamente contribuiu para a redução do crime nos últimos quatro anos. Historicamente, porém, números positivos dessa magnitude em situações de violência generalizada não ocorrem sem o concurso do aumento expressivo da repressão qualificada pelas forças de segurança pública. Prender mais, melhor e por mais tempo é uma receita que tem produzido resultados positivos em diversos países do mundo. Por isso, não se pode desprezar o efeito de ações mais eficazes de repressão nas políticas estaduais e federais, do maior controle em muitos sistemas penitenciários, do endurecimento de algumas penas, do estabelecimento de mecanismos de financiamento e de mudanças no modelo de gestão das políticas de segurança. Sobretudo, é preciso levar em conta o surgimento de uma ambiência de maior intolerância no combate ao crime, com ações de enfrentamento direto encontrando respaldo na esfera Federal e sendo aplaudidas com entusiasmo pelo eleitorado, o que afeta a moral das polícias e desencoraja muitos criminosos. Em um país de tradições imperiais, o ocupante da Presidência da República simboliza muita coisa, estimulando certas ações e coibindo outras. Da mesma forma que um mandatário a favor do livre mercado aumenta a confiança dos investidores e faz a roda da economia girar com mais ganância, a defesa aberta das polícias e intolerância contra o crime da parte da autoridade máxima do Executivo também produz efeitos em cascata.
Entretanto, os eventos no Rio Grande do Norte parecem indicar que a direção do vento agora está mudando para pior. A bem da verdade, já faz algum tempo que parte da elite política brasileira envia sinais pouco alvissareiros para as forças de segurança pública, em benefício dos criminosos. Em 2019, o Congresso Nacional aprovou a nova Lei de Abuso de Autoridade, que deu a muitos criminosos poderosos um instrumento eficaz de retaliação e cerceamento do trabalho policial. 2020, o Superior Tribunal Federal restringiu a atuação policial em comunidades do Rio de Janeiro durante a pandemia, impondo restrições que foram continuadas nos anos posteriores. Isso inclui a proibição de uso de helicópteros essenciais para esse tipo de operação, a necessidade de avisar previamente o Ministério Público sobre as operações, entidade que já teve documentos sigilosos sobre operações vazados previamente para narcotraficantes cariocas, bem como a proibição da ações policiais próximas a escolas e outros equipamentos públicos, lugares que se tornaram preferenciais para o esconderijo de armas e drogas desde então. No ano seguinte, foi a vez do Superior Tribunal de Justiça (STJ) dar sua contribuição, com decisões que proibiam a revista policial com base em aparência suspeita, a busca pessoal e veicular com base em denúncia anônima e a busca pessoal com base em antecedente criminal, além da definição que a quantidade de drogas, por si só, não comprova a dedicação ao tráfico de drogas de um suspeito.
Esse arcabouço institucional que foi sendo gestado progressivamente pelas elites políticas da Nova República impõe um nível de insegurança jurídica sobre a atuação policial desconhecido até então. Com a derrota de Bolsonaro em 2022 e a vitória de Lula, o pessimismo tem se instaurado nas forças de segurança. E não é à toa. O petista protagonizou falas controversas nos últimos anos, após sua passagem pela cadeia, prestando solidariedade para com menores que roubam celular e são acossados pela polícia, justificando o roubo de garotos que só estariam querendo “ganhar um dinheirinho” e falando abertamente sobre mudar a lei de drogas no país. Durante as eleições, o site O Antagonista divulgou áudios obtidos pela Polícia Federal nos quais o líder máximo do PCC, Marcos Camacho, “o Marcola”, declarava apoio da facção ao então candidato petista, principalmente devido a ações do partido no STF, que pediam pela obrigatoriedade de visitas íntimas nos presídios federais. Atuando de maneira controversa para conter notícias falsas e casos de “desordem informacional”, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) proibiu a veiculação desses conteúdos durante a campanha. Contudo, após a posse de Lula, o novo ministro dos direitos humanos, Silvio Almeida, defendeu abertamente a descriminalização das drogas, e o ministro da Justiça e Segurança Pública, Flavio Dino (PSB - MA), relançou o Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania (Pronasci), sem dizer palavra sobre o combate à facções criminosas como prioridade do novo governo[1]. O mesmo Dino seria duramente criticado no dia seguinte, pelo seu aparecimento sem qualquer escolta policial para uma reunião com lideranças no Complexo da Maré, uma comunidade reconhecidamente dominada por facções criminosas que ostentam o controle armado do território.
Os fatos que se acumulam permitem uma previsão com certo nível de confiança para os próximos anos. A situação da segurança pública no Brasil deve piorar, com um recrudescimento de impacto estatístico para breve. A retomada das ações terroristas por parte de facções criminosas põe por terra as teses sobre profissionalização dessas organizações ou mudanças na configuração do mercado de drogas influenciando a configuração dos homicídios no Brasil. O crime voltou a ser um evento público de impacto, um instrumento de negociação de facções com o poder político, dessa vez respaldado por um arcabouço institucional que parece mais do que nunca desenhado para amarrar as ações de repressão policial. Esse conluio progressivo entre poder político, organizações criminosas e elites deve acelerar o processo de “mexicanização” que tem sido uma das principais marcas da Nova República. Numa sociedade como essa, marcada pelo esvaziamento da autoridade, o crime exerce um tipo de poder particular. O seu avanço se dá como a ação de mosquitos num pântano. Pela falta de ideologia e base programática, ele não é capaz de substituir inteiramente o poder estabelecido. Mas enfraquece pouco a pouco o corpo social e debilita ao máximo suas forças, afetando o funcionamento de organismos intermediários fundamentais, como a família, a escola, a vizinhança e as igrejas. O que sobra ao final desse processo é uma sociedade fora de controle, repasto para a ação de forças revolucionárias engajadas na instituição de um regime de natureza totalitária. Talvez seja isso o que parte das nossas elites realmente desejem. Estamos sob o domínio do medo e esse cenário não deve se alterar enquanto a sociedade não der uma resposta proporcional às forças que conspiram para sua destruição.
[1] Vale lembrar que, durante o tempo de vigência da primeira versão do programa, entre 2007 e 2016, os assassinatos no país subiram de 44.625 para 57.842.